O bacharel de direito Joselito Nunes, poeta do Cariri e do Pajeú: Da cachaça literária à conversa sem rodeios.
Jayme Vita Roso*
Homenagem a Rivaldo Paiva1
Trocamos correspondência. Encontramo-nos em botecos. Comemos um bode dionísico, de certa feita. Mais: ambos, cultores da autêntica cultura popular, passamos a ler e a comentar o que cada um escreve e, se Mercúrio o permitir, um dia veremos publicado, mesmo em cordel2.
Os migalheiros têm compromisso com a profissão e com o país, enquanto que os jovens advogados, com a vida, com eles mesmos, com o juramento do grau, com a democracia, com a mudança do Brasil, com a ética em geral, com o respeito ao que é sagrado. Enquanto escriba, com dez lustros3 de inscrição na querida OAB, refogo o passado com o tempero da nostalgia e asso o presente com o calor amoroso da afeição à verdadeira advocacia.
Joselito Nunes é singularíssimo. Por ser ele o que é, como é, não indago por que é, convidei-o e, muito sem amarras, aquiesceu responder algumas perguntas. Impôs condições, prontamente acolhidas, pelas peculiaridades, mas reveladoras do que é, do que compartimos pela autêntica cultura popular.
O local escolhido foi o mercado de São José, no Recife. Ao lado do de casa amarela, também lá, é um ícone4. Trata-se de um edifício construído com componentes de ferro e sua arquitetura foi inspirada nos congêneres franceses de Grenelle e de Paris. Inaugurado no dia 7 de setembro de 1875, no antigo largo da ribeira dos peixes, está fincado no bairro de São José, existindo nas vizinhanças “monumentos relevantes, belíssimas igrejas históricas e uma intensa atividade cultural”5.
Pois escolhemos esse local para o diálogo que, por decisão de Joselito, seria entremeado por poesias e canções, como dantes se fazia. Benzemo-nos. Para incitar os bons fluidos, comemos acarajé (feito de feijão fradinho, que agrada Iansã), além de experimentarmos vatapá (prato consagrado a Orixalá e Oxum). Isso tudo consumido num boteco limpíssimo, com a toalha alva e garçonetes frajolas6, na parte externa, em frente à praça Dom Vital.
Antes, degustaram dessa comida, e de centenas da variada culinária pernambucana, o controvertido Gilberto Freire, além do poeta-maior Ascenso Ferreira e do inolvidável compositor das baladas de minha juventude, Antonio Maria.
Cara a cara, com Baco presente na branquinha sorvida aos golinhos, Joselito disse que a ordem ele determinaria, pois recebera na véspera o temário e as perguntas.
Assim, ele, Joselito, de improviso – uma das formas mais importantes de expressão do ser humano, valioso para a cultura popular – recitou um mote7, em sete, outro em dez, uma sextilha, uma sete linhas e um poema. Tudo em vinte minutos. Lembrei-me, depois de aplausos, tributados com o tributo próprio, que, em 1999, na praça pública, em Pombal, na sua Paraíba, a terra do poeta Leandro Gomes de Barros, assisti espetáculo que guardo. Quando relembro, vibro e me enterneço, e Joselito lembrou Bira Marcolino:
“Livre da prisão, longe dos bivaques e das vivandeiras, pôde o nosso poeta se dedicar integralmente à sua carreira artística.
Gravou logo um disco, um vinil, que hoje, diante dos jovens “cds”, parece aquela bolachona enorme.
Conta Zé Valter, seu irmão, artista plástico e humorista finíssimo, que, quando recebeu aquela montanha (mil discos), Bira se apavorou. Nunca tinha visto tanto disco junto!
— Valter, o que é que vou fazer com tanto disco?
Zé Valter encontrou logo a solução:
— É fácil, Bira, tu enganas o povo com o teu disco!
— Mas, como?
— É o seguinte: todo mundo que comprar um, tu colocas dois dentro da capa” 8.
E, filosofando, repetiu de parceiros:
“‘Isso aqui tá virando uma Sedoma e uma Gangorra’ — Ronaldo Piquinha, saindo da Boate Bambuzinho, em São José do Egito.
(...)
‘— Doutor, essa doença pega?’
‘— Pega, minha filha, a única doença que não pega é braço quebrado e mulher buchuda’. — Dr. Sávio Pires (Tabira-PE), atendendo a uma paciente, num ambulatório em Salgueiro” 9.
Depois, respondeu-me: “O meu nome completo é Joselito Nunes de Farias e nasci numa fazenda chamada Mugiqui, no município de Monteiro, no dia 02 de setembro de 1948. De uma família de dezessete irmãos, dos quais doze estão ainda vivos, meu irmão mais velho tem 81, e eu, o mais novo, estou com 57. Dos meus irmãos, só eu e mais uns três estudamos alguma coisa, e eu aprendi a ler com uns três ou quatro anos numa carta de abc, que meu pai trouxe da feira, numa única noite, sob a luz de um candeeiro, com uma irmã mais velha me ensinando e a fumaça do candeeiro entrando pelas minhas ventas. No outro dia, pela manhã, quando ela foi tomar a lição, percebeu que eu havia decorado todo o conteúdo da carta de abc. Daí eu acho que peguei o embalo, fui decorando e decorando e até hoje não sei se isso é saber ler. Dois dos meus irmãos foram seminaristas em Campina Grande e eu parei de estudar com 17 anos para criar bode, desistindo dois anos depois, quando vim para o Recife, trazido pelo meu irmão Pedro, aquele que o senhor conheceu”.
Joselito passa a cantarolar uma modinha de Zé Marcolino, descoberto por Luiz Gonzaga, nos anos 50. É a belíssima “Ciúmes da Lua”A:
“Lua bela tão querida
Testemunha dos amores
Tocaram nesse teu corpo
Três cabras conquistadores
Te pegaram descuidada
Tiraram do teu perfume
E eu fiquei atormentado
Já pra morrer de ciúme
Também deve estar chorando
O pássaro de Jurutaí
Seresteiro apaixonado
Que tanto canto por ti
Sonhadores suspirando
Tristemente soluçando
Minha querida Jaci
Lá no céu também reclama
Cassimiro de Abreu
Castro Alves também chora
É grande o desgosto seu
Catulo banhado em pranto
E Zé da Luz descontente
Começa a chorar baixinho
Dizendo para Santo Agostinho:
Tomaram a noiva da gente.”
Depois segue, narrando: “Eu estava no segundo ano ginasial, quando fiz o exame de madureza e completei em seis meses o primeiro e segundo graus. Me submeti ao vestibular de direito na Faculdade de Direito e passei com média 7,35. Concluí o curso e nunca tive coragem de advogar. Entrei no serviço público, e vim parar na AGU, oriundo da Universidade Federal Rural, meio a contragosto, onde estou até agora”.
Pausa. Canta, soletrando, em pausa, “Sotto-Vocce”, “Pipoca moderna”B, de mestre Ambrósio, gravada pela Banda de Pífanos de Caruaru e Caetano Veloso:
“E era nada de nem
Noite de negro não
E era né de nunca mais
E era noite de né
Nunca de nada mais
E era nem de negro não
Porém parece que a golpes de pé
De pé, de pão
De parecer poder
E era não de nada além
Pipoca ali, aqui
Pipoca além
Desanoitece amanhã
Tudo mudou”
Continua: “O que mais admiro na poesia popular é o improviso dos cantadores e o seu poder de encantar e se encantar com o mundo que os rodeia. Tive o privilégio de conviver e ser amigo dos maiores cantadores deste século que terminou. Foram, sem dúvida, Severino Pinto e Lourival Batista, dentre muitos outros que ainda estão vivos e são também meus amigos. Para resumir, os cinco melhores cantadores-repentistas que conheci foram, pela ordem: Severino Pinto, Lourival Batista, Manoel Xudú, João Batista Bernardo (este, com 79 anos, esteve conosco semana passada, lançando, aqui em Olinda, um livro seu que ajudei a fazer) e Ivanildo Vila Nova. Escritores daqui que admiro, meio eruditos, meio populares: Ulisses Lins de Albuquerque, José Lins do Rego, Raimundo Carrero, Liêdo Maranhão e Abdias Moura (os últimos três, meus amigos)”.
De repente, pede uma garrafa d’água. Sorve-a, e recita e letra que Xico Bizerra escreveu e Petrúcio Amorim gravou:
“Bom de prosa
Como não sou bom de bolso tenho que ser bom de prosa
Viver falando da rosa, saber cantar o amor
Tenho que ser bom de verso, fazer um monte de rima
Tenho que inventar um clima, qualquer coisa pra espantar a dor
Como não sou bom de banco tenho que ser bom de cama
Manter acesa a chama, ser um bom conquistador
Tenho que ser bom de lero, bom de beijo e de abraço
Dançar dentro do compasso, ter um peito acolhedor
Te peço, fique comigo aqui na minha cabana
Não te prometo ‘titica’ de grana
Mas o meu mais puro amor
Ficando aqui terás verso e poesia
Mil carinhos noite e dia
E a alegria de um cabra namorador
Como não sou bom de prata tenho que ser bom de parola
Tocar a minha viola, ser eterno cantador
Saber cheirar um cangote, ser um pote de doçura
Semeador de ternura, ser balaio de fulô” C.
Assim ele se referiu ao companheiro: “De lá de longe, Doutor Jayme Vita Roso, que deixa as suas ocupações lá no sul-maravilha e vem descobrir, para nós outros, coisas que ainda não tínhamos percebido. Gosto de forró (meu filho Bruno tem uma banda), mas nunca aprendi a dançar (perdi, quando adolescente, todas as minhas namoradas, dentre outros motivos, por causa disso). Acho que o meu amigo Jayme Vita Roso é um homem generoso, honrado e sincero, que ainda vai trazer os seus troços para morar aqui no nordeste, tão grande é o seu amor por essa terra”.
Romântico, lírico, idílico, recita, sem cantarolar, “Cochicho”D, escrita por Xico Bizerra e dedicada “à nega que acolhe os meus gemidos”:
“Ai, como eu gosto desse teu pé-de-ouvido
Que acolhe os meus gemidos
E escuta o meu cantar
Que coisa boa esse poço de segredos
Que desmantela o meu medo
E instiga o meu sonhar
Eita, cangote generoso
Pé-de-ouvido pr’eu gostar
Vem pra cá me dar um cheiro
Vem fincar meu tabuleiro
Demarcar nosso terreiro
Até onde a vista alcançar
Você que ouve minha rima
E o meu mote
Que inspira esse meu xote
E faz a fonte do amor
Vem, me convida
Vou te dar amor sincero
Nessa vida o que mais quero
É também ser teu ouvidor”
Gentilmente, o dono do boteco disse-nos que teria de encerrar porque o mercado de São José já estava fechando as portas. Fomos, ouvindo, ao longe, Genaro, do Acordeon, com Raminho, do triângulo, que ingressavam na Kombi, na praça ao lado.
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Notas bibliográficas:
1 Rivaldo Paiva é bacharel em direito, delegado, jornalista, escritor e diretor do Suplemento Cultural. Publicou: “Como era lindo o meu Salgueiro”, “Uma história de poder” e “Saudades de 60”.
2 O substantivo masculino cordel, nesse caso, é relativo à literatura popular, impressa em livretos de baixo custo, e feita por poetas populares e de escasso valor. In: HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico da língua portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2002. CD-ROM.
3 Lustros significa “no período de cinco anos completos”. In: AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 5ª ed., vol. III. Rio de Janeiro: Editôra Delta S/A, 1964. p. 2.434.
4 Ícone é uma imagem religiosa ou ídolo. In: AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 5ª ed., vol. III. Rio de Janeiro: Editôra Delta S/A, 1964. p. 2.099.
5 As informações sobre o mercado de São José foram extraídas do excelente artigo escrito por ESTEVES, Leonardo Leal. O mercado de São José e seus 130 anos. Suplemento Cultural, out.2005, p.3.
6 O adjetivo frajola é considerado sinônimo de “elegante, bem vestido”. In: AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 5ª ed., vol. III. Rio de Janeiro: Editôra Delta S/A, 1964. p. 1.837.
7 Mote é “a sentença ou pensamento expresso em um ou mais versos que se desenvolve na glosa ou volta”. In: AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 5ª ed., vol. IV. Rio de Janeiro: Editôra Delta S/A, 1964. p. 2.691.
8 NUNES, Joselito. Cariri & Pajeú: outras histórias de lá. Recife: Editora Liber, 2003. p. 80.
9 Ibidem. p. 123.
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Notas discográficas:
A Ciúmes da Lua. Zé Marcolino. Pedra de Amolar a Zé Marcolino. Faixa 7, Videolar.
B Pipoca Moderna. Mestre Ambrósio. Mestre Ambrósio. Faixa 12, Sonopress Rimo da Amazônia Indústria e Comércio Fonográfica Ltda.
C Bom de prosa. Xico Bizerra. Catandores da nação de ‘seu’ Luiz - forroboxote 4. Faixa 6, Gravações Artística Ltda.
D Cochicho. Xico Bizerra. Mulheres cantadeiras de uma nação chamada nordeste – forroboxote 3. Faixa 3, NovoDisc Mídia da Amazônia Ltda.
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*Advogado do escritório Jayme Vita Roso Advogados e Consultores Jurídicos
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