A aquisição de softwares via transmissão de dados (download) envolve a análise da tributação a ela incidente, visto que as controvérsias ainda existentes sobre o tema e os rápidos avanços tecnológicos vivenciados nos últimos anos, não são acompanhados pela legislação pátria a respeito da regulamentação destas operações realizadas via internet, acarretando na divergência da jurisprudência na análise da matéria.
A lei 9.609/98, que dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador, estabelece em seu artigo 1º que o programa de computador, também denominado de software, "é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados".
O artigo 9º da referida lei estabelece que o uso do programa de computador será objeto de contrato de licença [1]. Nos termos do referido dispositivo, verifica-se que a disponibilização de softwares caracteriza-se, a priori, por ser um contrato de licença de uso, por meio do qual o adquirente não se torna proprietário do software, mas apenas possui uma licença para utilizá-lo.
Com base na definição contida em lei e no entendimento jurisprudencial, cumpre analisar as hipóteses de incidência do ISS e do ICMS na aquisição de softwares via transmissão de dados (download).
No tocante à disponibilização de softwares via transmissão de dados (download), concebidos tais programas como bens incorpóreos, o STF entendeu, à luz do decreto lei 406/68, que essas operações caracterizavam-se como operações de "licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador" sujeitas, portanto, à incidência do Imposto sobre Serviços (ISS), conforme se verifica do julgamento, pela primeira turma, do RExt 176.626-3/SP [2].
Nos termos do entendimento da Corte Suprema, somente estariam sujeitos à incidência do ICMS os softwares produzidos em série e comercializados no varejo, sem qualquer especificação (programa de computador de prateleira), que tivessem um suporte físico (CD ou DVD, por exemplo).
Com base neste entendimento jurisprudencial, os programas de computador que não tivessem suporte físico, ou seja, tratados como bens incorpóreos, estavam sujeitos à incidência do ISS, já que se caracterizam por ser "licenciamento ou cessão do direito de uso de programa de computador".
Em análise mais recente, o STF conferiu novo tratamento à matéria, assinalando pela incidência do ICMS na disponibilização de programas de computador (softwares) via transmissão de dados (download). Tal entendimento se deu pelo fato de que o meio pelo qual são disponibilizados os programas de computador, não descaracteriza a natureza de circulação de mercadoria.
Referido entendimento restou firmado em sede de liminar concedida nos autos da Medida Cautelar na ADIn 1.945 [3], em sessão realizada em 26/05/10, no qual o STF autorizou o Estado de Mato Grosso a exigir o ICMS sobre softwares comercializados por meio de download, aguardando-se, por ora, o seu julgamento definitivo.
De todo modo, o posicionamento do Pretório Excelso, ainda que provisório, já vem a indicar possível direcionamento acerca do assunto pela incidência do ICMS sobre a disponibilização de softwares por meio de download, visto que não há que se falar na diferenciação na compra de um programa de computador em CD/DVD ou via download.
O posicionamento a respeito da incidência do ICMS se justifica pelo fato de que a veiculação de programas de computador por meio de download caracteriza-se como uma operação de circulação de mercadoria, ainda que não ocorra alteração de propriedade do software. Ainda, se o programa de computador veiculado por meio de transmissão de dados fosse exceção à incidência do ICMS, não haveria a exigência do referido imposto na aquisição de programa de computador de prateleira (software de prateleira), já que neste último, não há aquisição somente o CD ou DVD, mas inclusive a mercadoria virtual gravada no instrumento de transmissão.
Por tal razão, os programas de computador disponibilizados também por meio de transmissão de dados (download), desde que produzidos em larga escala, de maneira uniforme e sem qualquer especificação para os destinatários, equivalem a programas de computador de prateleira (software de prateleira), sujeitos à incidência do ICMS [4].
Destarte, pelo posicionamento do STF e do STJ [5]sobre a classificação do software tem-se que: (i) se o software for produzido de forma padrão e uniforme, sem qualquer especificação para o destinatário (programa de computador de prateleira), há incidência do ICMS, independentemente da forma de aquisição deste software ser por suporte físico ou por transmissão de dados (download); (ii) e, por sua vez, se o conteúdo do software for elaborado especificamente para uma pessoa jurídica ou física, há incidência do ISS por tratar de típica prestação de serviço.
No software de prateleira, cuja tributação se dá mediante a incidência do ICMS, no âmbito do Estado de São Paulo, o decreto estadual 51.619/07 em seu artigo 1º[6] estabelece que, na operação realizada com programa de computador ("software"), o ICMS será calculado sobre uma base de cálculo que corresponderá ao dobro do valor de mercado do seu suporte informático, ou seja, do meio físico que contem o programa. Frise-se que esse dispositivo não se aplica aos jogos eletrônicos de vídeo ("videogame") nos termos do parágrafo único do referido artigo.
Na hipótese dos referidos softwares serem comercializados via transmissão de dados (download), o que se verifica é que não haverá base de cálculo para fins de incidência do ICMS e, portanto, não haverá imposto a ser recolhido, o que não exclui, no entanto, a obrigatoriedade no cumprimento do dever instrumental. Neste sentido é o entendimento da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo exarado na Resposta à Consulta Tributária 494 [7], de 24 de outubro de 2011 e na Reposta à Consulta Tributária 234 [8], de 10 de junho de 2011.
Já os programas de computador sob encomenda do interessado, conforme entendimento jurisprudencial, serão tributados pelo ISS, indicando uma prestação de serviço.
Com relação ao software sob encomenda, deve ser analisado o item 1.05 ("Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação") da vigente Lista de Serviços sujeitos ao ISS anexa à LC 116/03, em face de uma possível tributação por parte da Municipalidade.
Apesar de a LC 116/03 prever a incidência do ISS sobre o licenciamento de software, pode-se entender que, mesmo em relação ao software sob encomenda, tal exigência seria indevida por não caracterizar a efetiva prestação de serviço.
A Constituição da República estabelece a competência aos Municípios para instituir impostos sobre serviços (artigo 156, inciso III, da CF/88).
O conceito de serviço tributável está diretamente relacionado a uma obrigação de fazer, como já analisado pelo STF no RExt 16.121/SP [9], em que decidiu pela não incidência do ISS sobre a locação de bens móveis.
A tributação na venda de software sob encomenda via download, também não trata de uma obrigação de fazer para tornar o software disponível. E isso porque a licença do usuário ou concessão de direito de uso do programa de computador não consiste em uma obrigação de fazer, mas sim uma obrigação de dar, temporariamente disponível, mediante remuneração.
Temos, portanto, que a obrigação de fazer constitui o núcleo e é, portanto, figura intrínseca e inerente a todas as modalidades de prestação de serviço. Neste contexto, estando diante de uma contratação por meio da qual não se pretende a criação de um novo software (obrigação de fazer), mas, apenas e tão somente, uma cessão do direito de seu uso, não se pode vislumbrar uma efetiva prestação de serviços e, portanto, pode-se argumentar pela não incidência do ISS.
Como decorrência do exposto, restando caracterizada a disponibilização de software, independentemente da forma de aquisição (suporte físico ou via download), se produzido de forma padrão e uniforme, sem especificação para o destinatário (software de prateleira), haverá a incidência do ICMS, podendo ser questionada a sua não incidência, apesar de restar caracterizada a materialidade do ICMS, no âmbito do Estado de São Paulo na comercialização via transmissão de dados (download) em que não se verifica o meio físico que contém o programa para apuração da base de cálculo do imposto.
No caso de software elaborado especificamente para uma pessoa jurídica ou física (software sob encomenda), haverá a priori incidência do ISS, sendo questionável tal incidência sobre o licenciamento de software, conforme entendimento exposto no sentido de não caracterizar a efetiva prestação de serviço mediante uma obrigação de fazer.
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[1] “Art. 9º O uso de programa de computador no País será objeto de contrato de licença.
Parágrafo único. Na hipótese de eventual inexistência do contrato referido no caput deste artigo, o documento fiscal relativo à aquisição ou licenciamento de cópia servirá para comprovação da regularidade do seu uso.”
[2] “EMENTA: (...). III. Programa de computador ("software"): tratamento tributário: distinção necessária. Não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de "licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador" " matéria exclusiva da lide ", efetivamente não podem os Estados instituir ICMS: dessa impossibilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo - como a do chamado "software de prateleira" (off the shelf) - os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio.” (RE 176626, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 10/11/1998, DJ 11-12-1998 PP-00010 EMENT VOL-01935-02 PP-00305 RTJ VOL-00168-01 PP-00305)
[3] “Ação Direta de Inconstitucionalidade. Direito Tributário. ICMS. 2. Lei Estadual 7.098, de 30 de dezembro de 1998, do Estado de Mato Grosso. (...) 8. ICMS. Incidência sobre softwares adquiridos por meio de transferência eletrônica de dados (art. 2º, § 1º, item 6, e art. 6º, § 6º, ambos da Lei impugnada).
Possibilidade. Inexistência de bem corpóreo ou mercadoria em sentido estrito. Irrelevância. O Tribunal não pode se furtar a abarcar situações novas, consequências concretas do mundo real, com base em premissas jurídicas que não são mais totalmente corretas. O apego a tais diretrizes jurídicas acaba por enfraquecer o texto constitucional, pois não permite que a abertura dos dispositivos da Constituição possa se adaptar aos novos tempos, antes imprevisíveis. 9. Medida liminar parcialmente deferida, para suspender a expressão “observados os demais critérios determinados pelo regulamento”, presente no parágrafo 4º do art. 13, assim como o inteiro teor do parágrafo único do art. 22, ambos da Lei 7.098/98, do Estado de Mato Grosso. (ADI 1945 MC, Relator(a): Min. OCTAVIO GALLOTTI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 26/05/2010, DJe-047 DIVULG 11-03-2011 PUBLIC 14-03-2011 EMENT VOL-02480-01 PP-00008 RTJ VOL-00220- PP-00050)
[4] “EMENTA: TRIBUTÁRIO. ESTADO DE SÃO PAULO. ICMS. PROGRAMAS DE COMPUTADOR (SOFTWARE). COMERCIALIZAÇÃO. No julgamento do RE 176.626, Min. Sepúlveda Pertence, assentou a Primeira Turma do STF a distinção, para efeitos tributários, entre um exemplar standard de programa de computador, também chamado "de prateleira", e o licenciamento ou cessão do direito de uso de software. A produção em massa para comercialização e a revenda de exemplares do corpus mechanicum da obra intelectual que nele se materializa não caracterizam licenciamento ou cessão de direitos de uso da obra, mas genuínas operações de circulação de mercadorias, sujeitas ao ICMS. Recurso conhecido e provido.” (RE 199464, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 02/03/1999, DJ 30-04-1999 PP-00023 EMENT VOL-01948-02 PP-00307)
“TRIBUTÁRIO – RECURSO ESPECIAL – PROGRAMAS DE COMPUTADOR NÃO PERSONALIZADOS – DL 406/68 – NÃO-INCIDÊNCIA DO ISS.
1. Os programas de computador desenvolvidos para clientes, de forma personalizada, geram incidência de tributo do ISS.
2. Diferentemente, se o programa é criado e vendido de forma impessoal para clientes que o compram como uma mercadoria qualquer, esta venda é gravada com o ICMS.
3. Hipótese em que a empresa fabrica programas em larga escala para clientes.
4. Recurso especial não provido.”
(REsp 1070404/SP, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/08/2008, DJe 22/09/2008)
[5] Tributário. ICMS. ISS. Programas de computador (software). Circulação.
1. Se as operações envolvendo a exploração econômica de programa de computador são realizadas mediante a outorga de contratos de cessão ou licença de uso de determinado "software" fornecido pelo autor ou detentor dos direitos sobre o mesmo, com fim especifico e para atender a determinada necessidade do usuário, tem-se caracterizado o fenômeno tributário denominado prestação de serviços, portanto, sujeito ao pagamento do ISS (item 24, da lista de serviços, anexo ao DL 406/68).
2- Se, porem, tais programas de computação são feitos em larga escala e de maneira uniforme, isto e, não se destinando ao atendimento de determinadas necessidades do usuário a que para tanto foram criados, sendo colocados no mercado para aquisição por qualquer um do povo, passam a ser considerados mercadorias que circulam, gerando vários tipos de negocio jurídico (compra e venda, troca, cessão, empréstimo, locação etc), sujeitando-se portanto, ao ICMS.
3- Definido no acórdão de segundo grau que os programas de computação explorados pelas empresas recorrentes são uniformes, a exemplo do "word 6, windows", etc, e colocados a disposição do mercado, pelo que podem ser adquiridos por qualquer pessoa, não e possível, em sede de mandado de segurança, a rediscussão dessa temática, por ter sido ela assentada com base no exame das provas discutidas nos autos.
4- Recurso especial improvido. Confirmação do acórdão hostilizado para reconhecer, no caso, a legitimidade da cobrança do ICMS.
(Resp 123022/RS, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em 14/08/1997, DJ 27/10/1997, p. 54729)
TRIBUTÁRIO – RECURSO ESPECIAL – PROGRAMAS DE COMPUTADOR NÃO PERSONALIZADOS – DL 406/68 – NÃO-INCIDÊNCIA DO ISS.
1. Os programas de computador desenvolvidos para clientes, de forma personalizada, geram incidência de tributo do ISS.
2. Diferentemente, se o programa é criado e vendido de forma impessoal para clientes que o compram como uma mercadoria qualquer, esta venda é gravada com o ICMS.
3. Hipótese em que a empresa fabrica programas em larga escala para clientes.
4. Recurso especial não provido.
(REsp 1070404/SP, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/08/2008, DJe 22/09/2008)
[6] “Artigo 1° - Na operação realizada com programa para computador ("software"), personalizado ou não, o ICMS será calculado sobre uma base de cálculo que corresponderá ao dobro do valor de mercado do seu suporte informático.
Parágrafo único - O disposto no "caput" não se aplica aos jogos eletrônicos de vídeo ("videogames"), ainda que educativos, independentemente da natureza do seu suporte físico e do equipamento no qual sejam empregados”.
[7] “No caso específico dos softwares comercializados por meio de download, por não haver suporte fático, não há base de cálculo e, consequentemente, não há imposto a ser recolhido. Contudo, ainda que não haja recolhimento do imposto, tais operações estão inseridas no campo de incidência do tributo, devendo, por este motivo, antes de iniciada a saída da mercadoria, ser emitido o correspondente documento fiscal.”
[8] “Em resposta, apesar de o artigo 51-A do RICMS/1999, com base no qual o entendimento da citada RC 891/1999 foi exarado, ter sido revogado e substituído, em sequência, pelo artigo 50 do RICMS/2000 (revogado pelo Decreto 51.520/2007) e, depois, pelo aludido artigo 1º do Decreto 51.619/2007, vigente atualmente, nota-se que o teor da norma continua o mesmo, portanto, por não ter havido alteração na definição da base de cálculo nas operações com “softwares”, o procedimento da Consulente, ao não tributar as operações realizadas com “software” que não tenha suporte informático, está correto.
Não obstante a impossibilidade de se exigir o recolhimento do ICMS, conforme exposto, as operações com programas para computador (“software”) sem a existência de um suporte informático estão inseridas no campo de incidência do tributo, devendo, antes de iniciada a saída da mercadoria, ser emitido o correspondente documento fiscal.”
[9] TRIBUTO - FIGURINO CONSTITUCIONAL. A supremacia da Carta Federal é conducente a glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos. IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS - CONTRATO DE LOCAÇÃO. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável - artigo 110 do Código Tributário Nacional.
(RE 116121, Relator(a): Min. OCTAVIO GALLOTTI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 11/10/2000, DJ 25-05-2001 PP-00017 EMENT VOL-02032-04 PP-00669)
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* Carolina Rocha Malheiros é advogada do escritório Siqueira Castro Advogados.