Migalhas de Peso

Estudo jurídico do programa Mais Médicos

O desenvolvimento nacional deve ser operado de forma sustentável, compreendido com maior alcance jurídico e com as luzes que lhe promove a Constituição Federal.

12/9/2013

1 . Introdução

Uma política pública de governo

Guardado a sete chaves, após pressão política do Congresso Nacional, que ameaçava barrar a Medida Provisória que instituiu entre nós o programa Mais Médicos, o Ministério da Saúde divulgou no final da tarde de 27 de Agosto de 2013, em seu portal na internet, o 3º Termo de Ajuste ao 80º Termo de Cooperação Técnica para desenvolvimento e ampliação do acesso da população brasileira à atenção básica de saúde. Este aditivo é firmado pela União, por meio do Ministério da Saúde, com a OPAS - Organização Panamericana de Saúde, da OMS - Organização Mundial da Saúde, com representação em território nacional, inclusive.

O termo aditivo tem como objeto o programa de cooperação técnica daquela organização para a participação de médicos cubanos no projeto Mais Médicos para o Brasil. Entre outros relacionados com a gestão e planejamento do programa, compete ao governo brasileiro garantir aos médicos participantes todos os documentos migratórios pertinentes e necessários para a permanência do estrangeiro em território nacional, abertura de conta corrente, cadastro de pessoa física e inscrição provisória no CRM - Conselho Regional de Medicina. Além disso, oferecerá o governo Federal cursos de especialização por instituição pública de ensino superior, pelo prazo de três anos, garantirá, ainda, transporte dentro do território nacional, segurança, saúde, e, em caso de morte, repatriação do corpo, mediante liberação da documentação de suporte. Sem prejuízo da bolsa, o médico participante gozará de 30 dias de recesso por ano. À Organização, por seu turno, caberá, além de apoio logístico e técnico para implementação do programa, a seleção dos médicos cubanos à vista de determinados requisitos específicos previamente disciplinados no termo, bem assim lhes garantir cobertura securitária e de seguridade social. Em nenhum momento se faz obrigação da Organização comprovar ao Brasil o efetivo valor repassado ao médico participante do programa.

Nota de empenho específica, apenas neste exercício 2013, serão destinados à Organização aproximadamente, R$ 511.000.000,00, dos quais, R$ 1.309.7700,00 para diárias, R$ 12.242.500,00 para passagens aéreas, R$ 469.000.000,00 para serviços de pessoas físicas, R$ 4.073.000,00 para serviços de pessoas jurídicas e R$ 24.331.000,00 para remuneração da própria OPAS. Por fim, não menos importante, na cláusula 7ª do termo aditivo, o Brasil assume toda a responsabilidade civil e administrativa para o caso de qualquer reclamação de terceiros, médicos participantes e assessores, com isenção total e completa da OPAS/OMS e seus peritos, agentes e funcionários. Com alguns erros de português, outros de digitação, o termo vigerá pelo prazo de três anos, prorrogável por período indeterminado, se comum o acordo, podendo ser rescindido pela OPAS caso se demonstre inexequível seu objeto, bastando, para tanto, notificação por escrito ao Ministério da Saúde, após ajustes de contas e devolução dos valores porventura não utilizados para aplicação no programa. Abre mão o país, portanto, do regime de exorbitância comum aos contratos administrativos, até porque instituída cláusula arbitral vazia para resolução de conflitos que porventura possam surgir.

Sustenta esta política pública de governo a MP 621/13, que instituiu o Programa Mais Médicos, com a finalidade de formar recursos humanos na área médica para o SUS - Sistema Único de Saúde e sob diretriz dos seguintes objetivos: diminuir a carência de médicos nas regiões prioritárias para o SUS, a fim de reduzir as desigualdades regionais na área da saúde, fortalecer a prestação de serviços na atenção básica em saúde no país, aprimorar a formação médica no País e propiciar maior experiência no campo de prática médica durante o processo de formação, ampliar a inserção do médico em formação nas unidades de atendimento do SUS, desenvolvendo seu conhecimento sobre a realidade da saúde da população brasileira, fortalecer a política de educação permanente com a integração ensino-serviço, por meio da atuação das instituições de educação superior na supervisão acadêmica das atividades desempenhadas pelos médicos, promover a troca de conhecimentos e experiências entre profissionais da saúde brasileiros e médicos formados em instituições estrangeiras, aperfeiçoar médicos para atuação nas políticas públicas de saúde do País e na organização e funcionamento do SUS e estimular a realização de pesquisas aplicadas ao SUS.

A MP trata da autorização para instalação de cursos de medicina no país, traça novas diretrizes para formação do médico brasileiro para aqueles que ingressarem no curso de medicina após 1º de janeiro de 2015 e, depois, trata especificamente do projeto Mais Médicos para o Brasil, oferecido, o que de interessante para o tema que nos é proposto, com médicos formados em instituições de educação superior estrangeiras, por meio de ‘intercâmbio médico internacional’, instituto jurídico criado com a edição desta Medida Provisória. Daí porque se definiu que médico participante é aquele intercambista ou médico formado em instituição de educação superior brasileira ou com diploma revalidado; e médico intercambista é aquele formado em instituição de educação superior estrangeira com habilitação para exercício da medicina no exterior. São condições para a participação do médico intercambista no Projeto Mais Médicos para o Brasil, a apresentação de diploma expedido por instituição de educação superior estrangeira, a apresentação de habilitação para o exercício da medicina no país de sua formação e conhecimentos de língua portuguesa.

Colocadas estas premissas, mormente as bases pelas quais se vale o governo Federal para lançar política pública em busca de respostas ao ecoar das ruas e das mídias sociais manifestadas em junho e julho deste ano, quando a deficiência da prestação pública de saúde se mostrou uma das bandeiras cobradas, cumpre analisar o programa do ponto de vista técnico-jurídico, bem assim o regime constitucional aplicável na espécie. Para tal desiderato, devem ser afastadas as paixões, olvidados os atos de agressividade que, infelizmente, foram noticiados contra os médicos cubanos que ascenderam ao programa (que, evidentemente, não possuem culpa alguma da possibilidade de trabalho no Brasil) e, principalmente, esquecidas – com grande frustração de nossa parte – as mazelas e omissões tantas que levaram a administração pública Federal a chegar neste patamar, qual seja, valer-se de profissionais estrangeiros para, superada a evidente falta de planejamento e infraestrutura no setor, lograr a possibilidade de prestação de serviço público de saúde em rincões brasileiros, em que pesem não menos graves os problemas enfrentados pela saúde em centros urbanos como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza e, assim em diante, nas demais capitais e grandes cidades deste país. Noticia-se quase diariamente que na maior metrópole das Américas, leva-se de seis a oito meses para agendamento de exames básicos pelo SUS, como tomografias e cardiogramas.

Choque constitucional de valores: finalidade x sustentabilidade

Com este exercício, fundamental para o operador de Direito, buscaremos evitar, em um primeiro momento, que sejam confundidos e franqueados ao Poder Público simples justificação funcional dos fins (ausência de médicos em 700 municípios espalhados pelo país), os quais deveriam ser sempre a cura do interesse público primário, com utilização de medidas, em tese, incompatíveis com o sistema posto objetivo e que, no final das contas, transgridem interesses e direitos outros, igualmente, importantes e que também estão a merecer correta conformação jurídica. Isso nos remete, obrigatoriamente, à clássica lição de Alexy acerca da teoria da ponderação e proporcionalidade dos meios para a persecução dos fins desejados: "Los princípios son mandatos de optimización com respecto a las posibilidades jurídicas y facticas. La máxima de la proporcionalidad em sentido estricto, es decir, el mandato de ponderación, se sigue de la relativización com respecto a lãs possibilidades jurí-dicas. Si se concibe positivamente al principio subya-cente a los derechos de libertad como la mayor oportunidad posible de despliegue de la personalidad otorgada al individuo por la Constitución, entonces toda regulación exagerada anula la posibilidad de maximización de oporunidades y es por ello constitucionalmente ilegítima" (ALEXY, 2001).

Soma-se a todo este complexo panorama, um segundo enfrentamento do tema, o quão distante poderia seguir a discricionariedade do administrador público em eleger este programa – e não aquele (!) – em detrimento dos princípios da Razoabilidade, Eficiência e daqueles já há muito estabelecidos, desde 1990, pela lei do SUS, tal como realça o acesso universal e igualitário ao serviço público de saúde, direito fundamental e dever premente do Estado. Ao que consta, o governo Federal não ouviu importantes segmentos do tecido social e fez vistas grossas para a Administração Democrática ou Participativa, aquela em se prefere a gestão equilibrada e ‘temperada’ da coisa pública, ouvidos previamente a sociedade civil, os técnicos do governo, a Agência Reguladora e, principalmente, o Legislativo.

Preferiu-se, ao contrário, uma sonora imposição de programa de governo de grande impacto jurídico e social, para depois, forte nos resultados por vezes de cunho político apelativo, não sem antes se escorar no rolo compressor da máquina estatal, seja a título de publicidade, seja a título de acomodação da base no Congresso, garantir, inclusive no Judiciário, a manutenção da política pública originária 'custe o que custar'. Isso se mostra ainda mais claro no exato momento em que se ouve a presidente da República, ao rechaçar e condenar os atos de agressões escritos e verbais perpetrados contra os médicos cubanos – acertadamente – afirmar que os estrangeiros somente são ‘convocados’ em razão do médico nacional rejeitar as regiões de difícil, o que deixou transparecer, em um momento de desabafo, uma possível amargura ou uma quase retaliação contra aqueles que se debelaram, agressivamente, contra a chegada dos médicos cubanos.

Este sobressalto – este pulo no planejamento adequado do serviço público – gerou, até o momento: ações judiciais espalhadas pelo país, pelas quais entidades regionais de classe questionam a validade do programa e exigem do Judiciário a declaração de desobrigação de expedição de autorização para atuação de médico estrangeiro; duas ações no Supremo Tribunal Federal, pelas quais se argui a inconstitucionalidade da MP 621/13, com liminares indeferidas e mérito encaminhado ao Tribunal Pleno; a visita quase obrigatória do ministro da Saúde ao Tribunal de Contas da União, cujo Presidente daquele Sodalício de controle já afirmou desconfiar da legalidade das medidas até então tomadas; a visita da presidente da República ao Congresso Nacional, onde, inclusive, alguns senadores da República reclamaram a falta de transparência do Executivo na tomada de decisões; as instaurações de Inquéritos Civis pelos MPT e MPF; instauração de inquérito policial pela PF para que sejam investigadas as condições em que serão acolhidos os trabalhadores cubanos e o ambiente em que exercerão importante mister; embates entre governo Federal e municípios que, a fim de aliviar a folha de pagamento, dispensariam seus médicos contratados para receberem a mão de obra pelo programa; grande debate dogmático na comunidade jurídica e críticas de todos os lados – contra e a favor – da camada social. Extrai-se, todavia, da mensagem deixada por aqueles que opinaram favoravelmente ao programa, na esmagadora maioria das vezes, a mesma situação retratada pela Presidente da República, ou seja, a realização do programa se fez necessária em virtude da ausência e falta de médicos brasileiros em regiões mais pobres e mais afastadas dos centros urbanos, o que desemboca na mesma situação aqui enfrentada no sentido de que a busca pelo melhor interesse público deve ser pautada pela forma menos violadora de outros direitos e princípios não menos importantes, os quais, mais adiante, serão destacados.

Todavia, importantes segmentos do conhecimento humano deixaram de ser contemplados para a implementação do programa Mais Médicos, a colocá-lo em xeque inclusive sob a dicção do governo, aquela segundo a qual um único médico em local distante, desacompanhado de profissionais de saúde e sem infraestrutura, poderia garantir a prestação de serviço público. Recente reportagem do jornal Folha de S.Paulo bem contorna a situação: "A concentração de médicos nos grandes centros acompanha a de outros profissionais de saúde, como dentistas e enfermeiros, e a de unidades de saúde. Onde falta um, faltam os outros. É o que o mostra um recorte da pesquisa Demografia Médica no Brasil, que se baseou em dados da AMS (Assistência Médico-Sanitária) do IBGE, que conta os postos de trabalho ocupados por profissionais de saúde. 'Além da falta desses profissionais, eles estão mal distribuídos. [Com o Mais Médicos], o governo alude em relação ao problema e responde com ilusão', afirma Jairnilson Silva Paim, professor titular de políticas de saúde da UFBA (Universidade Federal da Bahia). Para ele, o debate, que deveria ser em torno de 'mais saúde', passa necessariamente por mais financiamento, mas acabou sendo reduzido a 'mais médicos'. O Brasil nunca resolveu o impasse do custeio do SUS. Em 2011, o Senado aprovou a regulamentação da Emenda 29, que determina os gastos com saúde nos três níveis de governo, mas a bancada governista evitou que o texto final obrigasse a União a investir 10% de sua receita na área. Na avaliação de especialistas em saúde pública, medidas focadas só na fixação de médicos nos rincões do país tendem ao fracasso. 'É um equívoco considerar isoladamente a presença de médicos, sem atacar as raízes das desigualdades', afirma Mario Scheffer, professor de saúde preventiva da USP e coordenador da pesquisa Demografia Médica no Brasil. 'O médico nunca trabalha sozinho, precisa de uma equipe, de condições objetivas para uma carreira de trabalho, de salário digno e de condições para exercer a profissão. É impossível achar que um médico sozinho vai dar conta do recado', diz Paim" (Folha de São Paulo online, 2013).

Embora correto o diagnóstico, ou melhor, embora seja necessário programa de governo para garantia de saúde pública em todas as regiões do país, porque assim preconiza a Constituição Federal, não pode o interesse público subjacente ser remediado ao custo da eficiência e da sustentabilidade. E nas palavras da ilustre professora Lúcia Valle Figueiredo, “a Administrac¸a~o Pu'blica deve agir com eficie^ncia, segundo a Emenda Constitucional 19/98. Agir com eficie^ncia significa contemplar todas as possibilidades de obter o melhor contrato, a melhor decisa~o (sobretudo legi'tima por obter o consenso dos administrados), possibilitando, sem du'vida, que se discuta amplamente os modelos e que, ademais, tais modelos possam estar estribados em fortes elementos de convicc¸a~o e nunca dependerem de escolhas discriciona'rias, sem limites, portanto, até arbitra'rias da Administração, sem peias ou amarras. É preciso que a Administrac¸a~o conte com a efetiva colaborac¸a~o popular, a afim de que haja administrac¸a~o concertada, administrac¸a~o participativa, consensual. A finalidade da audie^ncia pu'blica, seguindo-se a orientac¸a~o, hoje quase mundial, e' de transpare^ncia da Administrac¸a~o, de lealdade, de fair play na conduta administrativa. Considera-se que, se a Constituic¸a~o prescreve uma atuac¸a~o participativa, como afirma Gordillo, mesmo sem obrigatoriedade constitucional ou legal, grandes projetos ou deciso~es importantes a serem tomadas, necessariamente deveriam ser precedidos de audi-e^ncia pu'blica. Todavia, a audie^ncia pu'blica na~o pode ser mera formalidade, mas, verdadeiramente, deve-se constituir no meio pelo qual deciso~es va~o ser tomadas, depois de se dar oportunidade de efetivamente OUVIR (audire) os interessados.” (FIGUEIREDO, 2007).

O que se vislumbra no termo assinado pelo Ministério da Saúde, entretanto, é um instrumento muito mal feito, muito mal construído, muito mal planejado, muito pouco discutido e desprovido de legitimação prévia, um ato de império incompatível com a razoabilidade que se exige e se espera de atos discricionários da Administração Pública e, indo um pouco mais além, uma medida meramente paliativa, insuficiente para superar a óbvia necessidade de prestação adequada de serviço público de saúde estruturada como quer o texto constitucional. Ainda pior neste caso, em que já são longos dez anos de uma mesma política pública que se julga zeladora de direitos sociais, com cara propaganda política no sentido de que se está a proporcionar um país para todos, somados a oito anos anteriores de um Governo que não deixa, outrossim, de cobrar publicamente a autoria pelo início desta suposta fase de Estado promotor e garantidor de prestações fundamentais. Tudo isso no bojo de uma Carta de República desde 1988, em que estabelecidos os estandartes principiológicos de Estado Democrático de Direito e depois regulados pela Lei nº 8.080/90 para promoção de saúde pública. Portanto, são longos 23 anos, em que pese alguma estabilização institucional, que o país não consegue empregar corretamente a destinação de recursos públicos na área de saúde, sendo que, infelizmente, a corrupção tornou-se um grande gargalo neste particular.

Não se ignora que há Jurisprudência firme de Tribunal Superior no sentido de que o erro constante e anterior da Administração não tem o condão de alterar o ambiente de urgência no qual se faria necessária ação imediata de autoexecutoriedade do gestor público competente para a busca da melhor solução republicana naquele caso concreto, tal como sugeriria o programa Mais Médicos. Entretanto, se há mais de meio século Carlos Maximiliano entoava que “deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido o ato, à que torne aquela sem efeito, inócua, ou este, juridicamente nulo" (in MAXIMILIANO, 1995), quadra o questionamento: estaria esta medida, aparentemente de remendo, não obstante longos anos em que olvidada a infraestrutura necessária para atualização e universalização do serviço público, consentânea com o Princípio da Boa Administração tão encarecido pela Constituição Federal? Era difícil, pois, a desabrida tentativa em se analisar a natureza jurídica do programa sem se fixar a premissa indelével de que se discute, in casu, uma omissão administrativa de anos a fio, incompatível com a ordenação de regularidade, modernidade e adequação de serviço público (art. 6º da lei 8.987/95 e art. 22 do CDC).

Com a certeza de uma resposta negativa para a questão anterior, o terceiro grande problema a ser enfrentado, ao que tudo indica, é o Princípio da Legalidade. Se “não há interesse público à margem da lei”, como encerra o Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, mostra-se, de pronto, dificuldade evidente em se definir política pública de tamanha envergadura, fundamental para a consecução de um Estado Democrático e Social de Direitos – e, por esta razão, interesses intransigíveis –, por meio de Medida Provisória, que de urgente, como já se viu, apenas terá frágil condão de acomodação em curto prazo, de inopino e a um custo republicano quiçá irremediável, a ausência de planejamento estratégico da saúde assaz danosa ao país.

Instaurado no Brasil, “o princípio de que todo poder emana do povo, de tal sorte que os cidadãos é que são proclamados como os detentores do poder, os governantes nada mais são, pois, que representantes da sociedade, vale dizer, é a representação popular, o Legislativo, que deve, impessoalmente, definir na lei e na conformidade da Constituição os interesses públicos e os meios e modos de persegui-los, cabendo ao Executivo, cumprindo ditas leis, dar-lhes a concreção necessária. Por isto se diz, na conformidade da máxima oriunda do Direito inglês, que no Estado de Direito quer-se o governo das leis, e não o dos homens; impera a rule of Law, not of men.” (MELLO, 2012). Mesmo que superada esta questão, eis que, na prática, politicamente aceita pelo Supremo Tribunal Federal a modalidade medida provisória para o Executivo administrar a coisa pública – e que se diga em português bem claro: em virtude das graves falhas que acometem e esvaziam o Congresso Nacional –, tem-se insuperável, no nosso sentir, a ilegalidade do termo de ajuste firmado pelo Brasil com a OPAS.

A base jurídica do termo é o quanto disposto no art. 17 da MP 621/13, que autoriza o Ministério da Saúde e da Educação, “para execução das ações previstas no programa, firmarem acordos e outros instrumentos de cooperação com organismos internacionais, instituições de educação superior nacionais e estrangeiras, órgãos e entidades da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, consórcios públicos e entidades privadas, inclusive com transferência de recursos.” Enfim, qual a natureza jurídica deste termo de ajuste? Trata-se de um contrato administrativo, um contrato da administração, um convênio ou uma figura jurídica completamente nova? Mais do que isso – e, para os fins acadêmicos aqui colimados, o mais importante –, independentemente do nonem iuris emprestado ao ajuste, até onde poderia chegar a Administração Pública Federal para a transação verificada naquele acordo?

Objetivamente, não há que se falar em contrato da administração, conquanto o objeto do termo, caro ao Direito Público, não comporta soluções regidas pelo Direito Privado. A Supremacia que norteia o serviço público de saúde impede, evidentemente, que a Administração competente contrate em pé de igualdade ou em uma relação horizontal com quem quer que seja. Caso fizesse, fatalmente, o ajuste seria interpretado, no Judiciário, no contencioso administrativo e mesmo na arbitragem prevista naquele termo, dentro da verticalidade cravada pela indisponibilidade do interesse contratado. A figura muito se assemelha ao convênio disciplinado no art. 116 da lei 8.666/93. Auxilia-nos nesta conclusão, por certo, os conceitos trazidos no bojo do próprio decreto 6.107/07, que assim regulou in verbis:

Art. 1º Este Decreto regulamenta os convênios, contratos de repasse e termos de cooperação celebrados pelos órgãos e entidades da administração pública federal com órgãos ou entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos, para a execução de programas, projetos e atividades de interesse recíproco que envolvam a transferência de recursos oriundos do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social da União.

§ 1º Para os efeitos deste Decreto, considera-se:

I - convênio - acordo, ajuste ou qualquer outro instrumento que discipline a transferência de recursos financeiros de dotações consignadas nos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União e tenha como partícipe, de um lado, órgão ou entidade da administração pública federal, direta ou indireta, e, de outro lado, órgão ou entidade da administração pública estadual, distrital ou municipal, direta ou indireta, ou ainda, entidades privadas sem fins lucrativos, visando a execução de programa de governo, envolvendo a realização de projeto, atividade, serviço, aquisição de bens ou evento de interesse recíproco, em regime de mútua cooperação;

II - contrato de repasse - instrumento administrativo por meio do qual a transferência dos recursos financeiros se processa por intermédio de instituição ou agente financeiro público federal, atuando como mandatário da União;

III - termo de cooperação - instrumento por meio do qual é ajustada a transferência de crédito de órgão da administração pública federal direta, autarquia, fundação pública, ou empresa estatal dependente, para outro órgão ou entidade federal da mesma natureza;

Percebe-se, desde logo, que o termo de cooperação empregado naquele ajuste não se amolda sequer no conceito regulatório, conquanto a transferência de crédito deve ocorrer dentro da própria Administração, direta ou indireta, o que não alcança a qualidade da OPAS/OMS. Todavia, mesmo diante da redação do art. 17 da MP 621/13, combinada com a redação do inciso I, §1º do art. 1º do decreto Federal 6.107/07, não é possível qualificar o 3º Termo de Ajuste ao 80º Termo de Cooperação Técnica firmado pela União com a OPAS como um convênio. Isso porque, não obstante, como bem lembrado por Marçal Justen Filho, “a configuração de um convênio administrativo depende do preenchimento de requisitos específicos, sendo irrelevante a mera denominação.” (in JUSTEN FILHO, 2010), o convênio não dispensa determinados mecanismos de controle, principalmente chamamento público para eleição da melhor proposta ao programa de governo, a fiscalização por parte do concedente com relação às metas físicas previamente estabelecidas, a desvinculação do Poder Público para com as obrigações cíveis e trabalhistas da entidade convenente e, principalmente, “para efeito do disposto no art. 116 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, a aquisição de produtos e a contratação de serviços com recursos da União transferidos a entidades privadas sem fins lucrativos deverão observar os princípios da impessoalidade, moralidade e economicidade, sendo necessária, no mínimo, a realização de cotação prévia de preços no mercado antes da celebração do contrato” (art. 11 do Decreto 6.107/07). Todas estas características e peculiaridades, todavia, não foram contempladas no tal “termo de cooperação técnica” firmado pelo Brasil e OPAS, cujo controle da função administrativa foi simplesmente ignorado. No entanto, o que viria a ser, dentro deste quadro, este termo? A resposta poderia estar no decreto 5.151/04:

Art. 1º - Este Decreto estabelece os procedimentos a serem observados pelos órgãos e pelas entidades da Administração Pública Federal direta e indireta, para fins de celebração de atos complementares de cooperação técnica recebida, decorrentes de Acordos Básicos firmados entre o Governo brasileiro e organismos internacionais cooperantes, e da aprovação e gestão de projetos vinculados aos referidos instrumentos.

Parágrafo único. A taxa de administração a ser fixada junto aos organismos internacionais cooperantes fica limitada em até cinco por cento dos recursos aportados pelos projetos a serem implementados sob a modalidade de Execução Nacional.

Daí o repasse de R$ 24 milhões a título de remuneração pelos custos indiretos incorridos pela OPAS, sequer relacionados no plano de trabalho e sem maiores explicações no acordo – com uma evidente violação aos Princípios da Transparência e Motivação –, exatamente a taxa de administração na razão de 5% identificada no termo e permitida, em tese, pelo parágrafo único acima transcrito. Foi neste Decreto, portanto, por meio do qual se criou uma obrigação autônoma de repasse de valores milionários a organismos internacionais, mesmo aqueles com representação nacional, com dispensa de licitação e sem formação de contrato administrativo que garanta ao Poder Público conatural regime de exorbitância, necessário para vinculação do interesse público primário, pelo qual se valeu o Governo Federal para entregar à sorte de uma mera intermediação de mão de obra a sua política pública de recuperação de saúde no país. Quer nos parecer evidente a transgressão ao Princípio da Legalidade, mais precisamente ao quanto disposto no art. 175 da Constituição Federal, que encarece a necessidade de prestação de serviço público essencial, como a saúde, diretamente pelo Poder Público, por meio de concessão e permissão ou, quando muito, por meio de convênio, resguardada, todavia, o controle da competência administrativa ao Estado.

É completamente inviável, portanto, lançar-me mão de decreto, ainda mais quando se cria direitos e obrigações autônomos de difícil ou nenhum encaixe em norma legal stricto sensu, sob a qual a Administração de forma mandatória se curva, para aplicação de programa de governo de grande impacto e para escapar de um rigoroso controle de função administrativa, máxime os motivos que levaram a Administração Pública Federal a remunerar um organismo internacional, com endereço em Brasília, sem licitação e sem, até mesmo, motivação de respectiva dispensa. Agrava a situação, sensivelmente, o fato de que não se está apenas cooperando tecnicamente para contratação de serviço de gestão de projetos ou consultorias vinculados ao acordo básico internacional, como quer o decreto 5.151/04. Está-se em verdade, com derrogação da função administrativa, abrindo-se mão da essência da prestação de serviço público de saúde, ainda mais em locais onde haveria necessidade da presença firme do Estado, como garantidor e promotor de interesse público primário. Por isso se averbou linhas antes no sentido de que, para se fazer presente nos locais onde há defasagem histórica de médicos, mediante uma política imediatista, açodada quando comparada com os longos anos em que abandonada a saúde pública no Brasil, a Administração Pública Federal estaria por transigir interesses que não são próprios dela, mas garantia fundamental do povo brasileiro. O que faltou de concerto no início, sem que fossem ouvidos a sociedade civil, a Agência Reguladora, a classe médica e o Legislativo para melhor governança, mostrou-se bastante consensual a Administração quando da formalização do acordo com entidade internacional, com representação nacional, incompatível com o regime secundum legem que lhe norteia, para abrir mão de garantias fundamentais e, infelizmente, da própria função administrativa. Neste sentido, abre-se espaço para correção do termo pelo controle judicial.

Tomamos de empréstimo para a ilegalidade deste termo de cooperação técnica o arremate de bem engendrado artigo da Ilustre Procuradora Federal, Dra. Fernanda Mesquita, para quem “a existência de repasse de recursos públicos nacionais a organismos internacionais, além de inúmeras decisões dos órgãos de controle a respeito da aplicabilidade da Lei nº 8.666/93, existem atos normativos infralegais regulamentando a questão, tais como o Decreto nº 5.151/2004 e Portaria MRE nº 717/2006. De acordo com tais normativos, os objetivos dos acordos custeados com recursos públicos nacionais devem restringir-se às hipóteses de transferência de conhecimentos entre as instituições, ou de assistência técnica, tais como as atividades de treinamento ou consultoria, não podendo servir como instrumento para execução de atividades típicas da Administração Pública, nem aquelas consideradas corriqueiras ou comuns, restritas aos servidores públicos da entidade federal envolvida. Não por outro motivo, o decreto 5.151/2004 prevê que os serviços técnicos de consultoria de pessoa física ou jurídica para implementação dos projetos de cooperação técnica internacional sejam realizados exclusivamente na modalidade produto. A própria contratação dos consultores deve observar os princípios da Administração Pública, de modo a garantir a isonomia e a imparcialidade no processo seletivo, em busca de uma prestação de serviço de qualidade. Por fim, constata-se que cabe à entidade federal cooperante, juntamente com o acompanhamento da Agência Brasileira de Cooperação do Ministério das Relações Exteriores, atentar para que sejam observados os requisitos legais pelo organismo internacional envolvido, garantindo a transparência na gestão dos recursos públicos, que deve ser dar ainda mediante prestação de contas à sociedade do resultado concreto obtido em termos de política pública.” (FERREIRA, 2013).

Isonomia e Segurança Jurídica impedem a mera busca finalística de programa de governo

Quando já se avança para dentro do programa, cujos indicativos é de que será prestigiado pelo STF, verifica-se, por uma quarta abordagem, que a política é potencial violadora de isonomia. Primeiro, porque se está a noticiar que o tratamento dispensado pelo Governo Federal ao médico cubano é inferior em acomodações, valores, ambiente e condições de trabalho diversos e em piores condições do que aqueles franqueados aos médicos, por exemplo, europeus. A própria necessidade de um termo próprio para a intermediação pela OPAS de mão de obra de médicos exclusivamente cubanos, por mais que Cuba tenha aqui ou acolá, dentro ou fora de seu regime autoritário, desempenhado função semelhante, não autorizaria o rompimento da garantia ontológica segundo a qual todos devem ser tratados igualmente. Sem se falar na própria submissão do médico cubano - e os demais - a um regime jurídico estranho, que não se amolda a nenhuma espécie de trabalho prevista no ordenamento jurídico pátrio, do qual se falará com mais detença adiante.

Não menos agressivo à igualdade, o que tem despertado críticas específicas por parte da classe médica, o intercambista, ainda que exerça a medicina exclusivamente no âmbito das atividades de ensino, pesquisa e extensão do Projeto Mais Médicos, está dispensado, pelo art. 10 daquela MP, na revalidação de seu diploma para atuação no Brasil. A justificativa para este discrímen é assertiva do governo pela qual médicos intercambistas exercerão funções relativamente mais simples, que não exigiriam especialidades tantas a ponto de se fazer mister a aprovação, entre nós, para exercício de profissão tradicionalmente regulada (CF, art. 5º, XIII). Nesse diapasão, percebe-se uma incauta contradição no programa: exatamente nos locais onde o serviço público de saúde é menos estruturado, deficitário e pouco efetivo, que estariam por demandar, pelo contrário, especializações e profissionais gabaritados, que, a despeito dos problemas de infraestrutura, conseguiriam resolver o problema, são os locais onde receberão trabalhadores para medicina básica apenas, dispensadas especializações ou mesmo garantias de que exercerão a medicina com a responsabilidade profissional que é necessária à prestação do serviço?

Sabe-se, nesse diapasão, que a educação superior tem por finalidade formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua, bem como incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive (art. 43, II e III da Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional). A educação de qualidade é fundamental para a construção profissional e social de um povo e, de resto, garante a Livre Iniciativa e fomenta o crescimento econômico. O § 2o do art. 48 da lei 9.394/96, que define a obrigação de revalidação dos diplomas de graduação expedidos por universidades estrangeiras pelas universidades públicas brasileiras que tenham curso do mesmo nível e área ou equivalente, em verdade, nada mais representa senão a segurança jurídica necessária para manutenção da base profissional de mercado. Ao descartar a necessidade de revalidação de diplomas estrangeiros, sem acordo bilateral de reciprocidade, a MP 621/13 rompe com uma tradição, uma exigência legal primeva e cria, em nome do imediatismo que corrói o programa, um tratamento desigual para situações que seriam tratadas pelo mesmo regime de segurança jurídica, que “acaso não é o maior de todos os princípios gerais de direito, como acreditamos que efetivamente o seja, por certo é um dos maiores dentre eles. Por força do sobredito princípio cuida-se de evitar alterações surpreendentes que instabilizem a situação dos administrados e de minorar os efeitos traumáticos que resultem de novas disposições jurídicas que alcançariam situações em curso.” (MELLO, 2012).

Não menos importante, a forma com a qual médicos estrangeiros irão trabalhar no Brasil deve ser melhor debatida e, se o caso, revista. É inviável tecnicamente, como já se acenou, qualquer tentativa de enquadramento do tal intercâmbio médico internacional, figura estranha criada pela MP 621/13, cujas atividades não geram vínculo empregatício de qualquer natureza (art. 11), como se fossem alguma coisa parecida com estágios e especializações profissionalizantes ou mesmo intercâmbio para troca de conhecimentos e tecnologias. Mesmo que remunerados por bolsas auxílios, definitivamente, diante da natureza do exercício a ser desempenhado no campo pelo médico intercambista, está-se a tratar de trabalho, atividade humana densamente protegida pela Constituição Federal, nos arts. 6° e 7°, e por diversos tratados internacionais os quais o Brasil é signatário, que regulamentam tanto os direitos fundamentais do Homem como também do Trabalhador.

Como se adiantou, não há no termo de cooperação técnica qualquer obrigatoriedade de que a intermediadora de mão de obra comprove ao país o efetivo recebimento pelos médicos participantes do programa dos valores antes repassados pelo Brasil. Aliás, neste contexto, já tivemos a oportunidade de afirmar que “a forma de remuneração do profissional também preocupa, eis que o Brasil pagará à OPAS, que por seu turno repassará à Cuba, que, por fim, repassará os valores ao médico intercambista, uma cadeia de processamento de difícil compatibilidade com a dignidade da pessoa humana, neste caso exteriorizada pela figura do trabalhador, que tem, inclusive, como proteção geral informadora desta República, fundamento pela valorização social do trabalho. A figura muito se assemelha à uma ilegal terceirização de mão de obra final, cuja Administração Pública Federal, inclusive, estaria absolutamente proibida de realizar, fomentar e difundir.”

A contratação destes profissionais estrangeiros, ainda que a título de emergência, não se harmoniza com o art. 37, IX da CF, regulamentado, neste caso, pelo art. 2º da lei 8.745/93. Em outras palavras, o convênio não se amolda à contratação excepcional por necessidade pública, não é emprego público e, muito menos, gera vínculo de emprego de qualquer outra natureza, de modo que poderá desencadear na Justiça Especializada um passivo em reclamações diversas que, segundo o termo de cooperação técnica, será absorvido pela União, consequentemente pela carga tributária. Embora a União fará neste exercício de 2.013 um repasse de R$ 469.000.000,00 exclusivamente para pagamento de profissionais cubanos, pela absoluta falta de mecanismo de controle na intermediação de mão de obra a ser realizada pela OPAS e, ainda mais, pela ausência de necessidade de que sejam comprovados os pagamentos das bolsas, corre-se o grande risco de que estes valores venham a ser exigidos posteriormente em Juízo, com os consectários legais e, pior, com as demais verbas trabalhistas que poderão ser reconhecidas pelo Juízo do Trabalho caso se demonstre a inconstitucionalidade incidenter tantum do art. 11 da MP 621/13. Diga-se de passagem, ainda que politicamente seja difícil a reclamação individual do profissional cubano, por questões culturais ou mesmo porque vinculado a um regime comunista opressor, isso não retira a legitimação extraordinária do Ministério Público do Trabalho, muito menos desqualifica o compromisso do Brasil para com a dignidade humana e para com os direitos do trabalhador urbano e rural.

E, embora para os médicos participantes não seja caso de contratação para atendimento temporário e excepcional de interesse público, em tese justificável pela edição abrupta de Medida Provisória para suposta cura do serviço público de saúde, incrivelmente, mais uma contradição do sistema, a MP 621/13 previu a possibilidade, em seu art. 26, de contratação emergencial de professores para supressão de necessidades excepcionais decorrentes de programas e projetos de aperfeiçoamento de médicos na área de atenção básica em saúde em regiões prioritárias para o Sistema Único de Saúde - SUS, mediante integração ensino-serviço, respeitados os limites e as condições fixados em ato conjunto dos Ministros de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão, da Saúde e da Educação.

A finalidade legal não pode, porém, como adverte Celso Antônio Bandeira de Mello, validar uma inconsequência jurídica, por vezes pesada demais para que o sistema possa suportar a busca programática de medida eleita pelo gestor público. Muito além disso, “o princípio da finalidade impõe que o administrador, ao manejar as competências postas a seu encargo, atue com rigorosa obediência à finalidade de cada qual. Isto é, cumpre-lhe cingir-se não apenas à finalidade própria de todas as leis, que é o interesse público, mas também à finalidade específica abrigada na lei a que esteja dando execução.” E o mestre atinge em cheio o que se pretende aqui realçar como incompatível com nosso Direito, ao citar a conclusão de Jean Rivero: “Assim, há desvio de poder e, em consequência nulidade do ato, por violação da finalidade legal, tanto nos casos e, que a atuação administrativa é estranha a qualquer finalidade pública, quanto naqueles em que o ‘fim perseguido, se bem que de interesse público, não é o fim preciso que a lei assinalava para tal ato.’” (MELLO, 2012).

Mais uma vez, a troco do imediatismo que tem tomado de assalto a Administração Pública brasileira, o programa tenta empregar um contorno de legal a uma relação de trabalho que não garante direitos constitucionalmente assegurados a todo e qualquer trabalhador, seja ele brasileiro, seja ele estrangeiro, em território nacional. Nesse sentido, clareia-se melhor a situação com o trabalho do ilustre Advogado Maurício Gentil, um dos primeiros a tratar especificamente do programa Mais Médicos para o Brasil, para quem “tudo estaria muito bem moldado juridicamente, não houvesse evidentes sinais de que a especialização/aperfeiçoamento em ações de atenção básica do SUS esteja sendo utilizada como mero disfarce para o verdadeiro objetivo do projeto “Mais Médicos para o Brasil” (e, afinal, de todo o “Programa Mais Médicos”), que é o de ‘enfrentar o problema da escassez de médicos no país, sobretudo em regiões prioritárias para o SUS’ (Exposição de Motivos da MP n° 621/2013). Esse objetivo, não escamoteado, é assumido em toda a Exposição de Motivos da MP n° 621/2013 e em todo o seu texto. Reforça essa leitura a circunstância de que, na MP n° 621/2013, não existe um plano específico para atração imediata de médicos para trabalhar na atenção básica do SUS - nas regiões onde a carência de médicos é maior - com vínculo de trabalho efetivo. A forma encontrada para essa atração foi a de camuflar o trabalho médico essencial na atenção básica como especialização médica, a permitir a precarização do vínculo em forma de participação em atividades de aperfeiçoamento/especialização, com pagamento apenas de bolsa e despesas com deslocamentos e instalação, mas sem qualquer garantia dos direitos trabalhistas inerentes ao trabalho médico essencial do SUS. Esses sinais evidentes (ainda que o “Projeto Mais Médicos para o Brasil” preveja a figura do profissional médico responsável pela supervisão profissional contínua e permanente do médico participante e do docente médico responsável pela orientação acadêmica), somados à situação fática em que eventualmente fique demonstrada a atuação meramente substitutiva de médicos de atenção básica do SUS, podem configurar burla a um conjunto de normas constitucionais, como a que exige prévia aprovação em concurso público para exercício de cargo e emprego público e a que impõe isonomia de tratamento jurídico idêntico a situações idênticas, além daquelas que asseguram direitos trabalhistas quando configurada, na realidade da prestação de serviços, a relação de trabalho e mais especificamente a relação de emprego, como também aquelas outras que asseguram direitos estatutários a servidores públicos titulares de cargos públicos.” (in INFONET, GENTIL, 2013)

2. Conclusão

Por outro lado, tramita desde 2009, a PEC 454-A, proposição do Deputado Ronaldo Caiado, que estabelece diretrizes para criação de carreira única de médico de Estado. A exposição de motivos da PEC enfrenta questões importantes e somente corrobora a tese segundo a qual, em que pese ser pública e notória a desestruturação da saúde no país e até mesmo bem sedimentados os motivos que impedem a prestação de serviço público a contento, a preferência pelos instrumentos meramente paliativos disciplinados pela Medida Provisória 621/13 não se coaduna com uma Administração Pública voltada para a efetividade dos caros e hodiernos interesses que informam uma sociedade complexa, moderna, cada vez mais exigente e que está a exigir um novo modelo de gestão administrativa, que prefira o planejamento em detrimento do afogadilho. “É com pesar que se vê o desprestígio que o médico que presta serviços para o Sistema Único de Saúde vem passando. Baixos salários, péssimas condições de trabalho, pouco ou nenhum estímulo à especialização do profissional, suscetibilidade aos desmandos dos governantes locais são os principais percalços que os médicos atravessam quando decidem optar pelo concurso público. O que esta Proposta de Emenda Constitucional busca é a valorização do Médico, inserindo-o na categoria de Carreira de Estado. O fortalecimento dos profissionais atuando nas áreas exclusivas de Estado é um requisito para garantir a qualidade e a continuidade da prestação de serviços e o alcance do interesse público com a descentralização da prestação de atividades de Estado. O novo papel do Estado pressupõe assim o fortalecimento das carreiras voltadas para a formulação, controle e avaliação das políticas públicas, bem como para atividades exclusivas de Estado.” (Deputado Ronaldo Caiado).

A matéria encontra-se em Comissão Especial e, não obstante o longo trâmite legislativo, de cinco anos, somente agora ganhou parecer para a realização de discussão pública, diversamente da imposição unilateral verificada pela edição da MP 621/13 por nós já criticada. O parecer é recente, de 11 de junho de 2.013, e sugere a instituição da carreira como alternativa ao programa Mais Médicos: “A brilhante ideia dos nobres colegas, Deputado Eleuses Paiva e Deputado Ronaldo Caiado de apresentarem a Proposta de Emenda Constitucional – PEC responsável pela criação dessa Comissão, já em 2009, ganhou força nas últimas semanas com a proposta do Conselho Federal de Medicina – CFM feita ao Ministério da Saúde de criação da Carreira de Médico de Estado. A criação da Carreira de Estado é uma alternativa à Proposta do Governo de trazer médicos estrangeiros para atuarem no Brasil sem aprovação no Revalida. A proposta merecia uma discussão mais aprofundada por todo o país, trazendo contribuições inclusive de profissionais que atendem nas regiões mais carentes. Infelizmente, em face à urgência exigida pela demanda, o tempo para discussão se torna bastante reduzido. Diante dessa situação e no afã de atender à necessidade em profissionais e entidades ligadas à área de saúde em todo o país trazerem suas contribuições à proposta, proponho a realização de cinco audiências públicas, uma em cada região do país, para debater o tema. Dessa forma, contaremos com a participação de profissionais especializados e que vivenciam o dia a dia da saúde em cada canto do nosso país. No momento hoje em que o médico não tem condições de estar no interior não é sua responsabilidade. É a ausência total do estado para criar naquelas regiões condições, salários e estabilidade para que ele não fique dependendo da vontade e do humor do político local” (Deputado Geraldo Resende).

A criação de cargos públicos efetivos, deveras, se enquadra no conceito de Administração Pública segura e respeitadora dos ditames constitucionais, conquanto gera para o ocupante da vaga responsabilidades institucionais, estatutárias, civis, penais, previdenciárias e administrativas que não se verificarão, evidentemente, com a criação de médicos intercambistas ou qualquer espécie de regime jurídico que venha a ser utilizado para atendimento emergencial de necessidades públicas deixadas pelo vácuo na gestão da coisa pública. Neste sentido, mostrava-se bem mais saudável ao interesse público a regulamentação da carreira de médico para suprir a necessidade de falta de profissional em lugares distantes, inclusive com obrigação no edital de provimento de vaga no início de carreira em regiões mais afastadas, como ocorre, por exemplo, com as carreiras jurídicas, pelas quais se inicia na primeira instância para, com meritocracia, tempo de trabalho despendido e fomento ao serviço público, galgar-se espaços, áreas, subsídios e cidades e regiões (entrâncias, comarcas, seções e subseções) em tese, mais atrativas. E o que se procura buscar com a PEC 454-A/09, com a indicação precisa de que “no serviço público federal, estadual e municipal a medicina é privativa dos membros da carreira única de médico de Estado, organizada e mantida pela união, observados os seguintes princípios e diretrizes: a atividade de médicos de Estado, exercida por ocupantes de cargos efetivos, cujo ingresso na carreira dar-se-á mediante concurso público de provas e títulos, com a participação do respectivo órgão de fiscalização profissional, devendo as nomeações respeitarem à ordem final de classificação; o médico de Estado exercerá seu cargo em regime de dedicação exclusiva e não poderá exercer outro cargo ou função pública, salvo uma de magistério, na forma desta Constituição; a ascensão funcional do médico de Estado far-se-á, alternadamente pelos critérios de merecimento e antiguidade, considerando-se para a aferição de merecimento, quesitos que levem em consideração o aperfeiçoamento profissional do médico, conforme normas estabelecidas pela Associação Médica Brasileira e pelo Conselho Federal de Medicina, na forma da lei; a lei estabelecerá critérios objetivos de lotação e remoção dos médicos de Estado, segundo a necessidade do serviço e considerando, para a elaboração dos requisitos de remoção, a pontuação por lotação em localidades remotas ou de difícil ou perigoso acesso.

A PEC, pois, atingiria, por via jurídica escorreita, o âmago da política pública escolhida pelo governo Federal, ou seja, alternativamente a um termo de cooperação técnica, que de legal nada tem, a regulação se faria por lei ordinária em que se disciplinariam os critérios, os deveres e os benefícios que porventura seriam destinados aos médicos que elegessem os locais remotos ou de difícil acesso. Possivelmente, subsídios maiores ou incorporações em razão da nobre escolha do profissional que ascender à carreira e preferir o serviço em locais cuja demanda técnica assim determinar, forte no compromisso público de prestação de serviço, para consequentemente em contrapartida, por toda sociedade, ser bem remunerado. Daí porque na PEC, inclusive, por meio de inserção no ADCT, se faria prever que “lei específica fixará remuneração inicial da carreira de médico de Estado em R$ 15.187,00 (quinze mil e cento e oitenta e sete reais), e a reajustará anualmente, de modo a preservar seu poder aquisitivo.”

Por fim, é chegada a hora de enfrentarmos um dos maiores problemas do atual sistema federativo brasileiro, qual seja, o controle da fiscalização do repasse federal de recursos públicos aos estados e municípios. Cada ano o recorde na arrecadação tributária obriga, por outro lado, a responsabilidade sintomática na gestão fiscal. Para a consecução de políticas públicas importantes, não hesita a União em transferir grande quantidade de recursos públicos aos demais entes federativos, nas áreas de saúde, educação, segurança pública, obras de mobilidade urbana, saneamento, PAC e programas sociais como o bolsa família. No entanto, a aplicação destes recursos nos setores para os quais repassados tem-se mostrado um grande gargalo e, infelizmente, é insuficiente o controle exercido pela União e, em cadeia, pelas Unidades da Federação. Isso repercute, evidentemente, na falta ou no mau funcionamento do serviço público, não sendo diferente em relação à saúde. Mecanismos eficientes de fiscalização e controle, aliados aos Tribunais de Contas, devem ser aprimorados na origem, sob pena de que grande parte dos recursos destinados à saúde sejam desviados para atendimento de interesses privados e, não raras as vezes, destinados a outros setores públicos também defasados no destino. Não por menos, a fiscalização do eleitorado e a cobrança nas eleições ganham importância irretorquíveis neste estágio da Administração Pública brasileira.

O desenvolvimento nacional deve ser operado de forma sustentável, compreendido com maior alcance jurídico e com as luzes que lhe promove a Constituição Federal. Importante o médico no plantão, como de fato, acreditamos, é tão ou mais importante garantir-lhe as condições modernas para exercício de tão nobre profissão, com equipamentos modernos e infraestrutura necessária. Fala-se, ademais, em política pública que, para atingir determinado fim não necessariamente abra mão de interesses outros igualmente importantes e que também informam a cara construção do Estado de Direito. Deveras, como cediço, foi com muita luta e revolução social ao longo de tempos que se conseguiu atingir a democracia e, principalmente, a submissão do administrador às leis. O escudo protetor formado pelo Direito Administrativo não pode ser rompido por medida que, a pretexto de agir coletivamente, em verdade, acaba por violar o dogma constitucional construído em favor do homem e do cidadão, de sorte que direitos e garantias fundamentais são inegociáveis. Para a busca de saúde em rincões do país não se é necessário rasgar-se o texto constitucional; muito pelo contrário, seguindo-o com concretude e planejamento, inclusive no tocante à infraestrutura e acompanhamento pelas demais profissões de saúde, poder-se-ia atingir as finalidades e objetivos que servem de lastro para uma Administração Pública voltada à satisfação de interesses públicos primários em igual e bastante intensidade. Sabemos que o programa Mais Médicos é uma realidade, médicos estrangeiros em curso iniciarão em breve seus misteres, que rogamos sejam eficientes e capazes de atendimento ao grande público. A tendência, inclusive, é de que seja prestigiado pelo Judiciário. Fica, todavia, a advertência para uma Administração que repense estrategicamente seu papel no Estado e se paute pelo choque da cultura pela sustentabilidade, sob pena de que meios ilegais sejam justificados por bandeiras sociais alcançadas por vias transversas nada republicanas.

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1 - ALEXY, R. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, p.112-115. 2001.

2 - SÃO PAULO (Folha online). Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/09/1335144-one-falta-medico-falta-dentistas-e-enfermeiros-mostra-pesquisa.shtml . Acesso em: 01/09/2013

3 - FIGUEIREDO, L. V. Instrumentos da Administrac¸a~o Consensual: a audie^ncia pu'blica e sua finalidade. Revista Eletro^nica de Direito Administrativo Econo^mico (REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Pu'blico, no. 11, agosto/setembro/outubro, 2007. Disponi'vel na Internet: https://www.direitodoestado.com.br/redae.asp.

4 - MAXIMILIANO, C. Hermenêutica e aplicação do direi-to. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p.166.

5 - Mello, C. A. B. de. Curso de Direito Administrativo. 29.ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p.103-104.

6 - JUSTEN FILHO, M. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14.ed. São Paulo: Dialética, 2010, p.49.

7 - FERREIRA, F. M. Os acordos de cooperação técnica internacional celebrados entre entidades públicas federais e organismos internacionais. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: Disponível em: https://www.conteudojuridico.com.br/ ?ar-tigos&ver=2.43079&seo=1. Acesso em: 20/04/2013

8 - MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 29.ed. Malheiros Editores: 2012, p.89.

9 - GENTIL, M. O Polêmico Programa "Mais Médicos" - Parte IV. In INFONET. Disponível em: https://www.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=148237&titulo=mauriciomonteiro. Acessado em: 21/08/2013.

10 - MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 29.ed. Malheiros Editores: 2012, p.110, citando RIVERA Jean. Droit Administratif, 2.ed. Paris, Dalloz, 1.962, p.225.

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* Fabio Martins Di Jorge é advogado do escritório Peixoto E Cury Advogados

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