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A rendição da Crimeia

Plebiscito na Crimeia foi uma farsa maliciosamente articulada e financiada por Vladimir Putin.

18/3/2014

O plebiscito na Crimeia foi uma farsa maliciosamente articulada e financiada por Vladimir Putin. As manifestações ocorridas na Ucrânia nos últimos meses, as mais graves desde a independência do país, em 1991, têm razões muito mais profundas do que a recusa do Presidente deposto, Yanukovich, em assinar acordo comercial com a União Europeia. A população estava cansada da falta de oportunidades, das deficiências dos sistemas educacional e de saúde, do patrulhamento ideológico, das violações de direitos humanos e do uso da força no país. O Estado, que deve ser “protetor”, nas mãos do ex-presidente Yanukovich, assumiu o papel de “Estado-Criminoso” e, ao fazê-lo, se colocou em posição inaceitável e perdeu totalmente sua legitimidade.

Uma vez deposto o Presidente, o país ficou sem liderança. O Parlamento ucraniano não conseguiu manter a unidade do país e a hegemonia territorial ficou fragilizada quando a Crimeia ameaçou com a sua separação. A Criméia é considerada uma província “semiautônoma” da Ucrânia. As divisões territoriais remontam a episódios muito anteriores à crise atual. O país, desde o colapso da União Soviética, em 1991, quando conquistou sua independência, está dividido entre o leste e oeste, separação que se reflete também na cultura, na língua e nos laços comerciais.

O russo é falado abertamente em partes do leste e do sul do país. Em algumas áreas, incluindo a península da Criméia, ele é o idioma mais usado. Nas regiões ocidentais, próximas à Europa, o ucraniano é a língua principal e parte da população se identifica com a Europa central. A Ucrânia, portanto, tem laços econômicos, como de outros matizes, tanto com a União Europeia, quanto com a Rússia.

Quando o povo foi às ruas reclamar do governo e destituiu seu Presidente deu por encerrado o contrato social que existia no país, que se justifica somente no interesse racional do ser humano de abdicar da liberdade que possuía no “estado de natureza” para obter os benefícios da ordem política, calcada no respeito e na promoção da condição humana (individual e coletiva).

Rompido o contrato social, o governo é ilegítimo e novo contrato deve ser celebrado pelo povo e novos governantes. E até que isto ocorra, o Estado está à deriva e o poder de volta às mãos do povo. E por esta razão, o povo a Crimeia decidiu que era chegado o momento de decidir seu próprio futuro, isto é, de autodeterminar-se: permanecer parte integrante da Ucrânia ou tornar-se um novo país independente. A Carta da ONU assegura e garante que todos os povos têm o direito de autodeterminação, escolhendo livremente sua condição política e de perseguir seu desenvolvimento econômico, social e cultural sem intervenção ou influência externa de outros países. Todas as pessoas, onde quer que estejam, têm direito a uma nacionalidade e ninguém deve ser arbitrariamente privado dela, nem ter negado o direito de mudá-la.

Contudo, existe diferença entre “autodeterminação” e “anexação” a outro país independente.

O que se viu na Crimeia foi um plebiscito inconstitucional à luz do direito ucraniano, ao qual a Crimeia deve se submeter, e ilegítimo segundo o direito internacional. A província da Crimeia, enquanto parte do território da Ucrânia, não pode ser anexada a outro país. Existem inúmeras implicações geopolíticas, administrativas e institucionais em jogo. Dai por que os resultados do plebiscito realizado na Crimeia são inaceitáveis tanto pelos ucranianos, quanto pela comunidade internacional.

Dito de outra forma, o plebiscito ocorrido na Crimeia, “per se”, é inaceitável. Leva-se a plebiscito uma consulta ao povo para que este diga se quer ou não tal lei, antes que seja promulgada. Diferentemente do referendo que é a consulta feita ao povo após a entrada em vigor de certa lei ou medida do governo. A pergunta proposta ao povo da Crimeia foi se este queria ou não ver seu território anexado à Rússia. Contudo, essa pergunta tem vício constitucional interno. Enquanto província da Ucrânia, apenas seu Parlamento poderia propor um plebiscito e a pergunta deveria ser se o povo da Crimeia quer ou não se tornar independente da Ucrânia. Realizado o plebiscito e dito sim, a Crimeia separar-se-ia da Ucrânia e uma vez transformada em unidade geopolítica independente, com “governo, território e povo” próprios, poderia buscar sua anexação à Rússia, em novo plebiscito.

Somente, assim, estariam cumpridas as formalidades legais constitucionais internas e poder-se-ia esperar o reconhecimento da “independência” e da subsequente “anexação” pela comunidade internacional.

O plebiscito na Criméia sobre sua adesão ou não ao estado russo foi um equívoco orquestrado pelos interesses de Vladimir Putin, o qual trará consequências desastrosas nas relações norte-norte. A corruptocracia russa fez da Crimeia uma região refém, tomou suas terras e sua gente sem cerimônias. Ademais, enfrentou os Estados Unidos e a União Europeia sem pudores e mostrou para o mundo que ainda é possível temer a Rússia.

A resposta vai ser imediata. A União Europeia e os Estados Unidos vão responder à rendição da Crimeia mudando o tom das conversas com Moscou, congelando os bens que seus principais expoentes políticos-partidários-empresariais têm no exterior, sem falar do não reconhecimento da anexação que permanecerá na história como um dos atos mais ignóbeis dos tempos modernos pós-guerra fria.

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*Maristela Basso é advogada e professora de Direito Internacional da USP.


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