Migalhas de Peso

A (ir)responsabilidade da indústria do tabaco e seu dever de indenizar

Judiciário não tem aplicado a legislação de defesa do consumidor para a defesa de tabagistas, e tem ignorado o consenso científico sobre o fumo e os danos à saúde.

24/4/2014

A Aliança de Controle do Tabagismo lança nesta semana em São Paulo, na Cinemateca, o documentário "Dois Pesos e Duas Medidas", que conta a história de José Carlos Carneiro, que teve as pernas amputadas por uma doença causada exclusivamente pelo consumo de cigarros. Embora sua imagem tenha sido estampada nos maços como uma vítima do tabagismo, a Justiça não reconheceu seu direito à indenização. Seu caso é emblemático pelo fato de que até hoje nenhuma vítima do tabagismo foi indenizada pelos fabricantes de cigarros no Brasil. O filme traz o depoimento de especialistas nas áreas de Saúde e Direito para promover o debate sobre como o Judiciário não tem aplicado a legislação de defesa do consumidor para a defesa de tabagistas, e tem ignorado o consenso científico sobre o fumo e os danos à saúde.

Uma pesquisa sobre as decisões judiciais proferidas entre 2007 e 2010 revela que o CDC tem sido invocado, na maior parte dos casos, para afastar a indenização pleiteada pelas vítimas do tabagismo, e que o Poder Judiciário tem endossado as teses da indústria do tabaco, com argumentos como o livre arbítrio, ausência de nexo de causalidade, a licitude da atividade e a incidência da responsabilidade subjetiva.

Vale lembrar o poder econômico dessas empresas, para contratar grandes bancas de advocacia e pareceres jurídicos a peso de ouro para a defesa de seus interesses, ainda que contrariamente aos fatos, à ética e ao ordenamento jurídico brasileiro.

De imediato, vê-se que o Judiciário, ao fazer uso de tais argumentos, ignora a Convenção Quadro para o Controle do Tabaco, tratado internacional de saúde pública, que traz em seu preâmbulo o reconhecimento de que o tabagismo é causa de mortalidade, morbidade e incapacidade, que os cigarros causam dependência e possuem compostos tóxicos, mutagênicos e cancerígenos, e a preocupação com o impacto da publicidade no consumo.

Ao ratificar esse tratado, por meio do decreto 5.658/06, o Brasil reconhece estes fatos e os coloca na condição de fatos notórios, que devem ser admitidos em juízo em favor do consumidor.

Ainda, de acordo com a literatura médica, sintetizada nas Diretrizes sobre Tabagismo elaboradas pela Associação Médica Brasileira, existem mais de 50 doenças relacionadas ao tabagismo. Além de ser causa e agravante de doenças, o tabagismo é também uma doença, pois está incluído no grupo dos transtornos mentais e de comportamento pelo uso de substância psicoativa, a nicotina, na CID-10 – Décima Revisão de Classificação Internacional de Doenças.

No tabagismo não há a prevalência absoluta do livre arbítrio. A iniciação se dá predominantemente na adolescência (90% dos fumantes começa a fumar antes dos 18 anos), por isso a OMS considera o tabagismo uma doença pediátrica. E a nicotina é responsável pela forte dependência causada pelo cigarro, sendo consenso na medicina que parar de fumar não é só uma questão de força de vontade.

Além disso, os fabricantes de cigarros não informam clara e adequadamente sobre os riscos do produto, o que viola o dever de boa fé e lealdade nas relações de consumo, afeta o livre arbítrio e a possibilidade de escolha consciente.

Várias decisões judiciais, equivocadamente, consideram que é do conhecimento geral que fumar é prejudicial à saúde. Ora, este argumento ignora décadas e décadas de publicidade e omissão, onde o acesso à informação era limitado. Ainda hoje essa "informação" é genérica e insuficiente, não traz os alertas necessários sobre a variedade e gravidade das doenças que o ato de fumar pode causar, e, portanto, não afasta a responsabilidade da empresa.

Note-se que as imagens de advertência sobre danos do tabagismo são fruto de políticas públicas do Ministério da Saúde, e não de iniciativas dos fabricantes que, por sua vez, contestam judicialmente essas medidas.

A alegação de que a atividade de fabricação e comércio de cigarros é lícita, o que excluiria o dever de indenização, é falaciosa. O ato ilícito referido pela lei não está na atividade econômica em si, mas sim no exercício ou resultado dessa atividade.

Para a análise da responsabilidade civil da indústria do tabaco, não se pode ignorar sua conduta e estratégias historicamente adotadas para disseminar o consumo de cigarros no Brasil e no mundo. Nesse sentido, é referência a sentença americana de 20061, que reconheceu a atuação conjunta e global de nove tabaqueiras (dentre elas a Phillip Morris e a BAT, da qual a Souza Cruz é subsidiária), que se associaram de fato em uma operação com o objetivo de enganar governo e opinião pública para impedir a regulação do cigarro, a divulgação de informações sobre seus malefícios, a responsabilização em ações judiciais, e evitar o surgimento de ambiente socialmente contrário ao tabagismo.

Em qualquer momento histórico que se analise a publicidade de cigarros, a indústria vincula o produto a situações alheias à natureza do cigarro, com incentivo ao consumo e omissão dos riscos, para vender uma promessa de estilo de vida, relacionando o tabagismo com sucesso profissional, independência, auto-realização, e outros temas caros aos jovens, criando uma necessidade artificial de consumo.

No Brasil, a publicidade de cigarros sofreu restrições em 2000, quando passou a ser permitida somente nos locais de venda. Em dezembro de 2011 passou a ser proibida, mas como a lei ainda não foi regulamentada e permite a exposição das embalagens, a publicidade continua a ser muito explorada. Basta uma rápida visita a uma padaria ou loja de conveniência.

O fato é que lealdade, ética e boa fé nunca estiveram presentes na conduta da indústria do tabaco em relação aos consumidores, violando, no mínimo, um dos sustentáculos do ordenamento jurídico representado pelo princípio da boa fé objetiva2, porque além de promover e incentivar o consumo de um produto perigoso, abandona seus fieis consumidores e familiares nos momentos de doença e sofrimento, ao negar indenizações. A indústria do tabaco tem ficado com todo o bônus do seu negócio, deixando o ônus recair sobre a sociedade, consumidores e Estado3.

A responsabilidade civil de fabricantes de cigarros deve ser reconhecida pelos nossos tribunais, já que respaldada pelo ordenamento jurídico brasileiro, mesmo antes do CDC.

São empresas transnacionais que visam aumentar lucros e remunerar investidores e sócios, com um modelo de negócio que provoca danos à saúde pública, responsáveis pela epidemia do tabagismo, que mata mais de cinco milhões de pessoas por ano no mundo.
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1 https://www.actbr.org.br/uploads/conteudo/98_1209-livro-veredicto-final.pdf
2 DELFINO, Lúcio, Responsabilidade Civil da Indústria do Tabaco, em Controle do Tabaco e o Ordenamento Jurídico Brasileiro. Org. Clarissa Menezes Homsi. Porto Alegre: Lumen Juris, 2010, pg. 87.
3 https://www.actbr.org.br/uploads/conteudo/741_custos_final.pdf
DELFINO, Lúcio. A indústria do tabaco e a teoria do abuso do direito. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2582, 27 jul. 2010. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/17059>. Acesso em: 21 abr. 2014
João Lopes Guimarães Júnior, "Livre-arbítrio do viciado: quando os juízes ignoram a ciência", em Controle do Tabaco e o Ordenamento Jurídico Brasileiro. Org. Clarissa Menezes Homsi. Porto Alegre: Lumen Juris, 2010
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* Adriana Carvalho é advogada e coordenadora jurídica da ACTbr - Aliança de Controle do Tabagismo.

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