O Direito e a segurança jurídica como fatores preponderantes
Francis Fernandes*
O direito, a criação da norma jurídica e sua interpretação
Desde os primórdios, a natureza do homem revela que sua sobrevivência só é possível em sociedade, fato que levou Aristótoles a afirmar que "(...) o homem é naturalmente um animal político (...)" (SORMANI, apud ARISTÓTOLES, 2004, p.3).
Encontra-se, pois, a origem do direito na própria natureza do homem, havido como ser social.E é para proteger a personalidade deste ser e disciplinar-lhe sua atividade, dentro do todo social de que faz parte, que o direito procura estabelecer, entre os homens, uma proporção tendente a criar e manter a harmonia na sociedade (RAO, 1999, p. 53).
Porém, não é qualquer comportamento humano passível de regulamentação normativa, mas, tão-somente, determinado fato social que demonstre valor expressivo à sociedade na qual ocorreu.
"(...) onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica, etc.); um valor, que confere determinada significação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e finalmente uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor (REALE, 1995,p.65).
E, nesse sentido, o valor dado ao fato social é exatamente transportado à norma, como bem exemplifica Venosa (2003): diga-se que exista uma grande quantidade de indivíduos numa sociedade, e que eles não são proprietários de suas casas, então, precisam alugá-las. A quantidade de casas é ínfima e, aumentando a demanda, a tendência do preço do aluguel é de ascensão. O legislador, ciente da vulnerabilidade dos inquilinos, cria uma norma tendente a protegê-los, denominada Lei do Inquilinato.
O que há, em suma, é o fato de que o direito pinça certas condutas relevantes no mundo natural ou real, transportando-as para a forma sob a qual deverão ser realizadas, criando um mundo normativo imaginário, denominado mundo do "dever ser".
Para atingir esse objetivo do Direito, para que o Direito tenha a certeza de que existe e deve ser cumprido, joga com predeterminações formais de conduta, isto é, descrições legais na norma que obrigam determinado comportamento, quer sob forma positiva, quer sob forma negativa. A isso se dá o nome de tipicidade.
Os fatos típicos existem em todas as categorias jurídicas, notando-se com mais veemência no campo do Direito Penal, direito punitivo por excelência, em que condutas criminosas reprimidas pela lei são por ela descritas. Só há crime se houver lei anterior que o defina.
Contudo, o fenômeno da tipicidade é universal no Direito. No Direito Privado, seus vários institutos são delineados com uma descrição legal. Daí por que a lei define o que é obrigação, o que é propriedade, como se extingue (VENOSA, 2003, p. 32).
Segundo a abalizada tese citada acima, para que uma conduta seja considerada ilícita, seus atos coordenados devem preencher os requisitos contidos em determinado tipo, ou seja, numa descrição predeterminada da atividade humana.
1) conferir a aplicabilidade da norma jurídica às relações sociais que lhe deram origem; 2) estender o sentido da norma a relações novas, inéditas ao tempo de sua criação; 3) dosar o alcance do preceito normativo, para fazê-lo corresponder às necessidades reais e atuais de caráter social (DINIZ, apud MAXIMILIANO, 2004, p.420).
Ora, o interprete/juiz, ao conferir a aplicabilidade da norma, entender seu sentido e dosar o alcance do preceito normativo, executará essa tarefa de acordo com sua formação humanística angariada até aquele momento, pelo que se pode afirmar que, se dois indivíduos analisarem a redação de um mesmo texto legal, na maioria das vezes o entendimento de sua aplicabilidade será distinto.
Isso ocorre porque não existem verdades absolutas, mas sim a verdade como um juízo de valor humano, mutável de acordo com o sujeito cognoscente que o propõe e por seu conhecimento empírico.
A INFLUÊNCIA EFETIVA DA INSEGURANÇA JURÍDICA NAS DECISÕES DE CRIAR OU EXPANDIR AS EMPRESAS
Nesse ponto existe uma ressalva a ser feita, pois, a divergência radical de interpretação da lei, abordada no tópico anterior, equipara-se à própria desregulamentação da matéria tratada, dada a instabilidade como é aplicada a norma, o que culmina na desconfiança perante o ordenamento jurídico.
É justamente o que ocorre no perfeito exemplo dado por Alexandre Sormani, no qual é estabelecido um jogo e uma regra, sendo esta última alterada após o inicio da partida, ao alvedrio de alguns organizadores do evento:
Imagine-se uma competição cuja regra para vencê-la fosse chegar em primeiro lugar na corrida de obstáculos. Se durante a ocorrência do torneio a regra fosse suscetível de alteração, como, por exemplo, considerar o vencedor o último colocado, certamente afetaria a confiabilidade dos competidores na lisura da competição, frustrando-a (SORMANI, 2004, p. 35).
A divergência radical de interpretações judiciais, analisada sob o enfoque do empreendedor, nada mais é do que a alteração sistemática da regra do jogo durante a partida, traduzindo-se no que se denomina aqui de insegurança jurídica.
Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§ 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:
I – Motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações;
II – por inadimplemento do usuário, considerando o interesse da coletividade.
Analisando-se a redação da norma acima transcrita, não há como pairar qualquer dúvida acerca da legalidade da suspensão do fornecimento de energia quando verificada a inadimplência do usuário, não se os interpretes da norma resolvessem deixar de lado um outro dispositivo legal, o artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor (Lei número 8.078, de setembro de 19990), que assim estatui:
Art. 22 – Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias, ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único – Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código.
Haja vista a vigência dessas duas normas, instaurou-se um contexto de dúvidas quanto à possibilidade de suspensão do fornecimento de energia aos usuários inadimplentes, derivada das mais diversas interpretações judiciais acerca do tema.
MANDADO DE SEGURANÇA - Denegação - Suspensão de fornecimento de energia elétrica no Paço Municipal - Falta de pagamento das respectivas tarifas - Débitos, aliás, objeto de parcelamentos não honrados pela impetrante - Possibilidade da suspensão - Recurso oficial não provido. (TJSP – Apelação Cível n. 60.906-5 - Junqueirópolis - 9ª Câmara de Direito Público - Relator: De Santi Ribeiro - 09.09.98 - V.U.).
MEDIDA CAUTELAR - Liminar - Suspensão - Inadmissibilidade - Fornecimento de energia elétrica à Prefeitura inadimplente - Invocação da exceptio non adimpleti contratus - Não cabimento - Paralisação dos serviços - Medida que causaria irreparável prejuízo à população local - Aplicação, ademais do princípio da continuidade dos serviços públicos - Recurso não provido. (TJSP – Relator: Lair Loureiro - Agravo Regimental em Suspensão de Segurança n. 19.633-0 - São Paulo - 15.09.93).
Mesmo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a controvérsia se alojou por algum tempo, eis que, até o ano de 2002, alguns Ministros desse tribunal ainda defendiam a tese de que a suspensão do fornecimento de energia não poderia ser efetivada no caso de inadimplemento do usuário, como se passa a demonstrar na decisão abaixo consubstanciada, em que foi relator o Ministro José Delgado:
Não resulta em se reconhecer como legítimo ato administrativo praticado pela empresa concessionária fornecedora de energia e consistente na interrupção do fornecimento da mesma em face de ausência de pagamento de fatura vencida.
A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível sua interrupção (STJ – RESP número 442.814).
No entanto, já a partir do ano de 2003, o Superior Tribunal de Justiça posicionou firmemente seu entendimento no sentido de ser possível a suspensão do fornecimento no caso de inadimplemento do usuário, desde que ele tenha sido avisado com antecedência, como se pode depreender da decisão relatada pelo Ministro Humberto Gomes de Barros:
ADMINISTRATIVO – ENERGIA ELÉTRICA – CORTE – FALTA DE PAGAMENTO – É lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor de energia elétrica permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta (Lei 8.987/95, Art. 6º, § 3º, II) (STJ – RESP 363.943).
A decisão acima aventada foi prestigiada, posteriormente, por várias outras exaradas na mesma corte, dentre as quais se pode citar as constantes nos recursos especiais números 257.084; 460.271 e 769.456, pelo que hoje se pode afirmar, sem qualquer dúvida, ser entendimento pacífico no âmbito do Superior Tribunal de Justiça a possibilidade do corte de energia ao usuário que não quita suas contas tempestivamente, o que não impede, por outro lado, que qualquer juiz de primeiro grau decida ao contrário.
A EMENDA CONSTITUCIONAL 45 E A SÚMULA VINCULANTE
CONCLUSÃO
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BIBLIOGRAFIA
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BRASIL. Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências. Publicada no Diário Oficial da União. Brasília, 13 de fevereiro de 1995.
COELHO, Fabio Ulhoa. Manual de direito comercial. 16. Ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 16. Ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
GITMAN, Lawrence Jeffrey. Princípios de administração financeira. 10. Ed. São Paulo: Addison Wesley, 2004.
GRINOVER, Ada Pelegrini. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 7. Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 5. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
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SORMANI, Alexandre. Inovações da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004.
SOUZA, Carlos Aurélio Mota. Segurança jurídica e jurisprudência: um enfoque filosófico – jurídico. São Paulo: LTr, 1996.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 3. Ed. São Paulo: Atlas, 2003.
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