Ao analisar a legislação brasileira em sua literalidade, verifica-se que há a vedação quanto a pactuação de obrigações em moeda estrangeira, conforme prevê o art. 1º1 do decreto 23.501/33, reforçado pelo art. 1º 2 do decreto lei 857/69 e mantido pelos artigos 1º3 da lei 10.192/01 e 3184 do CCl.
Tal vedação tem fundamento na proteção, valorização e defesa à moeda nacional, que, por tratar-se de uma questão de ordem pública, em regra, não pode ser desconsiderada por convenções particulares, sob pena de nulidade.
Entretanto, a vedação à estipulação de obrigações em moedas estrangeiras não é absoluta e contempla exceções que estão previstas o art. 2º do decreto 857/69:
Art 2º Não se aplicam as disposições do artigo anterior:
I - aos contratos e títulos referentes a importação ou exportação de mercadorias;
II - aos contratos de financiamento ou de prestação de garantias relativos às operações de exportação de bens de produção nacional, vendidos a crédito para o exterior;
III - aos contratos de compra e venda de câmbio em geral;
IV - aos empréstimos e quaisquer outras obrigações cujo credor ou devedor seja pessoa residente e domiciliada no exterior, excetuados os contratos de locação de imóveis situados no território nacional;
V - aos contratos que tenham por objeto a cessão, transferência, delegação, assunção ou modificação das obrigações referidas no item anterior, ainda que ambas as partes contratantes sejam pessoas residentes ou domiciliadas no país.
Parágrafo único. Os contratos de locação de bens móveis que estipulem pagamento em moeda estrangeira ficam sujeitos, para sua validade a registro prévio no Banco Central do Brasil.
Desta feita, ressalta-se que para os casos previstos no artigo supracitado é preciso observar apenas que o valor a ser pago deve ser convertido para a moeda nacional na data do pagamento.
Neste cenário, a dúvida quanto à validade de estipulação em moeda estrangeira surge quanto às obrigações que não estão previstas no artigo supracitado as quais ensejam questionamentos que frequentemente são levados aos tribunais pátrios.
Pode-se dizer que com a globalização e o consequente aumento da influência internacional no Brasil, houve uma relativização dos artigos supracitados pela jurisprudência pátria, inclusive pelo STJ5, que tem considerado válidos contratos pactuados em moeda estrangeira, desde que o pagamento seja feito em moeda nacional.
Para esta corrente, a estipulação em moeda estrangeira é juridicamente possível e válida ao considerar que após a realização da devida conversão, o pagamento é feito em moeda nacional, de modo que o montante apenas equivale-se a certa quantidade de moeda estrangeira contratada, não havendo nenhum tipo de restrição ou recusa ao curso forçado da moeda.
Ademais, o fato de o negócio jurídico ser considerado nulo por haver a pactuação em moeda estrangeira, poderia gerar enriquecimento sem causa para uma das partes, eis que seria perfeitamente possível a situação em que uma parte tivesse obtido proveito da obrigação e, posteriormente, alegasse a sua nulidade para ficar desobrigada do pagamento da contraprestação devida.
Desse modo, a jurisprudência tem se inclinado no sentido de não retirar a liquidez, certeza e exigibilidade dos títulos de crédito o fato da forma de pagamento estar estipulada em moeda estrangeira, bastando que seja feita a conversão do valor consignado em moeda nacional para apuração do quantum devido, por meio de simples elaboração de cálculos aritméticos, ou seja, as obrigações são válidas, desde que a cobrança seja feita em real6.
Por outro lado, em relação à utilização dos índices estrangeiros para cálculo dos juros devidos, observa-se que pelo fato de a moeda estrangeira poder ser utilizada como um parâmetro para a estipulação da obrigação, a princípio não haveria óbice para que estes índices fossem utilizados para cálculo dos juros, o que deveria ocorrer nos exatos termos contratados.
No entanto, há de se atentar que, salvo contratos bancários firmados com instituições financeiras, a jurisprudência brasileira considera que juros acima de 12% ao ano são abusivos, e, assim, caso os índices estrangeiros ultrapassem esse percentual, haverá o risco de redução dos juros fixados em contrato.
Portanto, conclui-se que a jurisprudência hodierna considera válidas as obrigações pactuadas em moeda estrangeira, desde que haja a conversão para a moeda nacional na data do pagamento e este seja efetivamente feito em reais, devendo-se ter especial atenção aos índices de atualização utilizados, pois, muito embora seja juridicamente possível a utilização de índices estrangeiros, há o risco de serem considerados abusivos.
____________
1 Art. 1º É nula qualquer estipulação de pagamento em ouro, ou em determinada espécie de moeda, ou por qualquer meio tendente a recusar o urestringir, nos seus efeitos, o curso forçado do mil réis papel.
2 Art 1º São nulos de pleno direito os contratos, títulos e quaisquer documentos, bem como as obrigações que exeqüíveis no Brasil, estipulem pagamento em ouro, em moeda estrangeira, ou, por alguma forma, restrinjam ou recusem, nos seus efeitos, o curso legal do cruzeiro.
3 Art. 1o As estipulações de pagamento de obrigações pecuniárias exeqüíveis no território nacional deverão ser feitas em Real, pelo seu valor nominal.
Parágrafo único. São vedadas, sob pena de nulidade, quaisquer estipulações de:
I - pagamento expressas em, ou vinculadas a ouro ou moeda estrangeira, ressalvado o disposto nos arts. 2o e 3o do Decreto-Lei no 857, de 11 de setembro de 1969, e na parte final do art. 6o da Lei no 8.880, de 27 de maio de 1994;
II - reajuste ou correção monetária expressas em, ou vinculadas a unidade monetária de conta de qualquer natureza;
III - correção monetária ou de reajuste por índices de preços gerais, setoriais ou que reflitam a variação dos custos de produção ou dos insumos utilizados, ressalvado o disposto no artigo seguinte.
4 Art. 318. São nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional, excetuados os casos previstos na legislação especial.
5 Nesse sentido as seguintes jurisprudências:
- STJ: REsp 804791 / MG - RECURSO ESPECIAL- 2005/0209775-0 - Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI (1118) - Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA - Data do Julgamento: 03/09/2009 - Data da Publicação/Fonte - DJe 25/09/2009
- STJ: REsp 900680 / SP - RECURSO ESPECIAL 2006/0245791-4 - Relator(a) Ministro FERNANDO GONÇALVES (1107) - Órgão Julgador T4 - QUARTA TURMA - Data do Julgamento: 01/04/2008 - Data da Publicação/Fonte: DJe 14/04/2008
6 Nestes termos, temos as seguintes jurisprudências:
-TJSP - 9121750-40.2005.8.26.0000 Apelação - Relator(a): Paulo Roberto de Santana - Comarca: São Paulo - Órgão julgador: 23ª Câmara de Direito Privado - Data do julgamento: 29/08/2012 - Data de registro: 30/08/2012 - Outros números: 7048635400.
- TJSP - APL 9182714282007826 SP 9182714-28.2007.8.26.0000 - Relator(a): Araldo Telles - Julgamento: 18/01/2011 - Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Privado - Publicação: 31/01/2011.
- STJ - RESP N° 209.295 - PB 1999/0028310-4 - Relator: Ministro Barros Monteiro – Julgamento: 07/05/2002.
- TJSP - Relator(a): Teresa Ramos Marques - 0085021-66.2008.8.26.0000 Agravo Regimental - Comarca: São Paulo - Órgão julgador: 10ª Câmara de Direito Público - Data do julgamento: 13/08/2012 - Data de registro: 15/08/2012 - Outros números: 8502166200882600005000.
- TJSP - 0001072-51.2002.8.26.0002 Apelação - Relator(a): Ricardo Negrão - Comarca: São Paulo
- Órgão julgador: 19ª Câmara de Direito Privado - Data do julgamento: 06/08/2012 - Data de registro: 14/08/2012 - Outros números: 10725120028260002.
- STJ - 3ª T., REsp 402071, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 29.11.02
- STJ - REsp 804.791/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/09/2009, DJe 25/09/2009.
- STJ - AgRg no Ag 612.405/MG, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUARTA TURMA, julgado em 16/06/2005, DJ 22/08/2005, p. 287.
- STJ - REsp 598342 / MT - RECURSO ESPECIAL - 2003/0180271-4 - Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR (1110) - T4 - QUARTA TURMA – Data do Julgamento: 18/02/2010 – Data da Publicação: DJe 15/03/2010.
____________
* Laura de Almeida Machado é advogada do escritório Chenut Oliveira Santiago Sociedade de Advogados.