1. O processo de redemocratização do Brasil e a Constituição Federal de 1988
No dia 5 de outubro de 2013 comemoram-se os 25 anos da Constituição Federal do Brasil. É o momento oportuno, portanto, para festejarmos e também avaliamos o atual estágio do casamento entre o texto constitucional e as normas de direito processual civil previstas no CPC de 1973.
Envolto nos festejos dessas "bodas de prata" e, para que possamos refletir sobre o desenvolvimento de um processo civil constitucional com foco em uma atuação moderna e eficaz dos magistrados, torna-se necessário tecer algumas considerações sobre o momento político que envolveu a promulgação da atual Constituição da República e que, por consequência, acabou por influenciar a interpretação do nosso diploma processual civil de 1973.
Embora a nossa Carta Magna tenha sido promulgada quase quinze anos após a entrada em vigor do atual CPC, é inegável que os preceitos constitucionais acabaram influenciando por completo a interpretação e a aplicação da legislação processual.
Vale lembrar que os vinte anos que antecederam a promulgação da Constituição da República foram marcados por intensos conflitos militares e autoritarismo. Era um tempo em que não se admitiam manifestações de cunho democrático e o governo militar, até então intocável, ocupava-se em reprimir, de forma totalmente agressiva, qualquer manifestação que eventualmente pudesse emergir contra os seus interesses.
O Golpe Militar de 1964 marcou de forma insuperável a sociedade brasileira, retardando com gravidade a evolução das nossas instituições democráticas e o nosso sistema jurídico. Além disso, tratava-se de barreira intransponível para que a população pudesse expor, sem qualquer efeito colateral, suas vontades, ideias e esperanças.
Diante de incompreensíveis demonstrações de intolerância, a sociedade, de forma progressiva, passou a se mobilizar e a buscar alternativas plausíveis para a futura instauração de um Estado Democrático de Direito.1
Nesse sentido, enquanto uns defendiam os interesses daqueles que foram expatriados, presos ou viviam na clandestinidade, outros reivindicavam eleições diretas para presidente, com esperança no fim do mórbido período autoritário. Essas pessoas também estavam cientes de que a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte haveria de ser considerada um ato heróico (de valentia). Mesmo assim, muito ainda precisaria ser feito para que se pudesse mobilizar mais gente para a realização daquele tão esperado sonho.
Aos poucos e, com muita obstinação, o sentimento democrático foi tomando conta do povo e mesmo daqueles mais conservadores, que viam no governo militar uma falsa percepção de ordem, progresso e segurança. Entidades de classe, universidades, imprensa e outros membros da resistência chegaram juntos à fácil conclusão de que, para afastar de uma vez por todas o período de “cangaço político” a que o Brasil se via submetido, necessário seria constituir, pelo povo, uma Assembleia Nacional Constituinte.
Contra a vontade dos militares, assim foi feito: a Assembleia Nacional Constituinte foi instaurada em 1º de fevereiro de 19872, fato que deu ensejo à promulgação[3] da nova Constituição Federal, em 05 de outubro de 1988.
Logo após, seguiram-se as eleições diretas para presidente da república, em 15 de novembro de 1989, em dois turnos de votação.
Carlos Roberto Siqueira Castro4, jurista que teve a oportunidade de participar ativamente desse importante momento da história da sociedade brasileira, resume bem um dos objetivos principais da Constituição Brasileira de 1988:
Quanto à Constituição brasileira promulgada a 05 de outubro de 1988, já tivemos o ensejo de salientar que, não tendo resultado, sob ocêo aspecto histórico-formal, de uma ruptura revanchista com as instituições anteriores, qualifica-se como típica carta-compromisso5. Além de descortinar um roteiro extensivo para o atingimento das renovadas metas sociais-democráticas, sua missão mais notória foi, sem dúvida, a de coroar e dar fecho ao processo de transição lenta e gradual projetado pelos arquitetos de declínio da ditadura militar.
Fato é que a Constituição de 1988 coroou o fim da trágica fase de ditadura militar, mas, especialmente, trouxe para a nossa sociedade e para o nosso ordenamento jurídico um ambiente mais sustentável e que permitiria, como assim sucedeu, um acelerado desenvolvimento social, econômico e industrial do país.
Para que se pudesse, então, executar o plano estratégico para o qual foi criada, a Constituição de 1988 se baseou em diversos princípios, que traduziam, à época, as vontades da sociedade. Com esses princípios, em sua maior parte, com forte conteúdo social-democrático, procurava-se estabelecer solidamente a democracia, mas com o escopo também de permitir uma maior consolidação dos direitos fundamentais e sociais.6
A preocupação com a manutenção dos direitos fundamentais foi uma das principais bandeiras da nova Constituição, pois todos sabiam que de nada adiantaria a existência de um Estado Democrático de Direito, se este Estado não tivesse, em sua constituição, a preocupação constante com a ordem social e com a propagação dos direitos fundamentais a todos os indivíduos.
É verdade que, na medida em que os princípios constitucionais possuem alto grau de abstração e pouca densidade, correu-se o risco de as premissas estabelecidas serem esquecidas e, consequentemente, não se materializassem em futuras leis, que serviriam para a efetivação dos preceitos buscados.
Além disso, mesmo não havendo qualquer garantia de que a sociedade e seus políticos se empenhariam em formatar uma nova época (política e social) para o Brasil, houve muito receio sobre quais seriam as consequências da incidência da nova Constituição sobre as leis que já estavam em vigor, no momento da sua promulgação.
Mesmo diante desse cenário de incertezas, a nossa Carta Magna foi amadurecendo e cumprindo o papel para o qual foi criada. E, assim, podemos dizer que, até hoje, cumpre bem os seus objetivos, pois foi dotada de mecanismos de manutenção da democracia e de instrumentos jurídicos que visam evitar ações abusivas por parte do Poder Público, como o mandado de segurança7, o habeas corpus8 e o habeas data9. Até mesmo para evitar que a base constitucional principiológica, de natureza abstrata, não fosse observada pelos governantes, o legislador constituinte também fez prever o mandado de injunção10 como ferramenta de defesa do Estado Democrático de Direito. Dessa forma, colocou-se a “omissão” do Poder Público como situação tão ou mais ofensora quanto às ações abusivas do Estado.
Como indicador de que o poder deve ser exercido pelo povo e pelos seus representantes eleitos de forma democrática, previu-se também o manejo de ação popular11 para permitir que qualquer cidadão pudesse exercer o controle sobre os atos da administração pública.
Vânia Siciliano Aieta12 lembra que os “remédios constitucionais” formam um conjunto de medidas postas à disposição do povo para a manutenção das garantias fundamentais previstas na Constituição. Nas palavras da autora:
O Estado precisa deixar de ser algo misterioso para o povo. O Estado deve ser finalmente, ‘a coisa de todos’ e quanto aos seus mecanismos de controle, deve-se transformar em uma questão que interessa a todo e qualquer cidadão. Os mecanismos de controle da governabilidade precisam se modificar em peças do sistema social como meios de transformação social. Evidentemente, uma sociedade não pode subsistir sem a existência de uma autoridade, de um poder. Mas é também preciso deixar de idolatrar esse poder porque se trata de poder delegado. Quanto à questão da eficácia dos controles, a velha frase ‘dar um passo atrás para alcançar dois à frente’ é perfeita para esse caso. A obediência pode garantir a ordem, mas a resistência fará com que se assegure a liberdade. [Grifos nossos].
Se por um lado a Constituição Federal prevê a existência de diversos mecanismos de controle do poder estatal, foi com a criação do Supremo Tribunal Federal (STF) que a nação brasileira passou a ter a garantia efetiva de que a Carta Magna pátria seria defendida, a qualquer custo.
Ao criar uma Suprema Corte, o legislador constituinte de 1988 fez emergir uma instituição que passaria a ser a maior guardiã dos mandamentos constitucionais e, resultando desta incumbência, defensora dos ideais democráticos.
De certo, de nada adiantaria um novo regramento constitucional, sem que esse cenário pudesse, concretamente, influenciar o restante do ordenamento jurídico, de forma a exigir que todas as leis posteriores tivessem conteúdo alinhado com os dispositivos da nova Constituição.
Além disso, para as leis anteriores a 05 de outubro de 1988, o STF passou a exercer importante função de controle de constitucionalidade, com o fito de evitar que leis com conteúdo constitucionalmente duvidoso pudessem gerar impactos negativos sobre a sociedade.
No que tange ao CPC de 1973, não houve qualquer constatação de que alguns dos seus dispositivos estivessem em desacordo com o que havia sido proposto pelo legislador constituinte. Assim, ao invés de atuar de forma repressiva, o STF apenas procurou dar à nossa lei processual civil interpretação conforme a Constituição Federal.
Como veremos, adiante, a aplicação do CPC passou a ser influenciada pelos preceitos esculpidos na Constituição de 1988, o que, de certa forma, permitiu que se pudesse fazer transpirar, no decorrer desses anos, atitudes condizentes com a formatação de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
- Para ler o texto na íntegra clique aqui
_____________
1 Regina Quaresma e Francisco de Guimaraens, em artigo publicado em obra comemorativa dos princípios da Constituição de 1988 lembram que “O Estado Democrático de Direito é sucedâneo do Estado de Direito (liberalismo clássico) e do Estado Social. Trata-se de um salto dado pelas coletividades políticas, em busca de uma nova concepção histórica de democracia. Atualmente, não faz mais sentido propugnar por uma estrutura de Estado que se baseie somente na legalidade, abstendo-se de determinadas práticas, em respeito aos direitos fundamentais, dividindo-se as funções de Estado entre os poderes. É necessário algo mais do que o mero formalismo jurídico, imposto durante o liberalismo clássico. Também, de nada adianta adotar a forma de Estado Social (de providência) se o mesmo não abrir espaço para que os cidadãos exerçam participação política diretamente. O Estado Democrático de Direito deve estar calcado no princípio da legitimidade, segundo o qual as decisões políticas devem ser tomadas pelos cidadãos e, quando seus representantes o fizerem, devem estes ter meios de controle à sua disposição. Ainda se ressalta estar o Estado Democrático de Direito calcado na concepção de justiça social, garantindo-se a todos os direitos sociais, culturais e econômicos.” (Os Princípios da Constituição de 1988. 2. Ed. Lúmen Júris. Rio de janeiro, 2006. p. 464).
2 Assembleia convocada pela Emenda Constitucional nº 26, promulgada pelo Congresso Nacional, em 27 de novembro de 1985.
3 A Constituição Federal de 1988 possui o seguinte preâmbulo: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.
4 SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto de. A Constituição aberta e os direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 117.
5 SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto de. Os direitos humanos e a defesa da Constituição.,[Aula sapiens proferida ao ensejo da inauguração da Universidade do Norte Fluminense, em Campos, no dia 16 de agosto de 1993]. 3º Milênio. Rio de Janeiro, Ed. da UENF, n. 2, 1994. (Separata).
6 A esse respeito, Marcelo Souza Aguiar esclarece: “[...] os direitos sociais são conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, por ser justamente princípio fundamental, lobriga eficácia máxima, no sentido de que a sua interpretação e aplicação hão de ser levadas à última conseqüência, sob pena de flagrante desrespeito à vontade popular, soberana, expressa, no Brasil, na Magna Carta de 5 de outubro de 1988.” (Revista de Direito Social. Porto Alegre: Notadez, n. 31, julho a setembro de 2008. p. 109).
7 CRFB: “Art. 5º [...] LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas-corpus ou habeas-data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público; [...]”.
8 CRFB: “Art. 5º [...] LXVIII - conceder-se-á habeas-corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder; [...]”.
9 CRFB: “Art. 5º, LXXII - conceder-se-á habeas-data: a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público; b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo; [...]”.
10 CRFB: “Art. 5º, LXXI - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania; [...]”.
11 CRFB: “Art. 5º, LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência; [...]”.
12 AIETA, Vânia Siciliano. Democracia. Estudos em homenagem ao Professor Siqueira Castro. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006. t. II. p. 242. (Coleção Tratado de Direito Público).
______________
*Gustavo Gonçalves Gomes é mestre e doutorando em Direito Processual Civil pela PUC/SP e advogado do escritório SiqueiraCastro.