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Justiça virtual

O mundo busca a substituição do papel pelos meios eletrônicos nos serviços prestados pela Justiça. Na Alemanha, a “lei de comunicação eletrônica no Judiciário” permite intercâmbio de documentos entre os tribunais, além de possibilitar a conservação de autos judiciais eletrônicos.

24/1/2006


Justiça virtual


Antonio Pessoa Cardoso*

O mundo busca a substituição do papel pelos meios eletrônicos nos serviços prestados pela Justiça. Desde abril/2005, na Alemanha, a “lei de comunicação eletrônica no Judiciário” permite intercâmbio de documentos entre os tribunais, além de possibilitar a conservação de autos judiciais eletrônicos.

No Brasil, a cultura analógica é transformada na medida em que o STF, o STJ, o TSE a Justiça federal, a Justiça estadual promovem experiências salutares com uso dos avanços tecnológicos do mundo moderno.

A petição por meio eletrônico, fax ou similar, torna-se comum no meio jurídico, principalmente depois que foi criado o “e-STF”, legalizando o procedimento. Ademais, a Lei 9.800/99, ainda que timidamente, autoriza a transmissão de peças processuais por fax ou similar, incluindo evidentemente o correio eletrônico. A exigência do original no prazo de cinco dias minora o significado da tecnologia, mas alguns tribunais dispensam a apresentação física do documento original.

O Projeto de Interligação Informatizada do Poder Judiciário, Infojus do STF, oferece aos “órgãos do Judiciário infra-estrutura comum de rede de comunicação com suporte a dados, voz e videoconferência, de forma a minimizar os custos”. O convênio celebrado com os tribunais possibilitou a doação de mais de três mil equipamentos para informatização das comarcas de todo o País.

Esforços pontuais estão sendo feitos na medida em que a página eletrônica do STF se coloca entre os dez melhores sistemas do Brasil, pela quinta vez consecutiva.

Também o STJ desenvolve estudos no sentido de eliminar o papel e adotar o sistema on-line até mesmo para petições, visando à celeridade e a segurança dos serviços judiciários. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região permite aos advogados cadastrados no Sistema de Transmissão Eletrônica de Atos Processuais da Justiça Federal peticionar sem apresentação do requerimento original. Por outro lado, através do “Prêmio Servidor de Melhores Idéias” originou-se o Malote Digital que consiste em reduzir a circulação de papéis, substituído pela digitalização.

O STJ constatou que, em torno de 40% dos processos recebidos, provém dos tribunais de justiça dos estados e tudo isto em papel; o fato motivou estudos e adoção da Autoridade Certificadora do Sistema da Justiça Federal (AC-Jus) por meio do qual há integração nos níveis federal e estadual.

A Carta Precatória eletrônica implementada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª região é mais um recurso para redução do uso do papel nos serviços judiciários. Remete-se às varas federais por meio digital os dados indispensáveis ao cumprimento da precatória. O sistema diminui as despesas, reduz o tempo para cumprimento e acaba com o uso do papel. A Corregedoria regularizou o uso do correio eletrônico através do Provimento n. 1/2000. O artigo 1º dispõe que “nas Varas Federais da 4ª Região deverá ser utilizado, sempre que possível, o correio eletrônico para comunicação de atos processuais como ofícios em cartas precatórias, solicitação de informações, pedidos de esclarecimento sobre antecedentes penais de réus e outros que, a juízo do Juiz Federal, forem considerados oportunos".

A Revista Eletrônica de Jurisprudência, criada pelo STJ em 2002, facilita acesso ao teor do acórdão, dispensada a solicitação de cópia autenticada das decisões colegiadas. Há celeridade, facilidade e economia no acesso às informações.

O Projeto de Lei n. 5.828/2001, aprovado pela Câmara dos Deputados, prevê: uso do meio eletrônico na comunicação dos atos processuais; transmissão eletrônica de peças processuais sem necessidade de apresentação do original; intimação pessoal aos advogados com aviso de recebimento pelo correio eletrônico; comunicação eletrônica entre os tribunais.

No combate à criminalidade louva-se o STJ pela simplificação na comunicação entre o Judiciário e o sistema policial. A rede de INFOSEG, lançada em dezembro de 2004 pelo Ministério da Justiça, é ferramenta tecnológica que interliga as bases de dados dos órgãos de segurança pública, justiça e fiscalização, permitindo consultas em tempo real; tornou-se impossível o controle operacional analógico, através de fichas e livros, dado o grande número de demandas. Os bancos de dados das policias estaduais, STJ, Departamento Nacional de Trânsito, (Denatran), Serviço Nacional de Armas da Polícia Federal, Receita Federal estão disponibilizados na internet.

O Tribunal Superior Eleitoral conquistou simpatia e maior credibilidade junto ao cidadão brasileiro e perante o mundo com o moderno sistema eletrônico de votação. O registro digital do voto, imprescindível para eventual conferência do resultado, continua sendo reivindicação de quantos buscam maior segurança no sistema. A presteza atinge a obtenção do formulário da justificativa eleitoral pelos eleitores em trânsito por via on line, além da certidão de quitação eleitoral.

A Justiça do Trabalho implantou o Sistema Integrado de Gestão da Informação Jurisdicional destinado a melhorar a prestação dos seus serviços.

A penhora on-line, denominada oficialmente de “Sistema de Atendimento das Solicitações do Poder Judiciário ao Banco Central”, BACEN/JUD, criada pelo STJ em 2001 e praticada na Justiça laboral desde o ano de 2002, possibilita a execução das sentenças em tempo real. O sistema foi desenvolvido pela Federação Brasileira das Associações de Bancos e não se reclamou lei para este avanço. Atualmente o bloqueio de crédito das empresas devedoras é efetivado em vinte e quatro horas, quando no procedimento anterior, através de ofício, levavam-se meses para concretização da medida. O juiz não tem acesso às contas bancárias das empresas devedoras, porque a ação limita-se ao bloqueio através de senha pessoal.

A Justiça estadual caminha mais lentamente na informatização, porque a autonomia que gozam os tribunais não permite um trabalho coordenado e uniforme. Cada unidade federada adota ou não tal ou qual sistema, daí um Estado mais desenvolvido que outro nesta área.

A sessão informatizada, por exemplo, é experiência dos juizes gaúchos. Notebooks conectados à rede do Tribunal permite conhecimento dos processos da pauta, assinatura digital durante a sessão, etc. O Sistema de Informatização das Salas de Sessão de Julgamento, denominado de e-Jus, possibilita aos membros da Câmara tomar ciência do voto do relator antecipadamente. Os votos são armazenados em memory key ou pen-drive, evitando a impressão em papel e reduzindo os gastos; em seguida são encaminhados aos desembargadores, dias antes do julgamento. O mecanismo agiliza o processo, porque no mesmo dia da distribuição, os autos são remetidos ao relator.

Na Suprema Corte dos Estados Unidos é buscado o consenso entre os julgadores para levar o recurso a julgamento. Bem verdade, que o reduzido trabalho, em torno de cem recursos por ano, oferece maior facilidade para este tipo de entendimento, diferentemente do que ocorre no Brasil, quando os juizes das cortes superiores solucionam em torno de cento e cinqüenta mil processos por ano.

Em São Paulo, o “Projeto Piloto para Simulação de Processo Eletrônico” substitui os autos por uma página na web, onde se insere todos os atos processuais. É o diário oficial virtual que vale como se fosse documento original.

Questionamentos surgiram e o STJ pronunciou-se da seguinte forma:

"Informações prestadas pela rede de computadores operada pelo Poder Judiciário são oficiais e merecem confiança. Bem por isso, eventual erro nelas cometido constitui evento imprevisto, alheio à vontade da parte e que a impediu de praticar o ato. Reputa-se, assim, justa causa (CPC, Art. 183, § 1º), fazendo com que o juiz permita a prática do ato, no prazo que assinar. (Art. 183, § 2º)" (STJ, RESP 390561/PR, 1a Turma, rel. HUMBERTO GOMES DE BARROS, j. 18/6/2002).

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, através de convênio com a empresa de telefonia, TIM, permite acompanhamento da movimentação dos processos pelo celular; assim, a cada despacho proferido pelo juiz, o profissional habilitado recebe mensagem sobre a movimentação do processo pelo TIM-net Mail.

A Justiça criminal resiste na aplicação do interrogatório pela videoconferência sob a alegação de ser ato pessoal do juiz. Sabe-se, entretanto que desde os anos noventa usa-se este recurso por meio do qual o juiz do seu gabinete ouve o réu no presídio sem deslocamento algum. Através da tela do computador o julgador percebe todas as reações do réu, preservando assim a imagem, a postura física, emocional e a voz do interrogado em tempo real.

A segurança, a rapidez no andamento dos processos e a economia reclamam o uso da eletrônica nessa diligência, considerando também a desnecessidade de transporte e escolta policial. O Tribunal da Paraíba regulamentou a vídeo-audiência, por meio da Portaria n. 2.210/02.

Convocado a decidir sobre o assunto o STJ decidiu:

"Recurso de "habeas-corpus". Processual penal. Interrogatório feito via sistema conferencia em "real time". Inexistindo a demonstração de prejuízo, o ato reprochado não pode ser anulado, "ex vi" art. 563 do CPP. Recurso desprovido" (STJ, RHC 6272/SP, 5a Turma, rel. Min. Félix Fischer, j. 3/4/1997). Além disto, a Medida Provisória n. 28/2002 autorizou o uso de “equipamentos que permitam o interrogatório e a inquirição de presidiários pela autoridade judiciária, bem como a prática de outros atos processuais, de modo a dispensar o transporte dos presos para fora do local de cumprimento da pena". Tramitam no Congresso Nacional projetos de leis para regularizar a vídeo-audiência.

Recentemente na cidade de Lauro de Freitas, Bahia, criminosos invadiram a sala de audiência, resgataram o preso que estava sendo interrogado e a juíza não teve outra alternativa que não se proteger dos bandidos. Atiraram e saíram com a prenda. A despeito de tudo isto, a Resolução n. 5/2002 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça manifestou-se contra o interrogatório pela videoconferência.

O uso da videoconferência nos juizados especiais não constitui experimento extralegal, porque expressamente autorizado pela lei, parágrafo 2º, artigo 65 da Lei 9.099/95. Ainda assim, os juizados não absorveram a prática.

A criação dos Juizados de Pequenas Causas na década de 80 foi a mais significativa revolução no Judiciário brasileiro; facilitou o acesso do povo à Justiça pela celeridade das decisões, pela informalidade e pela gratuidade. Todavia, a mudança anunciada pela legislação não progrediu. A burocracia voltou e a audiência de julgamento que ocorria no prazo de um mês já demanda meses e até anos; de informal o juizado tornou-se tão formal quanto a justiça comum. Não há celeridade, não há informalidade, nem simplicidade.

Quando militamos nos Juizados Especiais dos bairros da Liberdade e Barris, em Salvador, aplicamos os princípios da lei: depoimento de testemunhas através de gravador pessoal, reproduzido somente em caso de recurso; sentença imediatamente após a instrução; precatória por telefone, etc.

Depois de implantados os juizados na Justiça federal é que progrediu o uso de meios eletrônicos no sistema. O STJ, através do “Sijus” padronizou o uso da informática.

A implantação do Juizado Especial Virtual é demonstração maior do avanço. A Fundação Getúlio Vargas, o Ministério da Justiça e empresas privadas celebram convênios com muitos tribunais para definitiva implantação da Justiça sem Papel. O projeto busca “informatização ampla do Judiciário brasileiro na sua atividade jurisdicional” e facilita o acesso do cidadão à Justiça, diminuindo custos, papel e utilizando as novas tecnologias.

Coube à Justiça federal dos Estados de Rondônia, Rio de Janeiro, Distrito Federal e Acre e a Justiça estadual de Campina Grande, PB, e Campo Grande, MT, restabelecer o caminho proposto pelo saudoso Hélio Beltrão, quando criou em 1984 os Juizados Especiais de Pequenas Causas.

A Justiça virtual além de trocar o papel pelo armazenamento dos autos em meio digital, evita uma série de derivações causadoras de morosidade na justiça. É o caso da carga dos autos pelos advogados ou do extravio de documentos e dos próprios autos que reclamam um processo especial para restauração. A nova sistemática acaba com os arquivos, onde mofam os autos, democratiza o acesso à Justiça e facilita a consulta de informações; são dispensadas as publicações dos atos processuais no Diário Oficial, assim como desnecessárias as intimações aos advogados, porque ação promovida pelos meios eletrônicos, uma vez que os profissionais são cadastrados. Os autos do processo, formados por imponente catedral de papel, dão lugar aos autos eletrônicos, composto por um kit de informações, anotadas em disquete ou em cd. É a chegada do processo sem autos, onde o papel, as certidões, os termos, o carimbo, o cordão, a agulha, etc., cedem posição ao powerpoint, ao laptop, ao computador, etc.

As Turmas Recursais de Juizados Federais em muitos estados usam o sistema de videoconferência até mesmo para sustentação oral de advogados num estado e julgamento em outro. Imagem e som eletrônicos reduzem o tempo na realização das audiências no Juizado Virtual.

(Ver do autor, “Processo sem Autos. A Oralidade no Processo”. Ed. Juruá).

O pedido virtual de certidões, a penhora on-line, a expedição de alvará por meios eletrônicos, a consulta a saldos de depósitos judiciais e recursais, a citação e intimação eletrônica, o livro de sentenças eletrônico, a videoconferência, o requerimento de hábeas corpus por e-mail, a petição por fax e o leilão eletrônico, ampliam o caminho para adaptação do Judiciário aos novos tempos.

O alvará e a citação eletrônica tornam-se realidade pela assinatura digital do magistrado, conseguindo assim mandados de levantamento ou chamamento da parte pela forma eletrônica; o depoimento testemunhal e o interrogatório já são feitos através da videoconferência.

Os bens penhorados são vendidos através de leilão pela internet, obtendo-se desta forma maior número de interessados, crescimento da arrecadação, publicidade mais abrangente além de redução do prazo de execução.

A Associação dos Notários e Registradores do Brasil dá bom exemplo quando oferece seus serviços através da internet. No site1 obtém-se variadas certidões sem deslocamento do usuário e sem as “custas por fora”. Basta fazer o pagamento do serviço e postagem para receber a certidão pelo sedex ou por carta registrada. Já estão integrados a este sistema os Estados de Alagoas, Amazonas, Distrito Federal, Espírito Santo, Maranhão, Goiás, Pará, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, Sergipe e São Paulo.

Essas inovações justificam-se, se não por outras fortes motivações, também pelo fato de ser o brasileiro líder mundial de tempo de navegação na internet.

O operador do direito teme sobremaneira a chegada do processo virtual, fundamentalmente pela segurança dos dados; mas como o cartão de plástico substituiu adequadamente o cheque também o documento digital tomará o lugar dos autos. E não se pode temer a fraude, porquanto a falsificação de um documento em papel oferece muito mais facilidade do que a adulteração de um documento digital, garantido pela criptografia, pela senha, pela biometria, etc.

Aliás, o STF cuida da segurança de seu sistema e exige impressão digital para acesso do usuário à sua rede, enquanto o STJ adotou a marca d’água, juntamente com a certificação digital para autenticação de cópias dos acórdãos fornecidos pela Revista Eletrônica de Jurisprudência.

O impulso do processo independerá do juiz ou mesmo do servidor, porque sistemas inteligentes substituirão o homem nos despachos padronizados, a exemplo da remessa para cálculos, para manifestação das partes, do Ministério Público, etc. Aliás, já existem softwares com condições de oferecer despachos padronizados, como a admissão de recursos.

O norte americano Douglas B. Lenart criou o juiz virtual através do programa Cyc. Lenart diz que "se Cyc aprender todo o corpo de leis de um país, mais a jurisprudência (casos jurídicos anteriores) e, finalmente, alguns conceitos de moral, decência, dignidade, humanidade e bom senso, nada impede que ele seja capaz de exercer a função de juiz muito melhor do que os humanos" (SABBATTI, Renato M. E. O Computador-Juiz). Não se sabe se tenebroso o tempo no qual programas de computador apresentarão sentenças nos processos. Afinal, o plástico, o cimento, o prestígio da economia em detrimento do ambiente (posição americana no Protocolo de Kioto) traça caminho tortuoso para o futuro da humanidade.

O maior obstáculo para implementação da tecnologia avançada no Judiciário reside na dificuldade de utilização do sistema pelo povo, porque sem recursos e sem acesso aos progressos da ciência. O assunto constitui matéria para estudo sociológico.
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1 www.cartorio24horas.com.br
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*Juiz em Salvador





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