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Primeiras impressões sobre o Marco Civil da Internet

Alguns dispositivos causam certa perplexidade, diante de sua eventual incompatibilidade com a própria CF; outros cristalizam uma importante tomada de posição por parte do legislador no que concerne à submissão do usuário à legislação brasileira e às sanções ali estabelecidas.

6/5/2014

Em 23 de abril de 2014 foi finalmente promulgado o tão anunciado "Marco Civil da Internet", instituído pela lei Federal 12.965, que "estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil". Trata-se de uma legislação pioneira, na qual são disciplinados assuntos bastante variados, todos eles reunidos à vista de sua vinculação umbilical à realidade do surgimento, desenvolvimento e crise da internet.

De fenômeno inicialmente "incontrolável" – na medida em que qualquer ameaça que se lhe fosse anteposta era entrevista como uma odiosa ameaça à liberdade de expressão – passa-se a um esboço de disciplina jurídica; simplesmente se trouxeram os holofotes do Direito para que fossem iluminados diretamente alguns aspectos até então somente divisados por nossos operadores do direito graças à iluminação difusa – defluente da Constituição Federal e da legislação indiretamente correlata.

Os trinta e dois artigos da lei – divididos em cinco seções ("Disposições preliminares", "Dos direitos e garantias dos usuários", "Da provisão de conexão e de aplicações de internet", "Da atuação do Poder Público" e "Das disposições finais") – enfeixam uma regulação moderna, bastante preocupada com a definição de princípios (art. 3º) e com a abertura do sistema normativo aos usos e costumes especificamente consagrados na internet (art. 6º).

Tal espécie de regulamentação pode ostentar, por vezes, uma singeleza incompatível com o alcance de seu conteúdo objetivo; mais do que isso, acaba por prestigiar certos valores que – ainda que à custa de um sempre recomendável "sopesamento" – exigirão que se priorizem certos interesses, em detrimento de outros. Por isso, é decisiva a eleição da “liberdade de expressão” como fundamento da disciplina do uso da internet no Brasil (art. 2º).

Contudo, tal escolha tem as suas contrapartidas necessárias: o eventual comprometimento de outros objetos também merecedores da tutela do legislador – em particular a "intimidade", a "vida privada", a "honra", a "imagem" das pessoas e os direitos de "propriedade intelectual" (particularmente os direitos de autor e conexos).

Alguns dispositivos causam certa perplexidade, diante de sua eventual incompatibilidade com a própria CF (v. g. art. 7º, II); outros, todavia, cristalizam uma importante tomada de posição por parte do legislador no que concerne à submissão do usuário à legislação brasileira (art. 11) e às sanções ali estabelecidas (art. 12).

No entanto, atenção especial merece ser dispensada aos arts. 18 a 21 da lei Fed. 12.965/14: na linha do que já vinha sendo praticado por grande parte de nossos Tribunais, o art. 18 da lei exonera o provedor de conexão de responsabilidade civil por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros (desde que não fique evidenciada, por óbvio, qualquer espécie de atuação dolosa de sua parte); e o art. 19, por sua vez, circunscreve a responsabilidade do provedor de aplicações de internet (funcionalidades), submetendo-o, em princípio, às determinações estabelecidas pelo próprio Poder Judiciário – sendo determinada a comunicação da indisponibilidade superveniente, sempre que possível, ao usuário diretamente responsável pela inserção do material (art. 20).

Uma das maiores inovações da lei consiste em seu art. 21, que institui a responsabilidade subsidiária do provedor de aplicações quando houver violação de intimidade (pela divulgação de materiais que comportem cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado) acompanhada de notificação promovida pelo prejudicado (inclusive por meio de seu representante legal).

No entanto, tal responsabilização – que já nasce enfraquecida por sua subsidiariedade – somente exsurgirá se não forem tomadas providências diligentes voltadas à indisponibilização do respectivo conteúdo (no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço). . Percebe-se aqui, pois, uma ampla abertura à discricionariedade a respeito do tema (levada a efeito a pretexto da interpretação conferida à expressão "de forma diligente"): não necessariamente promissora, sobretudo quando se tem em mira a também genérica previsão de nulidade da notificação constante do parágrafo único do referido art. 21 – sempre que insuficientes os elementos coligidos pelo notificante (para a identificação específica do material apontado como violador da intimidade).

A lei, contudo, ainda revela um certo "revanchismo" ante o regime autoritário de há pouco: não deixou o legislador de destacar em texto legal – no caput do art. 21 – a sua preocupação em assegurar a liberdade de expressão (e de impedir a censura).

Contudo, a virtude – como bem ressaltara o filósofo – parece, ainda no ambiente cibernético, estar no "equilíbrio" entre os interesses envolvidos. De maneira que a utilização de esquemas de tutela ultrapassados – consagradores de um esquema "civilístico" meramente indenizatório (ainda que travestido em modelos "processuais" pretensamente inovadores, v. g. a “antecipação de tutela”) – não nos parece um caminho suficientemente consagrador da constitucionalmente prometida efetividade da tutela jurisdicional. Contudo, essa é uma crítica a que somente o tempo e o Poder Judiciário poderão oferecer adequada resposta.

Finalmente, cumpre observar que nosso artigo "A visão do Poder Judiciário a respeito dos casos polêmicos do direito do entretenimento na internet" (in A. FRANCEZ, J. C. COSTA NETTO, S. F. D’ANTINO, Direito do Entretenimento na Internet, São Paulo, Saraiva, 2014, p. 219 e seguintes) não contempla a referida legislação, uma vez que a coletânea fora produzida antes da promulgação da "Constituição da Internet".

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* Estevan Lo Ré Pousada é um dos autores do livro Direito do Entretenimento na Internet, da Editora Saraiva.

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* Lilian de Melo Silveira é advogada e sócia fundadora do Instituto Interamericano de Direitos do Autor (IIDA), da Associação Paulista da Propriedade Intelectual (Aspi) e do Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual (IBPI).

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