Migalhas de Peso

O processo eletrônico do século XIX

Por mais inusitado que possa parecer, nossa lei do processo eletrônico reflete essa concepção artesanal... do século XIX!

18/4/2014

O título do texto de hoje pode parecer bem estranho. Ou um erro de digitação. Como falar de processo eletrônico do século XIX se a informática sequer existia à época? Pois é, pode culpar esse autor pelo sensacionalismo. Mas já que veio aqui, seja bem-vindo: sente-se e fique à vontade.

Vou explicar o título inusitado. Se hoje nós vivemos na sociedade de massa, em que são bastante comuns as demandas repetitivas, as ações coletivas e uma organização do Poder Judiciário e dos escritórios que mais parece uma linha produção, assim não era no século XIX.

Há dois séculos atrás, o processo era ainda eminentemente artesanal. Existiam muito menos demandas, seja porque as relações se davam em menor escala e velocidade que hoje, seja porque o Judiciário ainda não se tinha aberto à demanda reprimida na sociedade. Mauro Cappelletti, jurista italiano e um dos principais estudiosos sobre o tema do acesso à Justiça, sequer tinha nascido, o que viria a ocorrer apenas em 1927.

Por mais inusitado que possa parecer, nossa lei do processo eletrônico reflete essa concepção artesanal... do século XIX!

Duvida disso? Então repare no art. 5º da lei 11.419/06, que trata das intimações no processo eletrônico:

Art. 5o As intimações serão feitas por meio eletrônico em portal próprio aos que se cadastrarem na forma do art. 2o desta Lei, dispensando-se a publicação no órgão oficial, inclusive eletrônico.

§ 1o Considerar-se-á realizada a intimação no dia em que o intimando efetivar a consulta eletrônica ao teor da intimação, certificando-se nos autos a sua realização.

(...)

§ 3o A consulta referida nos §§ 1o e 2o deste artigo deverá ser feita em até 10 (dez) dias corridos contados da data do envio da intimação, sob pena de considerar-se a intimação automaticamente realizada na data do término desse prazo.

(...)

§ 6o As intimações feitas na forma deste artigo, inclusive da Fazenda Pública, serão consideradas pessoais para todos os efeitos legais.

Percebeu? A lei permite a dispensa da publicação no órgão oficial para a deflagração de prazos processuais, desde que se verifique a intimação do advogado por meio eletrônico em portal próprio "aos que se cadastrarem" para ter acesso ao sistema.

Alguém pode imaginar que, se o advogado quis se cadastrar, ele deve arcar com os ônus daí decorrentes. Mas não é tão simples assim. Na prática de muitos tribunais, para ter acesso aos autos eletrônicos, o advogado é obrigado a se cadastrar no sistema – e aceitar ser intimado pelo portal, mesmo não querendo isso na verdade. Praticamente uma "venda casada processual": ou aceita ser intimado dessa forma ou não pode ver os autos...

Nem adianta o advogado não entrar no portal para evitar essa intimação, pois o art. 5º, § 3º dispõe que a consulta deve ser feita necessariamente em até dez dias, sob pena de se considerar realizada a intimação tácita, mesmo que o advogado nunca venha a acessar o portal.

Mas por que digo que essa disciplina traduz a mentalidade do século XIX? É que o cadastro de cada advogado é pessoal e intransferível, como se depreende do art. 2º da lei 11.419/06. Isso traz uma enorme diferença em relação à publicação pelo Diário Oficial.

Quando ocorre a publicação pelo Diário Oficial, a tarefa de controlar os prazos pela publicação do nome do advogado é facilmente delegável para empresas de recorte, outros advogados ou mesmo estagiários. Isso já não é possível no sistema de intimação realizado pelo portal do tribunal – não sem o famoso "jeitinho" brasileiro de dar informalmente sua senha para que colegas de trabalho possam desempenhar a tarefa...

A lei do processo eletrônico pressupõe que o advogado – ou mesmo um funcionário público, no caso da Administração – terá tempo para consultar pessoalmente se saiu alguma publicação em seu nome no portal de cada tribunal em que atuar profissionalmente.

Essa presunção talvez fosse verdadeira no século XIX, mas chega a ser risível – atingindo o nível da ficção – nos casos de contencioso massificado do século XXI, em que um escritório pode facilmente receber milhares de novos processos todo mês. Alguém em sã consciência consegue imaginar que os advogados, em tais circunstâncias, terão tempo de consultar pessoalmente os portais de todos os tribunais para ver se foram intimados?

Infelizmente, esse é mais um ponto sobre o qual o projeto do novo CPC se omite, referindo-se apenas à legislação específica vigente.

Assim, não me resta alternativa, senão desejar ao leitor desse pequeno texto um feliz e próspero século XIX. Até a próxima!

_____________

* Andre Vasconcelos Roque é doutorando e mestre em Direito Processual pela UERJ.

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