Vale a pena ser coerente: Uma História verdadeira
Jayme Vita Roso*
Parto para Confins – é o que estou fazendo – no dia 8 de dezembro, exatamente, feriado em BH. Comemora-se a ascensão de Maria. É dia religioso, de guarda, como se dizia. Dela, recordo o momento da anunciação com extremado sentimento. Dela, a mensagem de Paul Claudel2, estilizada na peça teatral “L’annonce faite à Marie”. No gélido inverno de Paris, compro uma litografia, em arte pop, com aquela mensagem salvífica, na Galeria “La Tortue”, na rue Jacob, que ainda conservo com afeição. Foi em 1973. Aquela modesta galeria, logo após encerrada, por morte da proprietária, tinha como vizinho o “Comitê de Libertação do Brasil”, com os românticos, sérios e contritos exilados ou auto-exilados. Bem ao lado do gueto judaico, com suas peculiaridades.
Em BH, passarei algumas horas para retratar, com rápidos movimentos de espátula, sem retoques, uma figura peculiar: Raul de Mattos Paixão Júnior.
Franzino, il est bien dans sa peau3, economista de vez em sempre, é um personagem que os jovens advogados, a quem me volto, devem conhecer, porque seus ideais, ainda hoje irretocados, marcam um homem convicto. E é essa convicção em valores e sonhos que faltam aos jovens e, muito mais, aos jovens advogados. Pouco se me dá ou me importa que seja, como sempre foi, um militante de esquerda, não petista. Ele vale como idealista, voltado ao seu país, à gente, ao povo.
Sem preconceitos, peço que o acolham, refletindo sobre seu passado, seus valores, seus ideais e seus sonhos. Sua trajetória foi marcada no aggiornamento do PCB, representando pelos IX e X Congressos do Partido. Nas palavras de Salomão Malina: “Isso levou a que se formasse uma nova Comissão para a elaboração de teses para o IX Congresso. Sediado em São Paulo, a Comissão recebeu colaborações valiosas de inúmeros camaradas, mas participaram dela, mais diretamente, os camaradas Eduardo Rocha, José Antonio Segatto, Luiz Carlos Azevedo e Raul de Mattos Paixão Júnior” 4.
Como o escriba, Raul escreve para a Revista Mercado Comum, editada em BH, sob a batuta de Carlos Alberto.
A forma conveniente, ao que me parece, de apresentá-lo, é dar pinceladas em artigos publicados por ele, de outubro de 2004 até o mais recente, de outubro de 2005.
Em os números 170 e 171, Raul, com fina ironia escreveu: “Crescimento econômico: desta vez, chutando a escada”. Aborda, criticamente, como raríssimos, neste deserto de comentaristas econômicos, a obra do economista sul-coreano chinês Ha-Joon Chang5.
O tema do livro vai contra a maré provocada por FHC e benta pelo petismo: a indispensável intervenção do Estado na economia. A urgente necessidade de afrontar “a mediocridade de não pensar”, ou vulgarmente adotada como “pensamento único”6.
Desse texto, destaco dois elucidados trechos:
“Volto à minha velha obsessão dos últimos quinze anos; este é meu enésimo artigo sobe o tema. Demônio que vem me perseguindo todo esse tempo – a necessidade da retomada urgente do crescimento sustentado da economia brasileira, em franca desaceleração desde a segunda metade de década de setenta – me acordou novamente e me chamou a atenção para o livro de Chang: ‘... uma crítica estimulante dos sermões dos economistas da corrente dominante dirigidos aos países em desenvolvimento’ (‘Charles Kindleberger, professor emérito de Economia, MIT’)”.
“Ao contrário do que nos mandam fazer, todos os países capitalistas atualmente desenvolvidos, quando se encontravam nos primórdios de seu desenvolvimento, praticavam políticas econômicas declaradamente nacionalistas, intervencionistas, ‘e de um vigoroso protecionismo’. Somente passavam a defender o chamado livre-comércio quando se encontravam em posição de liderança incontestável nas áreas industrial e tecnológica. Melhor dizendo: defendiam o livre-comércio, mas não o praticavam”.
Continuando a análise e o comentário do livro de Chang, com o número 171, da Mercado Comum, arremata a segunda parte do artigo em enfoque:
“Passados mais de dois séculos desde Washington e Hamilton, hoje País líder inconteste e ainda incontestável nos campos econômico, tecnológico e militar, os Estados Unidos se ‘esquecem’ de sua própria historia econômica altamente protecionista – ‘produto’ para consumo interno e não para exportação - e pedem ao Brasil que se enforque no patíbulo do ‘livre comércio’ da ALCA. De certa maneira, e ao contrário do que pensava Marx, a História se repete; claro está, em contextos completamente diferentes, seria uma repetição ente aspas, com sinal trocado: o que a Inglaterra, alicerçada na ‘doutrina cosmopolita de Adam Smith’ e na teoria das ‘vantagens comparativas’ de David Ricardo, tentou fazer sem sucesso com os Estados Unidos, este, bom discípulo, está fazendo com sucesso no Brasil, ‘chutando a escada’ da economia brasileira”7.
Entre 16 de março e 30 de abril de 2005, na Mercado Comum, de número 173, publica “A bietéride lulista”8. Escreveu:
“No dia 1º de janeiro deste ano da graça de 2005, completamos a decaetéride fernandista e a bietéride lulista. Transformou-se no próprio anticlímax o confronto da realidade desses mais de dois anos do Governo Lula com a epígrafe acima, onde falta apenas – e ainda – a seguinte variante da frase famosa de Fernando Henrique Cardoso: esqueçam o que falei... Excetuam-se com certeza as frases ‘sou uma espécie de metamorfose ambulante’ e ‘radical é quem ganha a eleição para os pobres e governa para os ricos’. Como o notório independe de prova, este artigo dispensará qualquer comprovação empírica”.
Palavras proféticas no artigo “‘Choque de gestão’ e ‘déficit zero’”9, ao apreciar, honestamente, as pirotecnias de Lula e Aécio Neves, na economia. Disse Raul:
“Não existe no Mundo nenhuma economia capitalista conhecida que não tenha déficit público. A questão substantiva a ser colocada é o destino dado ao déficit público, e não a existência do déficit em si. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Uma coisa é o déficit público eminentemente financeiro, que nada agrega à capacidade produtiva da economia; outra coisa é o déficit público à moda new deal e à moda Plano Marshall, que aumenta a capacidade de investir do setor público na formação bruta de capital fixo, e como tal, indutor do crescimento econômico pelo efeito multiplicador que exerce na geração da renda nacional”.
“Curioso: ao mesmo tempo em que a mídia avassaladora elogia o ‘déficit zero’ de Minas Gerais, elogia também o déficit financeiro – em torno de 2,5% do PIB – nas contas públicas do Brasil como um todo. Somados esses 2,5% a essa coisa nova chamada de superávit primário, eufemismo da palavra juros - em tomo de 4,5% do PIB – chegamos aproximadamente a 7,0% do PIB retirados da carga tributária bruta, da capacidade de investir do setor público, para honrar – este é o termo – o serviço da dívida pública. É lícito e legítimo concluir: déficit eminentemente financeiro pode e deve existir; o déficit público que eu chamaria de real, indutor do crescimento econômico, não pode e não deve existir, no mais puro, atrasado, e nem sempre explicitado figurino FMI”.
Versou “Assuntos diversos”, poucos meses atrás.
Foram temas “de bandidos e de virtuosos”, “da economia da corrupção”; “das heranças malditas; “de golpe e de golpismo” e “da compra da burguesia”. Desta transcrevo: “Se a entrevista do ex-Deputado Federal Valdemar Costa Neto à revista Época desta semana expressar a realidade, se for verdade verdadeira, é a primeira vez na história do capitalismo em que o proletariado compra a burguesia... E com dinheiro vivo!... Esse Brasil surpreende!...”10.
Na edição especial de Mercado Comum, na qual está publicado “O poder de Minas (Mais de 2.500 nomes listados por Setor e Categoria)”, comenta a “Exportação líquida de capitais e o ‘círculo vicioso da pobreza’”11, com argumentos sólidos e irrefutáveis, a miserabilidade do povo:
“Não custa sonhar e especular um pouco, fazendo uma simulação, apesar de este sonho não deixar de traduzir certo masoquismo. Se a economia brasileira tivesse conseguido reter, anualmente, dentro das fronteiras nacionais, apenas um terço (0,69%) da média histórica (2,06%) da renda líquida enviada ao exterior – mantidas todas as demais condições constantes – nosso produto nacional bruto teria sido de US$.847,5 bilhões em 2004, e não 584,7 bilhões, e nosso PNB per capita, de US$.4.727, e não US$.3.261. Como definida, essa simulação não leva em conta, claro, o efeito multiplicador que a retenção teria gerado no conjunto da renda nacional... Aqui reside o paradoxo maior: obediente aos ditames externos, nossa orientação de política econômica tem reforçado esse papel exportador líquido de capitais da economia brasileira, esquecendo-se (?) de que nosso produto nacional bruto por habitante não ultrapassou 3.261 dólares no ano passado... Isto se chama vocação para a pobreza”.
Em BH vazia, encontro Raul, na Praça da Liberdade, embaixo de uma frondosa árvore, deixando a si próprio num estado de tranqüilidade absoluta. O solzinho banha-lhe o rosto.
Com uma lista na mão, ofereço-lhe os nomes e endereços de alguns botecos para o aperitivo, já que o relógio mostrava no seu mostrador cravadas 11:30 horas. Na beira do bairro Savassi, conhecido e consagrado pela boemia alterosa, elegemos o Joe’s Pasta Pub, logo ali, ali, na rua Pernambuco.
Permanecemos, eu com cachaça, ele com vinho chileno, à hora livre e corrida, capaz de nos lembrar que só poderíamos almoçar na Dona Lucinha. Enquanto no Joe’s, de relance ali passaram Rufo Herrera, com seu bandoneón, Tadeu Ventura, com seu sax (e deu “canja”)12, Odette e Jaime, duo consagrado por suas Paisagens Noturnas (cd imperdível) e até Marco Antonio Guimarães, compositor e diretor musical do Grupo Vakti. Não deixei Marco Antonio ir embora, sem soletrar o Peixe Vivo, que embalou toda a época em que éramos felizes com JK. E recordo:
“Como pode um peixe vivo
viver fora da água fria?
Como pode um peixe vivo
viver fora da água fria?
Como poderei viver?
Como poderei viver?
Sem a tua, sem a tua,
sem a tua companhia?”
No restaurante, saboreando o tutu, o quiabo, o torresmo, a farofa, o arroz penteado, perguntava o escriba e Raul respondia.
JVR. Onde nasceu e qual sua formação?
R.M.P.Jr. Nasci em Araçuaí, Vale do Jequitinhonha, de onde é toda minha família, dos quatro lados. Sou formado em Sociologia e Política pela Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG; tenho Especialização em Planejamento pelo ILPES/CEPAL em Santiago-Chile; e Mestrado em Economia pelo CEDEPLAR/UFMG. Com esta miscelânea toda, hoje não sei bem o que sou; talvez um Sociólogo dissidente e um Economista por adoção. Costumo brincar com os amigos economistas que a sorte da Economia são os “não economistas”... O fato de ter estudado Sociologia e Política antes da Economia propiciou-me visão privilegiada, “de fora” da Economia, não tão comum nos dias de hoje.
JVR. Você tem mão viva, que maravilha. Fale de sua mãe, com o mesmo carinho que você externa quando você se refere a ela nas conversas que tem tido comigo.
R.M.P.Jr. Minha Mãe se chama Nahyda e fez 99 anos no dia 29 de novembro, quando fui até Araçuaí para abraçá-la e beijá-la por data tão rara: poucos de nós faremos 99 anos; meu Pai, Raul, por exemplo, não passou dos 64 anos. Ainda é uma sertaneja brava, lutadora.
JVR. Como você decidiu ingressar num partido de esquerda? Quem o levou?
R.M.P.Jr. Para quem nasceu no Jequitinhonha, e com um mínimo de sensibilidade social e política, e com certa dose de humanismo, a esquerda é quase o caminho natural. Não sei bem “como”, nem “quem” me levou. Aqui, para lhe responder, eu vou me lembrar de Ortega y Gasset: o homem é o homem e sua circunstância. À época, minhas circunstâncias me levaram ao então Partido Comunista Brasileiro. Dizem que se chega à esquerda pela razão, pelo coração ou pelo estômago; as três variáveis formaram minhas circunstâncias, à parte as circunstâncias políticas e econômicas daquela metade da década de sessenta. Vou me lembrar também de outro europeu, este, alemão, de nome Willy Brant: para ser um bom social democrata aos quarenta, era preciso ter sido um bom comunista ao vinte...
JVR. Com quem teve congraçamento?
R.M.P.Jr. Com vários companheiros; impossível citar todos; seria injustiça citar apenas alguns; vou me prender a apenas um, Salomão Malina, “judeu, pobre e comunista”, como ele se definiu certa vez para mim. Aprendi muito com Malina sobre a arte da vida e da política. Foi um grande internacionalista, nacionalista e patriota, herói da 2ª Guerra Mundial condecorado pelo Exército Brasileiro. Foi o último Secretário Geral do Partido Comunista Brasileiro.
JVR. Soube que você foi exilado. Poderia contar o fato e as peculiaridades que levaram o governo militar a tomar essa decisão?
R.M.P.Jr. Creio que vou lhe decepcionar, Jayme: não tenho o charme do exílio, nem minha vida “foi tão rica quanto a dos ex-esquerdistas que estão no PSDB”; fiquei por aqui mesmo; fui processado, absolvido; não mais. “Por se acaso”, você sabia que boa parte dos que se auto intitulam ex-exilados nunca foi exilada?
JVR. Por que tantas saudades, expressas nos últimos artigos, de camaradas ou companheiros que estão falecendo neste ano?
R.M.P.Jr. Em primeiro lugar, emoção e tristeza por sua partida para uma viagem sem volta; em segundo, pretende ser uma homenagem e uma apresentação aos que não os conheceram.
JVR. Você conviveu com Paulo Cavalcanti?
R.M.P.Jr. Não conheci Paulo Cavalcanti; tenho dele as melhores referências.
JVR. Qual mensagem você dá para os jovens não se aliarem da política?
R.M.P.Jr. A política é a mais nobre das artes, a mais nobre das atividades humanas. Quem diz não gostar da política e dos políticos é governado – e sempre mal governado – pelos que gostam de fazer política e dela tirar proveito pessoal.
Sorvi as sobremesas e com um café de coador, bem passado, tomei um licor de jabuticaba, fumando o cigarro de palha do Mercado, para lembrar e recordar Bilac Pinto. Enquanto Ministro, era outra época, permitia-se enrolar o fumo em palha de milho e pitar13 um de palha. E como é bom, para quem sabe apreciar as coisas simples, que tornam a vida prazerosa.
Raul deixou-me, embarquei num táxi e, no longo caminho a Confins (vinte e sete quilômetros), dormi. E dormi até Congonhas.
Incorrigível Raul, obrigado pelas palavras, que, honrosamente, vou levar aos jovens advogados e, quem sabe, motivá-los a serem políticos para o bem do nosso querido país.
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Notas e apontamentos
1 Vide Migalhas nº 1154, de 26 de abril de 2005.“A economia prét-à-porter”.
2 “Qui êtes-vous, jeune fille, et quelle est donc cette part que Dieu en vous s’est réservée, pour que la main qui vous touche avec désir et la chair même soit ainsi”. CLAUDEL, Paul. La annonce faite à Marie. 16ª ed. Paris: Gallimard, 1948. p. 15.
3 Expressão coloquial francesa, usada para indicar alguém de bem consigo mesmo.
4 MALINA, Salomão. O último secretário: a luta de Salomão Malina. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2002. p. 185.
5 CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: A estratégia do desenvolvimento. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
6 MATTOS JÙNIOR, Raul de Mattos. Crescimento econômico: desta vez, “chutando a escada”. 1ª parte. Mercado Comum, Belo Horizonte, ano XII, nº 170, p. 27, 1º.out-15.nov.2004.
7 __________. Crescimento econômico: desta vez, “chutando a escada”. 2ª e última parte. Mercado Comum, Belo Horizonte, ano XII, nº 171, p. 11, 16.nov-2004-31.jan.2005.
8 Pospositivo, do grego, “etéride” tem o sentido de ano, que pode ser extensivamente utilizado em compostos em que o formante inicial seja um radical numérico de origem grega. No caso, bietéride. In: HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico da língua portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2002. CD-ROM. O artigo referenciado foi publicado no número 173, da Mercado Comum, entre as datas mencionadas, na página 16.
9 MATTOS JÙNIOR, Raul de Mattos. “Choque de gestão” e “déficit zero”. Mercado Comum, Belo Horizonte, ano XIII, nº 175, p. 22, 1º.jul-31.ago.2005.
10 __________. De assuntos diversos. Mercado Comum, Belo Horizonte, ano XIII, nº 176, p. 19, 1º.set-31.out.2005.
11 __________. Exportação líquida de capitais e o “círculo vicioso da pobreza”. Mercado Comum, Belo Horizonte, ano XIII, nº 177, p. 173, 1º.nov.2005.
12 Canja: palavra que se usa popularmente na gíria, significando “coisa fácil ou agradável à execução”. Ocorre quando um artista comparece a evento não comercial e se dispõe a mostrar sua arte aos presentes, depois de insistentemente solicitado. In: AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 5ª ed., vol. I. Rio de Janeiro: Editôra Delta S/A, 1964. p. 676.
13 O mesmo que fumar ou cachimbar. In: AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 5ª ed., vol. IV. Rio de Janeiro: Editôra Delta S/A, 1964. p. 3.148.
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*Advogado do escritório Jayme Vita Roso Advogados e Consultores Jurídicos
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