A lei 10.267/01 introduziu no ordenamento jurídico a obrigatoriedade de realização de georreferenciamento em todos os imóveis rurais do Brasil que sejam objeto de ações judiciais1. Referida lei foi motivada, sobretudo, pela necessidade de conferir maior precisão e segurança ao processo de identificação e delimitação dos imóveis rurais e alterou diversos dispositivos da lei de registros públicos e de outros diplomas.
O georreferenciamento, de forma simplificada, é uma técnica moderna de agrimensura, através da qual é possível documentar de forma precisa e pormenorizada a exata localização no globo terrestre de um bem imóvel. Consiste, pois, na descrição do imóvel através de informações geodésicas de seus vértices, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro, após a devida homologação da precisão posicional pelo INCRA.
Assim, além de haver a padronização dos procedimentos técnicos, a sistemática do georreferenciamento identifica de forma inequívoca os imóveis, na tentativa de impossibilitar a sobreposição de matrículas e a descrição pouco confiável dos imóveis, problemas, diga-se de passagem, outrora bastante comuns no Brasil.
O georreferenciamento, portanto, é exigido tanto para os casos de parcelamento, desmembramento ou alienação de imóveis rurais, quanto para os casos de litígio judicial envolvendo os imóveis.
Entretanto, a exigência do georreferenciamento vem sendo alvo de veladas críticas por parte de proprietários de imóveis rurais de todo o país, porquanto esbarra na ineficiência dos órgãos públicos responsáveis pela homologação do georreferenciamento. Tal fato, que acarreta em enorme demora na consecução dos pedidos submetidos ao INCRA, viola, por óbvio, diversos preceitos constitucionais, como o da eficiência da Administração Pública, da propriedade e da legalidade.
Além disso, a questão relacionada à exigência de realização do georreferenciamento também vem sendo objeto de discussão nos casos de desapropriação, uma vez que contraria os preceitos que regem esse tipo especial de procedimento judicial.
A desapropriação e seu processo são regulados pelos artigos 5º, inciso XXIV, da CF/88 e pelo decreto-lei 3.365/41. O objeto do processo expropriatório se limita, exclusivamente, à discussão acerca do valor indenizatório e da existência de algum vício processual, conforme determinam os artigos 9º2 e 203 do decreto-lei 3.365/41.
E, por conta de sua característica de compulsoriedade, no processo de desapropriação não há transmissão de propriedade, mas sim incorporação do bem ao patrimônio público, o que acarreta no modo originário -- e não derivado -- de aquisição de propriedade.
Sob este diapasão, esclarecedor o pontifício do Professor Hely Lopes Meirelles4 que ensina: "a desapropriação configura uma aquisição originária, porque não provém de nenhum título anterior, e, por isso, o bem expropriado torna-se insuscetível de reivindicação e libera-se de quaisquer ônus que sobre ele incidissem precedentemente, ficando os eventuais credores sub-rogados no preço".
Dessa maneira, percebe-se que a desapropriação engendra verdadeira ruptura da cadeia de sucessão dominial registrada na matrícula. Constitui o processo de desapropriação, em face de seu caráter excepcional, legítima exceção ao princípio da continuidade.
Dessa forma, a aquisição da propriedade pela via originária se dá livre de qualquer gravame, limitação, ônus ou embaraço decorrente de atos anteriores. Não se aplica a tais formas de obtenção da propriedade a regra basilar "nemo plus juris alium transferre potest quam ipse habet" (ninguém pode transferir a outrem mais direitos do que tem), pelo simples fato de que não cabe falar em transmissão.
E é justamente por essas razões que, estando o processo de desapropriação devidamente instruído com documentos necessários para individualizar com precisão a área sub judice, não há necessidade de homologação do INCRA dos documentos apresentados no processo para a procedência da ação.
Portanto, do ponto de vista jurídico, a necessidade do georreferenciamento homologado pelo INCRA não é requisito imprescindível para a propositura (e procedência) da ação, conforme bem observado por JOSÉ CARLOS DE MORAES SALLES5:
“A lei não especifica o que deve constar da declaração de utilidade pública. É óbvio, entretanto, que o decreto respectivo deve individuar com precisão o bem declarado de utilidade pública, a fim de que não haja dúvida sobre o objeto da expropriação.
Se se tratar de bem imóvel, devem ser mencionados, com toda clareza, sua situação, limites e confrontações, bem como, se possível, o número da matrícula ou da transcrição no registro imobiliário competente.”
A fim de pacificar o tema, o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul proferiu importante decisão que, de forma bastante lúcida e clara, aborda o assunto e dá solução conveniente ao aparente conflito de normas existente:
REGISTRO DE IMÓVEIS. DÚVIDA. DESAPROPRIAÇÃO. SENDO A DESAPROPRIAÇÃO FORMA ORIGINÁRIA DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA, DESPICIENDA A EXIGÊNCIA, PARA REGISTRO DO TÍTULO (ESCRITURA), DO GEORREFERENCIAMENTO DO IMÓVEL. POSSIBILIDADE DE ABERTURA DE NOVA MATRÍCULA A PARTIR DA ESCRITURA APRESENTADA A REGISTRO. PRECEDENTES. APELO PROVIDO
(...)
Com razão a parte recorrente. Ao contrário do que entendeu a douta registradora, não é preciso que a apelante apresente o georreferenciamento, memorial descritivo e planilha (além de outros documentos, relativos a períodos pretéritos, como, p.ex., guias de ITR de anos passados) uma vez que a aquisição da propriedade imobiliária pelo expropriante dá-se de modo originário (da mesma forma que ocorre com a usucapião, e.g.), que acarreta na abertura de uma nova matrícula, com novos dados ali insertos a partir do teor da Escritura de desapropriação.
No que pertine ao georreferenciamento, cumpre sinalar tratar-se de ato custoso e demorado, consistente na obtenção das coordenadas do mapa do bem a ser georreferenciados, conhecidos como pontos de controle, sendo estes locais que oferecem uma feição física perfeitamente identificável, tais como cruzamentos de estradas, de rios, cumes de montanhas, etc. Ou seja, em tese visaria a localizar e identificar o imóvel ainda não localizado.
(...)
Com a vênia da douta sentença, tem razão a recorrente. A exigência de toda uma gama de documentação relativas ao imóvel apenas se justificaria se se reputasse o ato como forma de aquisição derivada da propriedade.
(...)
Por corolário, não são necessários ao registro da área expropriada os laudos de georreferenciamento, memorial descritivo e laudos e documentos outros. Logo, a partir da escritura, viável a abertura de nova matrícula para registro da desapropriação em prol da apelante.
(...)
(TJ RS. Apelação Cível nº 70026441790. 19ª Câmara Cível. Des. Rel. José Francisco Pellegrini. Data de Julgamento: 18/08/2009. Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 28/08/2009 – sem grifos no original).
Dessa forma, tornar o georreferenciamento como requisito obrigatório da ação de desapropriação apenas serviria para atrasar a solução da lide e não interferiria em nada no quantum indenizatório, representando ônus desnecessário para quem desapropria e para quem é desapropriado.
Portanto, através da abertura de importante precedente jurisprudencial e pela aplicação de princípios cunhados pela CF, posicionamo-nos no sentido de não entender necessário o georreferenciamento de imóveis rurais que sejam objeto de ações expropriatórias, desde que o imóvel objeto da ação esteja devidamente individualizado e delimitado.
A questão, todavia, ainda prescinde de um maior debate nos Tribunais e somente será consolidada quando o STJ posicionar-se a respeito do tema e pacificar a discussão existente.
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1 - Artigo 225, § 3º, da Lei nº 6.015/73, alterado pela Lei nº 10.267/2001: “Nos autos judiciais que versem sobre imóveis rurais, a localização, os limites e as confrontações serão obtidos a partir de memorial descritivo assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, geo-referenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais.”
2 - “Ao Poder Judiciário é vedado, no processo de desapropriação, decidir se se verificam ou não os casos de utilidade pública”.
3 - “A contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial ou impugnação do preço; qualquer outra questão deverá ser decidida por ação direta”.
4 - Direito de Construir. Hely Lopes Meirelles, 9 ª Edição, 2005. Editora Malheiros, p. 179.
5 - SALLES, José Carlos de Moraes. A Desapropriação à luz da Doutrina e da Jurisprudência. São Paulo. Revista dos Tribunais. 6ªed. 2009. p. 90
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* Júlio Cesar Bueno e Paulo Felipe Martins David são advogados e Patrícia Mendonça de Almeida é estagiária do escritório Pinheiro Neto Advogados
** Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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