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Norma paulistana (15.937/13) é mais uma lei desgarrada que ficará vagando nas placas afixadas no interior dos veículos para soar como novidade e que avança para um desfecho canhestro, sem chances de atender aos anseios do cidadão.

12/1/2014

O prefeito de São Paulo sancionou a lei 15.937/13, que proíbe a utilização de aparelhos sonoros em veículos de transporte coletivo públicos e privados, sem o uso de fones de ouvido, com a finalidade de preservar o conforto acústico dos usuários e combater a poluição sonora. Apesar da lei não explicitar, dá-se a entender que o responsável pelo seu cumprimento vem a ser o condutor do ônibus, micro-ônibus, vans, peruas, lotações e todos os tipos de veículos sobre trilhos.

Assim, se o passageiro não observar a proibição, pela ordem, serão adotadas as seguintes medidas: a) o infrator será convidado a desligar o aparelho; b) em caso de recusa, será convidado a se retirar do veículo; c) frustradas as duas medidas, será solicitado o concurso policial.

A lei anterior (lei 6.681/65) que tratava do assunto, há muito tempo agonizante e fadada ao insucesso, pois somente fazia referência ao uso de rádio de pilhas e que exigia o uso do "auditivo pessoal", agora revogada, não tinha mais conteúdo de aplicabilidade em razão da diversidade de aparelhos produzidos pela mais avançada tecnologia (celulares, MP3 player, etc.). Daí a nova investida legislativa para amparar o passageiro que prefere ouvir o incessante roncar de motores das ruas congestionadas à música em alto volume que não seja de seu agrado.

Mas é bom observar que o condutor do veículo não vem revestido de autoridade formal e nem é detentor do poder de polícia. Apesar de ser o responsável pela condução não exerce, cumulativamente, qualquer outra função disciplinar. E, provavelmente, se tiver que tomar uma das providências elencadas na lei encontrará sérias dificuldades para sua execução, uma vez que o passageiro é também seu fiscal e poderá apresentar reclamação com relação a qualquer comportamento seu que não seja compatível com a função, por exemplo, o excesso de velocidade, ou não parar em pontos para apanhar passageiros.

Começa, então, novo imbróglio. Pode acontecer que o motorista, de imediato, solicite a intervenção policial para as providenciais legais, já que legitimado para tanto. O policial que atender a ocorrência poderá interpretar que o caso se amolda à contravenção penal disposta no art. 42, inciso III da LCP, quando trata da perturbação do trabalho e do sossego alheios, com abuso de instrumentos sonoros e, para tanto, passa a coletar os dados do eventual infrator para a confecção do termo circunstanciado.

Porém, uma leitura mais consistente da lei contravencional e com a dosagem restrita interpretativa, a conduta reclamada caminha para a atipicidade penal: o agente que utilizou instrumento sonoro não perturbou o trabalho ou o sossego (descanso, repouso) dos passageiros e sim poderia, em tese, ter provocado danos físicos ou mentais à saúde humana, circunstâncias não descritas no tipo. A legislação mais adequada seria, cum grano salis, mas também com restrições, a contida no art. 54 da lei 9.605/98, que prevê a responsabilização de quem causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana.

A lei municipal, como é sabido, em razão da hierarquia constitucional, não pode legislar sobre Direito Penal (art. 24, I da CF) e criar novos tipos que se ajustem à tutela dos passageiros no tocante ao conforto acústico e poluição sonora. Assim, o ilícito administrativo, que sequer foi penalizado com aplicação de multa, fica ao desamparo legal e sem qualquer poder intimidativo. É mais uma lei desgarrada que ficará vagando nas placas afixadas no interior dos veículos para soar como novidade e que avança para um desfecho canhestro, sem chances de atender aos anseios do cidadão. Nada mais do que um apelo educativo. Para inglês ver.

Na realidade, não há necessidade de lei para disciplinar a conduta daquele que faz uso imoderado de aparelhos sonoros em veículos de transporte. A vida em comunidade dita suas regras de convivência e a educação é o passaporte para o relacionamento harmonioso, pois traçará condutas uniformes a respeito de determinadas situações. Mas para moldar a postura de forma a provocar uma relevante transformação social, num verdadeiro mutirão de cooperação recíproca, sem que seja necessária qualquer coação legal, a criança deve crescer, segundo o correto aconselhamento de Ross, "dentro de um vasto conjunto de regras de vida que ela absorve gradualmente e que se manifestam como atitudes automáticas que, em dadas situações, levam o selo de validade"1.

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1 - Ross, Alf. Direito e justiça. Tradução Edson Bini, São Paulo: EDIPRO, 2000, p. 87.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, com doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.



* Pedro Bellentani Quintino de Oliveira, bacharel em Direito pela Universidade Mackenzie, advogado.



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