A polêmica dessa edição do Campeonato Brasileiro de Futebol é a recente aplicação pela 3ª Comissão Disciplinar do STJD - Superior Tribunal de Justiça Desportiva da pena de partidas com “portões fechados”, ou seja, sem público, e pena de partidas “com venda de ingressos apenas para a torcida visitante”, às equipes do Vasco da Gama e Corinthians.
Sem querer e, na realidade, sem poder examinar o caso concreto que envolveu os dois clubes, até porque não tivemos acesso aos autos e nem somos constituídos no processo, pretendemos apenas, em breve síntese, analisar a inconstitucionalidade e a ilegalidade da decisão que, dentre outras punições, aplicou a pena de partidas com “portões fechados” e pena de partidas “com venda de ingressos apenas para a torcida visitante”:
05.09.13 - PROCESSO Nº 89/2013 – Jogo: CR Vasco da Gama (RJ) X SC Corinthians Paulista (SP) - categoria profissional, realizado em 25 de agosto de 2013 – Campeonato Brasileiro Série A – Denunciados: CR Vasco da Gama, incurso nos Arts. 191 e 213 inciso I § 1º do CBJD; SC Corinthians Paulista, incurso no Art. 213 inciso I §§ 1º e 2º do CBJD. - AUDITOR RELATOR DR. FRANCISCO PESSANHA.
RESULTADO: “Por maioria de votos, multar em R$ 50.000,00 mais a perda do mando de campo por 04 partidas, o CR Vasco da Gama, por infração ao Art. 213 inciso I § 1º do CBJD, a serem cumpridas da seguinte forma: as duas primeiras partidas com portões fechados e as outras duas com venda de ingressos apenas para a torcida visitante, ficando absorvido o Art. 191 na forma do Art. 183, ambos do CBJD, determinando prazo de 07 dias para cumprimento da obrigação, devendo comprovar nos autos do processo o cumprimento da referida obrigação no prazo de 48 horas, sob pena das medidas previstas no Art. 223 do CBJD, contra o voto do Auditor Dr. Gustavo Teixeira, que aplicava a perda de mando de campo por 02 partidas; por unanimidade de votos, multar em R$ 80.000,00 mais a perda do mando de Campo por 04 partidas, o SC Corinthians Paulista, por infração ao Art. 213 inciso I §§ 1º e 2º do CBJD, a serem cumpridas da seguinte forma: as duas primeiras partidas com portões fechados e as outras duas com venda de ingressos apenas para a torcida visitante, determinando prazo de 07 dias para cumprimento da obrigação, devendo comprovar nos autos do processo o cumprimento da referida obrigação no prazo de 48 horas, sob pena das medidas previstas no Art. 223 do CBJD.”
Veja que pretendemos trazer ao debate apenas o ponto específico em questão, sem avançar no debate técnico-fático-jurídico sobre os demais temas que envolvem o processo, especialmente, o cumprimento das determinações do Estatuto do Torcedor, as responsabilidades de mandante e visitante, bem como o ônus probatório processual para a aplicação da pena.
Assim, o presente estudo restringe-se apenas à comprovação de que não existe no ordenamento jurídico-desportivo-brasileiro que rege o Campeonato Brasileiro de Futebol de 2013 a previsão a pena de partidas com “portões fechados” e pena de partidas “com venda de ingressos apenas para a torcida visitante”.
Começando pelo princípio da legalidade, previsto no artigo 5º, inciso II da CF, que diz respeito à obediência às leis. Por meio dele, ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei.
Tal princípio constitucional também está presente no CBJD - Código Brasileiro de Justiça Desportiva, em seu artigo 2º, inciso VII:
Art. 2º A interpretação e aplicação deste Código observará os seguintes princípios, sem prejuízo de outros: (Redação dada pela Resolução CNE nº 29 de 2009).
VII - legalidade;
A lei Pelé (9.615/98, com alterações), em seu artigo 50, expressamente estabelece, na forma de numerus clausus (rol taxativo), quais são as penas que poderão ser aplicadas aos infratores pela Justiça Desportiva, não existindo, dentre elas, a de “portões fechados” e a de partidas “com venda de ingressos apenas para a torcida visitante”:
Art. 50. A organização, o funcionamento e as atribuições da Justiça Desportiva, limitadas ao processo e julgamento das infrações disciplinares e às competições desportivas, serão definidos nos Códigos de Justiça Desportiva, facultando-se às ligas constituir seus próprios órgãos judicantes desportivos, com atuação restrita às suas competições. (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).
§ 1o As transgressões relativas à disciplina e às competições desportivas sujeitam o infrator a:
I - advertência;
II - eliminação;
III - exclusão de campeonato ou torneio;
IV - indenização;
V - interdição de praça de desportos;
VI - multa;
VII - perda do mando do campo;
VIII - perda de pontos;
IX - perda de renda;
X - suspensão por partida;
XI - suspensão por prazo.
Tal dispositivo é reproduzido pelo artigo 170 do CBJD:
Art. 170. Às infrações disciplinares previstas neste Código correspondem as seguintes penas:
I - advertência;
II - multa;
III - suspensão por partida;
IV - suspensão por prazo;
V - perda de pontos;
VI - interdição de praça de desportos;
VII - perda de mando de campo;
VIII - indenização;
IX - eliminação;
X - perda de renda;
XI - exclusão de campeonato ou torneio.
O artigo 213 do CBJD prevê que os clubes que deixarem de tomar providências no sentido de prevenir e reprimir desordens, poderão ser apenados com a perda do mando de campo, sendo que o artigo 175, em seu parágrafo 2º determina a forma de cumprimento da pena de perda de mando. Aqui também em referidos artigos não constam, como não poderia constar já que a “lei maior” assim não prevê em seu rol taxativo, as penas de “portões fechados” e de partidas “com venda de ingressos apenas para a torcida visitante”:
Art. 213. Deixar de tomar providências capazes de prevenir e reprimir: (Redação dada pela Resolução CNE nº 29 de 2009).
I - desordens em sua praça de desporto; (AC).
II - invasão do campo ou local da disputa do evento desportivo; (AC).
III - lançamento de objetos no campo ou local da disputa do evento desportivo.(AC).PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais). (NR).
§ 1º Quando a desordem, invasão ou lançamento de objeto for de elevada gravidade ou causar prejuízo ao andamento do evento desportivo, a entidade de prática poderá ser punida com a perda do mando de campo de uma a dez partidas, provas ou
equivalentes, quando participante da competição oficial. (NR).§ 2º Caso a desordem, invasão ou lançamento de objeto seja feito pela torcida da entidade adversária, tanto a entidade mandante como a entidade adversária serão puníveis, mas somente quando comprovado que também contribuíram para o fato. (NR).
§ 3º A comprovação da identificação e detenção dos autores da desordem, invasão ou lançamento de objetos, com apresentação à autoridade policial competente e registro de boletim de ocorrência contemporâneo ao evento, exime a entidade de responsabilidade, sendo também admissíveis outros meios de prova suficientes para demonstrar a inexistência de responsabilidade. (NR).
Art. 175. A entidade de prática punida com a perda de mando de campo fica obrigada a disputar suas partidas, provas ou equivalentes, na mesma competição em que ocorreu a infração.
§ 1º Quando a perda de mando de campo não puder ser cumprida na mesma competição, deverá ser cumprida em competição subsequente da mesma natureza, independentemente da forma de disputa. (NR).
§ 2º A forma de cumprimento da pena de perda de mando de campo, imposta pela Justiça Desportiva, é de competência e responsabilidade exclusivas da entidade organizadora da competição, torneio ou equivalente, devendo constar, prévia e obrigatoriamente, no respectivo regulamento. (Incluído pela Resolução CNE nº 11 de 2006 e Resolução CNE nº 13 de 2006)
Por fim, temos o regulamento Geral das competições da CBF que, em seu artigo 67, apenas regulamenta como que deverá ser cumprida a pena de perda de mando de campo, não possuindo em sua redação, como também não poderia mesmo ter, qualquer menção a “portões fechados” e “venda de ingressos apenas para a torcida visitante”:
Art. 67 - Nos casos em que um clube for punido com perda de mando de campo, caberá exclusivamente à DCO determinar o local onde a partida deverá ser disputada.
§ 1º - A cidade do estádio substituto deverá estar situada a uma distância superior a 100 km da cidade sede do clube, observados os padrões rodoviários oficiais.
§ 2º - O estádio substituto poderá situar-se em outro estado, na inexistência de alternativa aceitável no estado de origem, mediante análise e aprovação da DCO.
§ 3º - A DCO somente executará a pena de perda de mando de campo, na partida que venha a ocorrer após decorridos dez dias da decisão da Justiça Desportiva que a impuser, tendo em vista os prazos necessários para as ações logísticas relacionadas com a mudança do local da partida, inclusive emissão e venda de ingressos, considerando os prazos estabelecidos pela Lei nº 10.671/03, e ainda considerando as necessidades de reservas de vôos e hospedagem das delegações dos clubes envolvidos.
§ 4º - A DCO deverá comunicar formalmente o novo local da partida resultante do cumprimento da pena da perda do mando de campo, no prazo de três dias decorridos da data do julgamento.
Ainda no CBJD o artigo 283 consagra o princípio Nullum crimen, nulla poena sine lege stricta, que significa a proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pela analogia:
Art. 283. Os casos omissos e as lacunas deste Código serão resolvidos com a adoção dos princípios gerais de direito, dos princípios que regem este Código e das normas internacionais aceitas em cada modalidade, vedadas, na definição e qualificação de infrações, as decisões por analogia e a aplicação subsidiária de legislação não desportiva. (Redação dada pela Resolução CNE nº 29 de 2009).
Dessa forma, não há que se falar em utilização de outras legislações, regulamentos ou normativos, ainda mais internacionais, a justificar a aplicação de penas inexistentes em nosso ordenamento-jurídico-desportivo.
É certo que no Código Disciplinar da FIFA (Fédération Internationale de Foot-ball Association), entidade máxima do futebol mundial, há a previsão em seu rol taxativo tanto da pena de perda de mando (artigo 251), como a de portões fechados (artigo 242). As penas são previstas em artigos separados, pois são punições distintas. Já a pena de “partidas com venda de ingressos apenas para torcida visitante” sequer é prevista. Porém, o próprio Código, em seu artigo 2º3 é expresso a limitar a sua aplicação às partidas e torneios organizados pela FIFA.
Assim, em breve síntese, conclui-se que:
1) O princípio constitucional da legalidade deve ser respeitado em todas as esferas e instâncias jurídicas, inclusive no Campeonato Brasileiro de Futebol;
2) No rol taxativo do artigo 50 da lei Pelé não existe a previsão de penas de “portões fechados” e de “partidas com venda de ingressos apenas para torcida visitante”, muito menos existe no Código Brasileiro de Justiça Desportiva e no regulamento da competições da CBF;
3) Construção doutrinária de que nos regulamentos da FIFA há a previsão da pena de portões fechados não pode servir de suporte jurídico, não só pela aplicação do princípio nullum crimen, nulla poena sine lege stricta, como também porque o legislador-desportivo brasileiro, ciente dessa previsão, dentro de sua legal e constitucional autonomia (artigo 2174 da CF), a preteriu em detrimento de outros meios punitivos.
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1 25 Playing a match on neutral ground
The obligation to play a match on neutral ground requires an association or a club to have a certain match played in another country on in a different region of the same country.
2 24 Playing a match without spectators
The obligation to play a match behind closed doors requires an association or a club to have a certain match played without spectators.
3 Scope of application: substantive law
This code applies to every match and competition organised by FIFA. Beyond this scope, it also applies if a match of? cial is harmed and, more generally, if the statutory objectives of FIFA are breached, especially with regard to forgery, corruption and doping. It also applies to any breach of FIFA regulations that does not fall under the jurisdiction of any other body.
4 Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:
I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;
II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;
III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional;
IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.
§ 1º - O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.
§ 2º - A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.
§ 3º - O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.
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* Felipe Legrazie Ezabella é advogado, sócio-fundador do IBDD - Instituto Brasileiro de Direito Desportivo e especialista em Administração Esportiva pela FGV/SP.