Migalhas de Peso

Uma Anedota Búlgara: um panorama dos procedimentos de retirada de conteúdo online

Apesar de ainda não ter regulamentado essa questão no legislativo, algumas importantes decisões judiciais vêm construindo um posicionamento no Brasil.

13/8/2013

Vladmir Putin acaba de sancionar nova lei que arma até os dentes titulares de direitos autorais, ameaçando provedores de terem seu negócio provisoriamente suspenso pelo governo russo se a ordem preliminar de takedown, emitida sem análise de mérito pelo Tribunal de Moscou, não for cumprida em um máximo de três dias. A medida, que se aplica apenas a obras audiovisuais, tem gerado protestos liderados pelo Partido Pirata[1] russo e por especialistas que criticam a lei do ponto de vista procedimental.

A novidade russa representa uma entre as possíveis configurações de mecanismos jurídicos de proteção de direitos intelectuais na internet: a de apoderamento agudo dos titulares e grave sanção aos provedores. Dá-se primazia ao cessamento do prejuízo que o titular suportaria com a manutenção conteúdo no ar, correndo-se o risco de, no processo, desprestigiarem-se outros direitos como o de liberdade de expressão, ou mesmo de incorrer-se em erro, já que a análise que precede a ordem de baixa é sumária.

Outra característica da norma que desperta críticas é a potencial desproporcionalidade entre as sanções e as violações. Qualquer caso de violação poderia se desfechar com o desligamento de um provedor de aplicações[2], prejudicando potencialmente todos os seus clientes, inclusive os que não têm relação alguma com a violação.

Em outro ponto do espectro regulatório, temos o sistema denominado notice-and-notice[3], que está prestes a entrar em vigor no Canadá[4]. Esse sistema é particularmente interessante para análise porque, aqui e acolá, ouve-se que será ele justamente o proposto pelo Ministério da Cultura quando apresentar texto substitutivo ao projeto de alteração da LDA que existe hoje.

Sua mecânica prevê que titulares cujos direitos sejam violados poderão, igualmente, notificar os provedores de aplicações. Entretanto, a obrigação destes se limitará a (i) encaminhar essa notificação ao usuário que subiu o conteúdo para a rede (origem do termo notice-and-notice), e (ii) guardar, por no mínimo seis meses a partir do recebimento dessa notificação, dados que permitam ao titular dos direitos infringidos identificar, por via judicial, o usuário subiu conteúdo para a rede sem autorização. O titular dos direitos ofendidos não terá, assim, poderes para fazer cessar a violação extrajudicialmente. Buscará o judiciário para fazê-lo, e terá preservados os dados do uploader para pleitear posterior responsabilização.

O mecanismo de notice-and-notice, sob certo aspecto, é o antípoda da novidade russa: repele o risco de desrespeitar-se algum possível direito do usuário que disponibilizou o conteúdo, submetendo necessariamente o titular do direito violado ao périplo judicial para que se confirme, em análise mais detida, estar-se diante de um caso de violação. Além disso, é o mais protetivo possível para os provedores porque, ressalvados os casos de descumprimento dessas obrigações operacionais, estará este sempre livre de responsabilização.

Faltará, certamente, velocidade ao notice-and-notice, que adicionalmente carreará um sem número de pedidos ao judiciário, com todos os ônus que isso representa ao já combalido titular de direitos intelectuais nessa nossa era da infomação. Em um cenário como o da indústria cinematográfica, por exemplo, em que um único dia de downloads pode ser a linha divisória entre o sucesso e o fracasso nas bilheterias, o tempo adicional de recurso ao judiciário pode significar o mundo.

Sobrarão, ao mesmo tempo, abusos no sistema russo. Titulares seguramente cruzarão fronteiras, denunciando usos legítimos como se violações fossem, e possivelmente assistiremos a casos terríveis de provedores sendo fechados pelo Roskomnadzor em razão de descumprimentos que, em outras plagas, simplesmente se resolveriam em perdas e danos. Serão centenas, se não milhares de usuários desses provedores que, sem nenhuma vinculação com qualquer ilícito, terão suspensos os serviços que contrataram, sem mencionar a possibilidade de esse tipo de medida servir a propósitos verdadeiramente subreptícios, como o controle da imprensa.

Curiosamente, entre esses dois extremos, o bom e velho sistema estadounidense aparece como intermediário razoável. Quinze anos já nos separam da data em que começou a vigorar Digital Millennium Copyright Act, conhecido pela sigla DMCA – uma era para o mundo da tecnologia – e mesmo assim, sua linha-mestra continua a fazer sentido atualmente.

O regime estabelecido por esta lei americana prevê que os provedores de internet estarão isentos de responsabilidade relacionada a conteúdo adicionado por terceiros, seus usuário, desde que algumas determinações sejam seguidas, entre elas a obrigação de indisponibilizar para acesso o conteúdo infrator imediatamente após notificação do titular dos direitos infringidos. Em oposição ao notice-and-notice, portanto, este é um sistema de notice-and-takedown.[5]

Depois de indisponibilizar o conteúdo, o provedor de aplicações notifica o usuário que havia subido o conteúdo para a rede, permitindo-lhe que ateste deter os direitos para disponibilizar aquele material online, a despeito da reclamação do titular. Caso o respondente cumpra as exigências formais (inclusive a de se responsabilizar pela veracidade das informações que presta na resposta), o conteúdo volta a ser disponibilizado em até quatorze dias, caso em que o titular deve recorrer ao judiciário se desejar insistir na questão.

É verdade, como em qualquer caso, que o sistema não é perfeito. Mas, claramente, entre os descritos, apresenta maior equilíbrio entre os interesses em jogo, repartindo os ônus entre usuários, titulares de direitos e provedores. Nenhum deles será plenamente atendido, mas nenhum, tampouco, totalmente desamparado. Há custos, nesse processo, para os três atores.

A indisponibilização imediata do conteúdo, que poderia instrumentalizar de eficácia um abuso cometido pelo titular de direitos, encontra um contrapeso na possibilidade de o usuário se defender e promover a re-inserção do conteúdo, restando, ao final, a via judicial ao titular que com isso não se conformar.

Apesar de o Brasil ainda não ter regulamentado essa questão no legislativo, algumas importantes decisões judiciais vêm construindo um posicionamento que aponta justamente para uma solução que segue, em linhas gerais, as mesmas regras de raciocínio do DMCA.

A decisão mais recente (STJ-AREsp 259482), de lavra do Exmo. Min. Dr. Sidnei Beneti, traz o seguinte trecho: "Na linha dos precedentes desta Corte, o provedor não responde objetivamente pelo conteúdo inserido pelo usuário em sítio eletrônico, por não se tratar de risco inerente à sua atividade. Está obrigado, no entanto, a retirar imediatamente o conteúdo moralmente ofensivo, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano".

O lado negativo dessa construção puramente jurisprudencial é que, voltada ao conflito interpartes e seguindo um raciocínio tipicamente comutativo, tende a não sistematizar o regramento completo da matéria, passando ao largo de preocupações como a de oferecer meios de defesa para o usuário. Por outro lado, é interessantíssimo ver como o pragmatismo da solução prevista pelo DMCA há mais de quinze anos espalhou-se como ratio padrão para lidar com esses temas no Brasil.

Aguardemos, ansiosos, a nova proposta de LDA. O tema deverá, em breve, estar na pauta do dia das discussões mais acaloradas.

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Anedota Búlgara: referência ao poema drummondiano que conta a história de um czar naturalista que, embora caçasse homens, horrorizou-se ao saber que também se caçavam borboletas e andorinhas. É a brilhante maneira encontrada pelo poeta para ilustrar de quantas diferentes maneiras se pode perceber o mal.

[1] Ao leitor menos acostumado com assuntos dessa seara, o nome parecerá estranho. Há uma Rede Internacional de Partidos Piratas com representações em diversos países do mundo, inclusive no Brasil (https://partidopirata.org).

[2] Terminologia harmonizada com a proposta de Marco Civil da Internet, que coloca na categoria “aplicações” essencialmente tudo o que não é conexão (Art. 5º, VII, PL 2126/11).

[3] Notificação-e-Notificação. A origem da terminologia se evidencia em sua conceituação.

[4] A entrada em vigor das leis no Canadá se dá em três possíveis momentos: (i) imediatamente, se a lei não identificar outro momento posterior, nos termos do Interpretations Act; (ii) na data determinada na própria lei; (iii) em data fixada pelo Governor in Council. O Projeto de Lei C-11 enquadra-se no terceiro caso, e, enquanto muitas de suas provisões já se encontram em vigor, os itens 41.24 a 41.26, que justamente implementam o notice and notice, ainda aguardam vigor.

[5] Notificação seguida pela indisponibilização do conteúdo.

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* Ygor Valerio é advogado.

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