Ao longo de muitos anos e até hoje, para se concretizar o "sonho da casa própria", o instrumento contratual utilizado por grande parte da população brasileira foi o contrato de compromisso (ou promessa) de compra e venda, em que pese a legislação civil não tê-lo regulado como modalidade específica de contrato, mas apenas, na disciplina genérica dos contratos preliminares1.
No entanto, com a já "debutante" lei 9.514/97, a aquisição da propriedade imobiliária passou a contar, também, com outro importante instrumento: o contrato de alienação fiduciária, o qual trouxe significativas vantagens, principalmente para o vendedor/incorporador e/ou agente financeiro, no que toca especialmente às peculiaridades de sua forma de extinção, em comparação com a promessa de compra e venda.
Inicialmente, cumpre dizer que os institutos jurídicos da promessa de compra e venda e a alienação fiduciária são inconfundíveis, haja vista que fazem parte de regimes jurídicos distintos, com particularidades intrínsecas a cada um.
A primeira grande diferença entre eles está no fato de a promessa de compra e venda se constituir como um contrato preliminar autônomo enquanto a alienação fiduciária é um contrato de garantia e, portanto, acessório.
Assim, enquanto pré-contrato, pela promessa de venda, o titular do domínio de um imóvel, promitente vendedor, se obriga a transferi-lo, a título oneroso, ao promitente comprador, até que esse lhe pague a integralidade do preço, fixando-se obrigações recíprocas e mediante o atendimento de determinadas condições.
Dela se originam, portanto, direitos pessoais, de natureza obrigacional, e ainda - sob condição suspensiva - direito real de aquisição sobre coisa alheia, caso seja feito o seu registro no competente cartório de registro de imóveis2, oportunidade em que seus efeitos passam a se operar não só entre os contratantes, mas também perante terceiros, pela publicidade, permitindo, inclusive, o exercício do direito de sequela3 por parte do compromitente comprador.
Outrossim, diante do pagamento do preço, nasce para o promitente vendedor uma obrigação de fazer, representada pela necessária outorga do contrato de compra e venda, por meio do ato formal e solene da escritura, a ser lavrada por tabelião, a qual, uma vez registrada no cartório imobiliário competente, transferirá a propriedade imobiliária para o comprador.
Por sua vez, enquanto contrato acessório de garantia, a alienação fiduciária normalmente é atrelada a um contrato principal, de empréstimo ou financiamento, celebrado pelo devedor fiduciante para aquisição de imóvel, no qual o proprietário (fiduciante) transfere ao credor (agente financeiro, p.ex.), em caráter resolúvel, a propriedade do imóvel4, registrando tal ato jurídico no competente cartório imobiliário5, até que haja o cumprimento das obrigações do contrato principal. Desse modo, com o pagamento da dívida e a quitação dada ao devedor fiduciante, segue-se, assim, com o cancelamento da garantia no registro de imóveis, revertendo-se a propriedade do imóvel ao antigo devedor fiduciante6.
Essas peculiares distinções entre os contratos em questão produzem efeitos diversos no tocante à extinção do vínculo obrigacional, no caso de inadimplemento do devedor.
No compromisso de compra e venda não é possível a resolução automática (de pleno direito) do contrato em virtude de inadimplemento, sendo imprescindível o envio e recebimento efetivo de notificação premonitória ou interpelação judicial ao devedor (promitente comprador) para constituição em mora e sua eventual purgação7.
Além disso, a resolução do compromisso de compra e venda somente se opera por meio de ação judicial8, com o retorno das partes ao estado anterior, na qual o juiz fará a análise de seus pressupostos justificadores, inclusive no tocante à culpa9, como também definirá outras questões importantes decorrentes da relação jurídica estabelecida entre os contratantes, tais como: a reintegração da posse do imóvel ao promitente vendedor; os limites da restituição ao devedor das quantias recebidas, com a dedução de eventual multa contratual compensatória, comissão de corretagem, despesas de comercialização, demais encargos de mora e inadimplemento e a taxa de ocupação, caso o imóvel já tiver sido disponibilizado ao promitente comprador.
Diante dessas exigências impostas notadamente ao compromitente vendedor para efetivar a extinção do contrato pelo inadimplemento do compromitente comprador, a modalidade contratual do pacto adjeto de alienação fiduciária, trazida pela lei 9.514/97, apresenta um procedimento bem mais simplificado para extinção do contrato para o vendedor e/ou agente financeiro, por meio da excussão do objeto da garantia10, independentemente de ação judicial.
Assim, em caso de inadimplemento do devedor fiduciante, este deverá ser constituído em mora, por solicitação do credor fiduciário ao oficial do cartório de registro de imóveis competente, a quem caberá cumprir tal providência, seguindo-se o procedimento previsto nos parágrafos do art. 26 da lei 9.514/97.
Desse modo, caso não seja purgada a mora no prazo legal, o oficial do cartório de imóveis averbará a consolidação da propriedade11 em nome do credor fiduciário, com a correlata extinção da dívida do devedor fiduciante, seguindo-se a venda do imóvel em leilão e a entrega do saldo ao devedor fiduciante, se houver - após a reposição integral da quantia mutuada e encargos12- salvo se não houver lance que alcance o valor da dívida e encargos, hipótese em que, excepcionalmente, o imóvel permanecerá no patrimônio do credor fiduciário13.
Vale dizer que é praxe no mercado de crédito imobiliário estabelecer-se como padrão, para fins de leilão, o preço do imóvel fixado no contrato de compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária14, mediante a sua atualização monetária na época própria, para que seja arrecada quantia superior ao valor do crédito, atendendo-se aos interesses econômicos de ambos os contratantes, haja vista que, assim, o credor poderá receber a integralidade de seu crédito e o devedor poderá recuperar, ao menos, parte do que pagou, atendendo-se, com isso, ao princípio da vedação do enriquecimento sem causa15.
Nesse sentido, cumpre apontar que a alienação fiduciária possui critério legal próprio para acertamento de haveres, conforme previsto nas regras do art. 27, parágrafos 4º, 5º e 6º da lei 9.514/97, não sendo justificada a analogia em relação aos critérios usualmente estabelecidos para extinção do compromisso de compra e venda, firmados por entendimento jurisprudencial16.
Assim, na promessa de compra e venda, a resolução do contrato se processa com o retorno das partes ao statu quo ante, com apuração de haveres definida judicialmente, tomando-se por base a dinâmica jurisprudencial; enquanto que, na alienação fiduciária, independentemente de ação judicial, promove-se a excussão do imóvel por meio de leilão, restituindo-se ao devedor eventual quantia que exceder ao valor do crédito do credor fiduciário.
Por fim, tendo em vista que a propriedade é transmitida em caráter resolúvel ao credor fiduciário, a ele é atribuída a posse indireta do imóvel, permanecendo o devedor fiduciante na posse direta17. Desse modo, caso este não pague a dívida, no todo ou em parte, a consequência natural será a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário, nascendo para ele, ou seus sucessores, o direito à reintegração na posse, com deferimento liminar para desocupação em sessenta dias, mediante a prova do registro da consolidação da propriedade na matrícula imobiliária18.
Portanto, diante dessas particularidades dos modos de extinção por inadimplemento dos contratos em estudo, acredita-se que o contrato de compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária, instituído pela lei 9.514/97, se apresenta como instrumento mais seguro, eficiente e menos burocratizado do que o compromisso de compra e venda, para que vendedores/incorporadores de imóveis e/ou agentes financeiros imobiliários firmem as transações comerciais com seus consumidores.
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1 Artigos 462 a 466, CC/2003. Há algumas outras menções sobre o contrato de compromisso de venda e compra nos artigos 1225, VII, 1.417 e 1.1418 do CC.
2 Art. 5º do Decreto 58/37 e 22 com alteração pela Lei 6.014/73; art. 25 da Lei 6766/79; art. 32, parágrafo 2º da Lei 4591/64 e art. 1471, CC.
3 “...a promessa de compra e venda irretratável e irrevogável transfere ao promitente comprador os direitos inerentes ao exercício do domínio e confere-lhe o direito de buscar o bem que se encontra injustamente em poder de terceiro. Serve, por isso, como título para embasar ação reivindicatória.” (STJ – Resp nª 55.941/DF, 3ª Turma, j. 17.2.1998, v.u.)
4 Art. 22 da Lei 9.514/97
5 Art. 23 da Lei 9.514/97
6 Art. 25 e parágrafos da Lei 9.514/97
7 Decreto 745/69 - Art. 1º Nos contratos a que se refere o artigo 22 do Decreto-Lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937, ainda que deles conste cláusula resolutiva expressa, a constituição em mora do promissário comprador depende de prévia interpelação, judicial ou por intermédio do cartório de Registro de Títulos e Documentos, com quinze (15) dias de antecedência. Súmula 76, STJ - A falta de registro do compromisso de compra e venda de imóvel não dispensa a prévia interpelação para constituir em mora o devedor.
8 Artigo 475, CC
9 Arts. 392 e 396, CC.
10 Excussão é o direito que tem o credor de se fazer pagar pelo produto da venda da coisa dada em garantia.
11 A propriedade, então, deixa de ser resolúvel e torna-se definitiva em favor do credor fiduciante.
12 Artigo 586, CC
13 Artigo 27 e parágrafos da Lei 9.514/97.
14 Artigo 24, VI, Lei 9.514/97
15 Artigo 53, CDC
16 REsp 97.538/SP; REsp 332.947/MG; Súmula 3/TJSP.
17 Artigos 23, parágrafo único e 24, V, da Lei 9.514/97
18 Artigo 30, Lei 9.514/97
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Referências Bibliográficas
CHALHUB, Melhim Namem, “Negócio Fiduciário”; 4ª Edição; Editora Renovar, 2009.
ANTONIO JÚNIOR, Valter Farid, “Compromisso de Compra e Venda”; 1ª Edição; Editora Atlas, 2009.
SCAVONE JÚNIOR, Luiz Antonio; “Direito Imobiliário - Teoria e Prática”; 6ª Edição; Editora Forense, 2013.
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* Sylvie Boëchat é coordenadora da área Cível do escritório Rayes & Fagundes Advogados Associados.