Migalhas de Peso

O STF e a constitucionalidade dos planos econômicos

No final de novembro, o STF promete julgar a constitucionalidade dos planos econômicos de estabilização monetária, formulados nas décadas de 1980 e 1990 pelo Poder Executivo brasileiro.

13/11/2013

No final de novembro, o STF promete julgar a constitucionalidade dos planos econômicos de estabilização monetária, formulados nas décadas de 1980 e 1990 pelo Poder Executivo brasileiro. Entre a tese das instituições financeiras e aquela das entidades de defesa dos consumidores, entendo que há alguns pontos que precisam pautar o debate público dessa questão jurídica socialmente relevante.

Naquele momento histórico, os planos de estabilização buscaram restituir algumas das funções típicas da moeda nacional: reserva de valor e unidade de conta. A moeda brasileira não era capaz de transmitir no tempo seu valor e permitir pagamentos diferidos em sociedade. Tampouco ela era capaz de denominar o valor de contratos de forma perene, que eram constantemente reajustados por diferentes índices. A indexação impediu a dolarização da economia. No entanto, ela perpetuou o processo inflacionário e, assim, gerou um grande desafio a formuladores de política pública.

A questão que permeava a burocracia brasileira era: como restituir a confiança social no padrão monetário nacional? O cenário intelectual da época privilegiava os chamados ‘choques heterodoxos’ com a interferência no reajuste de contratos (atos reputados juridicamente perfeitos), notadamente em contratos de depósito bancário como a poupança. Esse é o tema em pauta no STF, que irá impactar o julgamento de diversas ações em outras instâncias do Poder Judiciário.

A racionalidade das leis monetárias, criadas por esses planos (aqui entendidas os decretos e as medidas provisórias convertidas em lei), era a de interferir em contratos celebrados anteriormente à sua vigência, disciplinando seus efeitos futuros. O principal diagnóstico do processo inflacionário brasileiro era o da inflação inercial – a inflação passada tornava-se presente graças à indexação contratual. Dessa forma, a interferência nesse mecanismo automático de reajuste monetário era medida alegadamente necessária de um plano econômico. Foi com essa racionalidade econômica que planos alteraram a forma de reajuste, por exemplo, de contas de poupança.

É importante ressaltar, antes de trazer argumentos propriamente jurídicos, que os custos e os benefícios de políticas públicas são desigualmente distribuídos em sociedade. Nos planos econômicos, aqueles que tinham acesso ao sistema bancário e, especialmente, a contas de poupança sofreram parte dos custos da reforma monetária. Mas essa camada não era a maioria da população adulta brasileira. A grande maioria estava exposta à crueldade cotidiana da inflação, enfrentando filas gigantescas em supermercados no dia do pagamento para evitar a perda do poder aquisitivo de seus salários. O desafio da inclusão financeira, entretanto, ainda persiste: dados recentes apontam que 39,5% da população adulta brasileira não tem acesso a conta corrente ou poupança. Na região Nordeste, esse percentual é de 53%.

O debate sobre os planos econômicos opõe dois modelos típicos de racionalidade, no sentido weberiano: a econômica, voltada a fins (o controle da hiperinflação brasileira) e a jurídica, preocupada com os meios da ação política (o respeito a atos reputados juridicamente perfeitos, uma garantia constitucional). Entretanto, a despeito de se tratarem de racionalidades tipicamente diversas, o direito não se exime da ponderação de resultados. A aplicação minimamente prudente de uma regra de direito envolve a avaliação de seus efeitos no futuro.

O sistema jurídico não se volta somente ao passado para qualificar fatos e identificá-los como juridicamente relevantes – nesse caso, fatos relacionados à política econômica de controle à inflação. O direito também constrói cenários. A interpretação finalista integra o pensamento jurídico e, acima de tudo, decisões jurídicas. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal tem sido ator social extremamente relevante e tem recorrido a esse tipo de interpretação. O operador do direito, notadamente um juiz, recorre não somente a juízos normativos (dever ser), mas também a juízos técnico-empíricos (fatos econômicos, inclusive) com os quais dialoga.

Não estou aqui defendendo a colonização do sistema jurídico pelo sistema econômico. De forma alguma defendo que a razão jurídica deva se pautar pela eficiência de mercado. A colonização da vida social pelo juízo econômico da eficiência seria bastante perversa. O impacto para o sistema jurídico seria a ignorância de certos valores que são tutelados e deveriam ser instransponíveis pela ação política. Como exemplo relacionado a planos econômicos, que ultrapassaram esses limites, podemos citar o bloqueio dos ativos financeiros pelo Plano Collor. A racionalidade de meios é muito cara aos juristas. No entanto, a interpretação de uma regra de direito precisa considerar sua finalidade e seus resultados futuros. Em muitos casos, será o efeito da decisão que garantirá a concretização de valores tutelados juridicamente. O tomador de decisão no sistema jurídico pauta sua ação também pela responsabilidade pelos resultados produzidos. O pensamento jurídico não é (e não deveria ser) unicamente pautado por uma ética de convicção (no sentido dado por Max Weber), ou seja, orientada somente pela crença absoluta em relação a meios independentemente dos efeitos futuros.

Da perspectiva puramente técnico-jurídica, como rebater os argumentos relacionados à interferência política no ato jurídico perfeito, protegido constitucionalmente – os reajustes de contratos de poupança celebrados antes da introdução da lei monetária? Como construir um raciocínio que considere a racionalidade de meios, cara ao direito, mas pondere os resultados da decisão jurídica para o futuro? A proteção ao ato jurídico perfeito concerne os requisitos de validade do contrato no tempo de sua celebração – agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e forma prescrita ou não defesa em lei. Esse é o princípio da segurança jurídica. Ou seja, lei que alterasse requisitos da capacidade do agente ou da forma do contrato não poderia se estender àqueles celebrados antes de sua vigência. No entanto, os normativos relativos a planos econômicos (as leis monetárias) interferiram nos efeitos dos contratos, dentre outros, da poupança – ou seja, nos índices de correção aplicáveis à época do pagamento da remuneração do depósito.

O teor do artigo 2.035 do Código Civil de 2002 também trata dessa questão jurídica: "a validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, […] mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução." Esse mecanismo jurídico, preservando a segurança contratual, insere flexibilidade ao direito para se adaptar a mudanças sociais. O que quero sustentar é que essa racionalidade não é estranha ao direito. Ela integra as normas do direito civil brasileiro e a proteção constitucional ao ato jurídico perfeito. Essa é a racionalidade jurídica que deveria, a meu ver, pautar o debate sobre a constitucionalidade de leis monetárias: uma razão que integre considerações quanto a meios e resultados da decisão jurídica.

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* Camila Villard Duran é Professora Doutora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) - Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito (DFD)

 

 

 

 

 

 

 

 

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