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Judicialização da política e politização da justiça

No final do século passado, coincidindo com a redemocratização do país, tivemos entre nós o início de algo que Boaventura de Souza Santos chama da “judicialização da política”. Em contrapartida a isso, temos a politização da justiça, talvez como o retorno do mesmo pêndulo, quando, valendo-se da pública e notória insuficiência dos serviços judiciários, grita-se aos quatro ventos a imprestabilidade do Poder Judiciário.

5/6/2003

 

Judicialização da política e politização da justiça

 

Adauto Suannes*

 

No final do século passado, coincidindo com a redemocratização do país, tivemos entre nós o início de algo que Boaventura de Souza Santos chama da “judicialização da política”: os acordos políticos, feitos a portas fechadas e trancadas (quantas pessoas terão notado que conchavar vem de cum clave, para designar aquilo que não se faz em público?) tão comuns entre nós, em dado momento passaram a ultrapassar os limites do espaço reservado aos políticos e porem-se sob a lupa do Ministério Público, pronto, não poucas vezes, a identificar a veracidade de denúncias que, normalmente, se fechavam em si mesmas, nas concessões recíprocas entre vitoriosos e vencidos do jogo político. Até então, o partido de “oposição” que, na campanha eleitoral, denunciara as mazelas dos políticos da chamada “situação”, uma vez chegado ao poder, fosse pela necessidade de fazer alianças políticas para bem governar, fosse pela disposição de se utilizar dos mesmos métodos e obter os mesmos proveitos que denunciara na campanha, vinha a produzir uma sensação de dejà vu, onde não se distingue entre o ideário de partido de esquerda e o de direita, para ficarmos com a terminologia por eles adotada e que, na verdade, bem pouco significa hoje. O que se pretende agora é que o governo substituto tenha, em relação ao governo substituído, o dever de promover, se não uma devassa na administração anterior, ao menos a apuração das denúncias anteriormente feitas e que haviam servido de mote para a eleição dos denunciantes, fato esse a fazer supor que o mandato atribuído aos eleitos se baseava também nesse propósito de transparência nos atos governamentais, mínimo exigível para que a administração pública se paute pelos constitucionais princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade e da publicidade, previstos no artº 37 da Magna Carta.

 

A primeira reação a isso será os investigados cobrarem do Parquet uma postura “neutra”, no sentido de esperar que seus membros fechem os olhos àquilo que é tido e havido como coisa comum à política, pois só os muito ingênuos podem imaginar que os políticos sejam pessoas vocacionadas à beatificação. Ou pessoas que conseguem manter-se com os ganhos oficiais que lhes caem nas contas bancárias.

 

No limite, passa-se a censurar o Poder Judiciário, que, “mancomunado com o Ministério Público”, dá andamento a investigações ou mesmo a ações concretas tendentes à apuração do cometimento de infrações criminais por parte de políticos.

 

A lei que pune a irresponsabilidade fiscal de políticos e o ar de surpresa de muitos administradores da res publica, quando tiveram consciência de que essa era uma lei “para valer”, serve como exemplo para mostrar a diferença entre os hábitos que sempre nortearam nossa vida política e o que a sociedade pretende seja a vida política na atualidade.

 

Em contrapartida a isso, temos a politização da justiça, talvez como o retorno do mesmo pêndulo, quando, valendo-se da pública e notória insuficiência dos serviços judiciários, grita-se aos quatro ventos a imprestabilidade do Poder Judiciário. O discurso verdadeiro, se houvesse explicitação do pensamento dos queixosos, seria este: com que autoridade quer julgar-nos um Poder do Estado que sabidamente acoberta com o manto da opacidade as mazelas de parte de seus membros? Como pode julgar-nos quem não admite nem ao menos discutir a respeito da possível existência de uma “caixa preta”, qualquer seja o significado disso, mas que, tanto quanto as do lado de lá, estaria trancada a chave, encobrindo nefandos conchavos?

 

Some-se a isso o sensacionalismo nem sempre responsável dos mass media e teremos um quadro de fogo cruzado: nós diminuiremos a politização da justiça desde que vocês diminuam a jurisdicionalização da política, fechando-nos, cá e lá, nas caixas pretas dos nossos conchavos.

 

Ocorre que, para repetir Boaventura Santos, “a politização da justiça transforma a plácida obscuridade dos processos judiciais na trepidante ribalta mediática”. Aberta a caixa (preta?) de Pandora, quem se habilita a fechá-la?

 

Não nos envergonhando de mais uma vez bebermos na respeitada fonte lusitana, haveremos de reconhecer que esse confronto entre a escuridão em que tramitam, por longos anos, os processos judiciais e a necessidade de imediatismo que rege a atividade comunicativa e as notícias trazidas à luz do dia, pretensamente isenta de parti pris, levará a resultados indesejados e extremamente perigosos.

 

Detenhamo-nos num deles: a morosidade do processo necessário à imposição da pena ao comprovado criminoso. A menos que repristinemos as regras da Inquisição, onde se determinava ao advogado que não atrapalhasse a realização da justiça e onde a razoabilidade da defesa apresentada pelo suspeito era a maior demonstração de que tinha ele pacto com o diabo, entre o fato causador de “comoção social” e o esgotamento dos recursos legais com que conta a defensoria haverão de transcorrer prazos destinados a afirmações e negações, por força do chamado “princípio do contraditório”, do qual os meios de comunicação conhecem apenas uma caricatura, quando alegam haver sido ouvida “a outra parte” antes de publicar notícia injuriosa, ou quando tomam o “cuidado” de gravar as declarações do suspeito (som e imagem!) sem o mais mínimo respeito às garantias constitucionais que cuidam da dignidade da pessoa humana.

 

Estranhamente, em lugar de o Poder Judiciário passar a negar valor a tal tipo de “prova”, manifestamente ilícita, e a tudo aquilo que dela decorra, como fruits of a poisonous tree, o que se vê é muitos juízes se dobrarem ao poder dos mass media, transformando, por exemplo, a prisão preventiva em um evidente início de cumprimento de pena, sempre que se cuide de “crime grave” ou de fato que tenha causado “comoção social”, dando-se desde logo por provado aquilo que a existência mesma do processo indica deva ser comprovado, só possível em clima de ponderação e comedimento, e não sob o impacto do clima de insegurança que a todos nos atinge, juizes ou não.

 

Conseqüência disso é a incrível declaração de um Ministro de um dos nossos Tribunais Superiores, no teor de que os três poderes da República devem-se unir no combate à criminalidade. Epa! Até onde aprendíamos antes de instaurar-se no país o terrorismo penal, ao Poder Judiciário não cabe combater coisa alguma, mas tão somente assegurar aos acusados (na esfera criminal) um fair trial, um julgamento justo, pela necessária observância dos princípios que compõem o devido processo penal.

 

A continuar essa subordinação do Judiciário aos “fazedores de opinião”, dia virá em que o simples fato de alguém residir em cidade com alto índice de criminalidade será fundamento por si só suficiente para lastrear um decreto de prisão cautelar, como se o suspeito fosse, mesmo sendo apenas suspeito, o responsável pela intranqüilidade das pessoas que a habitam.

 

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* Desembargador aposentado do TJ/SP e membro do IBCCRIM

 

 

 

 

 

 

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