O tema proposto não é dos mais simples e desafia a compreensão mesmo dos profissionais versados nos aspectos tributários de nosso país. De toda forma, tentarei, de forma sucinta, apontar uma dificuldade central na recente Instrução Normativa RFB 1.397/13.
Primeiramente, é interessante começarmos pelo RTT - Regime Tributário de Transição. Com o advento da lei 11.638/07, o Brasil, em boa hora, aderiu a modelo de escrituração contábil inovador, fundado na experiência internacional e, também, voltado aos interesses dos agentes econômicos, e não somente do Fisco.
Sem embargo, como as mudanças eram muitas e, em alguns aspectos, severas, entendeu por bem o Executivo manter, para objetivos fiscais unicamente, o regramento contábil pretérito, o que ocorreu com a Medida Provisória 449/08, posteriormente convertida na lei 11.941/09.
Ou seja, sob o argumento de uma pretensa "neutralidade fiscal", conseguimos gerar um ornitorrinco contábil, com a adoção de modelo de escrituração moderno, mas, em conjunto, preservando as premissas do passado para atender aspectos tributários. O RTT, em suma, designa esse regime contábil fiscal moribundo, que perdura até os dias de hoje, obrigando as empresas a manter registros contábeis paralelos.
Dentre os reflexos dessa realidade normativa, um surge com evidência: a quantificação do lucro variará de acordo com os objetivos. Para a contabilidade de uma sociedade anônima, por exemplo, há a necessária adequação aos novos parâmetros contábeis, gerando, quando da existência de resultado positivo, o chamado "lucro societário" que valeria para todos os fins, exceto a quantificação do IRPJ e CSLL.
Já para o fisco, o resultado apurado teria de passar por ajustes, produzindo, na hipótese de saldo positivo, o chamado "lucro fiscal". O lucro fiscal não designa o lucro real, base do IRPJ. A modalidade fiscal, tão somente, retrata a descontinuação dos novos parâmetros da contabilidade brasileira, retornando aos critérios do passado para, daí, aplicar-se a legislação tributária com as adições, exclusões ou compensações visando quantificar o lucro real, base para o IRPJ.
Nesse contexto, uma discussão relevante é a isenção prevista no art. 10 da lei 9.249/95, o qual traz a dispensa de imposto de renda sobre lucros e dividendos apurados. Mas de qual lucro se fala? Societário ou fiscal? Essa é a questão posta.
Desde o advento do RTT, muitas empresas, ao interpretar que o regime transitório seria unicamente relacionado à quantificação do IRPJ e CSLL, entenderam que a distribuição isenta de lucros e dividendos a sócios e acionistas seria quantificada pelo lucro societário, o qual, frequentemente, é mais elevado.
Com a edição da Instrução Normativa RFB 1.397/13, a Receita Federal deixa claro seu entendimento, no sentido da base-de-cálculo de tais distribuições isentas ser, unicamente, o lucro fiscal (lucro societário recalculado pela dinâmica contábil anterior antes das adições, exclusões e compensações do lucro real).
O resultado inevitável dessa concepção é a clara insegurança gerada no mercado, haja vista a potencial ação da Receita Federal exigindo, retroativamente, os valores devidos pelas distribuições de lucros e dividendos acima do lucro fiscal.
Pessoalmente, não acredito que a Receita Federal tenha razão. É certo que a lei poderá alterar conceitos do direito privado para fins tributários, desde que não limitadores de competência tributária, e, portanto, nada impede que isso ocorra, por mais indesejável, anacrônico e ineficiente que seja.
Por outro lado, a tributação, justamente para evitar tais inseguranças e imposições indevidas, rege-se pela legalidade estrita, o que impõe a obediência aos preceitos normativos existentes. Na isenção dada pela lei 9.249/95, em momento algum há referência ao lucro fiscal. Sendo assim, o interprete deve-se guiar pelo geral, e não pelo excepcional. Se o novo parâmetro da contabilidade é o lucro societário, é esse que deve ser utilizado.
A lei 11.941/09, no art. 17, com clareza meridiana, expõe o novo regramento contábil como regra geral, o qual deve sofrer ajustes, visando retornar aos parâmetros pretéritos, com a finalidade de apurar o tributo devido, unicamente, e nunca restringir isenção fiscal estabelecida alhures.
Não faz sentido alegar que o RTT, ao ser criado, genericamente, impõe, independente de previsão expressa, uma compreensão própria dos conceitos contábeis vigentes sempre que tratarmos de temas tributários. Ao mesmo tempo em que a lei
poderá alterar conceitos de direito privado, os mesmos devem ser respeitados na ausência de previsão legal expressa. Indiretamente, admitir a posição do fisco seria o equivalente a criar tributo por analogia.
Cumpre notar que a própria lei 9.249/95, no art. 10, ao substituir o art. 46 da lei 8.981/95, expressamente deixou de utilizar como parâmetro, para fins de quantificação da isenção, o lucro real, o que, com alguma facilidade, manifesta a vontade do legislador em fixar a isenção em conceitos contábeis próprios, e não fiscais. Enfim, entendo que a interpretação fiscal, além de equivocada, seguramente não poderia afetar as distribuições já realizadas, eis que firmadas nos estritos limites da lei 9.249/95.
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* Fábio Zambitte Ibrahim é advogado do escritório Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça & Associados.