Migalhas de Peso

Algumas reflexões sobre o PL 39/13

O projeto, votado às pressas, lamentavelmente parece trazer marcas de autoritarismo e pouco caso com os direitos e garantias individuais.

30/7/2013

No momento em que escrevemos estas linhas, está para ser sancionado o PL 39/13, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.

Comenta-se nos meios jurídicos que os recentes protestos populares e a iminência da avaliação do Brasil pela OCDE em 2014 determinaram maior aceleração na tramitação do projeto. Assim, a lei a ser sancionada seria a resposta do Parlamento e do Executivo aos anseios dos cidadãos deste país. De fato, é possível, provável até, que o projeto tenha sido votado às pressas. Votou-se tão rapidamente que não se teve o cuidado de passar os olhos pela mais citada – e menos lida – das leis da República, que se chama Constituição Federal.

Muitos ainda escreverão sobre o novo diploma legislativo, que apresenta inúmeras novidades, seja na área do Direito Administrativo, seja na do Direito Penal. Contudo, os advogados que subscrevem este trabalho não puderam conter-se em antecipar-se aos doutrinadores e por de manifesto algumas teratologias existentes na lei em formação.

A primeira delas está no escancarado descumprimento do disposto no inciso XLV, do art. 5º., da Lei das Leis, que tem a seguinte redação: "nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido."

Como se percebe ao primeiro relance, a Constituição estabeleceu, como regra básica, a proibição de transferência das sanções. "Nenhuma pena passará da pessoa do condenado", diz a Lei Maior. Entretanto, a norma foi mais longe e admitiu que a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens pudessem, nos termos da lei, atingir a pessoa da empresa sucessora, desde que observado o limite do patrimônio transferido.

Antes de examinar o que diz o projeto deixado na mesa da presidente da República para sanção, é bom que se atente para princípio elementar de hermenêutica, a teor do qual a lei não pode ser interpretada e aplicada "em tiras", vale dizer com o aproveitamento de naco específico e desprezo por outro. Isto é elementar demais e encontra suporte até mesmo nos mandamentos do senso comum.

A lei de responsabilização administrativa e civil das pessoas jurídicas de fato fixa a multa como uma das consequências do atuar ilícito das empresas. Tanto equivale a dizer que a multa é pena prevista pela lei, a mesma pena que não poderia passar da pessoa do infrator, como enuncia a primeira "tira" do inciso XLV, do art. 5º. antes transcrito. Mas a parte inicial do parágrafo 1º. do art. 4º. do projeto está redigido assim: "Nas hipóteses de fusão e incorporação, a responsabilidade da sucessora será restrita à obrigação de pagamento de multa...(omissis)..."

Em outras palavras, o projeto diz que nas hipóteses de fusão e incorporação, "restritivamente", não se aplica a CF porque, repita-se, a pena não pode passar da pessoa do infrator para a do seu sucessor!

Dentro do aproveitamento "em tiras" da norma constitucional, o parágrafo prossegue com os seguintes dizeres: "e a reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido, não lhe sendo aplicáveis as demais sanções previstas nesta lei..."

Ou seja, no que diz respeito à multa, a Constituição não vale; contudo, em relação à reparação integral do dano, aí sim, é de se observar o limite do patrimônio transferido, porque este é o comando constitucional! A impressão que o projeto passa para o leitor comum é a de que a alusão ao adjetivo “restrito” no parágrafo 1º. do art. 4º. tem ar de coisa irônica. É como se fosse recado aos amantes do Direito Constitucional que se arrepiassem com a leitura do texto da lei nova. “Repare” – este o recado irônico – “que nesta parte, de modo restrito, deixamos para lá a Lei Maior; mas só nesta parte”…

Afaste-se, desde logo, qualquer argumento no sentido de que a multa prevista no PL 39/13 seria uma sanção pecuniária administrativa e, portanto, a ela não se aplicaria o postulado constitucional da intransferibilidade das penas, restrito apenas às sanções “corporais” como defendem alguns.

Isso porque as normas que estabelecem sanções administrativas são ontologicamente idênticas às que estabelecem sanções criminais. Qualquer fato pode ser indiferentemente tipificado na seara administrativa e na penal, sem que haja critérios materiais de gravidade ou importância do bem jurídico a ditar as opções legislativas. Multas de altíssimo valor como as previstas no PL 39/13 não perdem sua natureza de sanção apenas porque expressam determinada soma em dinheiro, sobretudo porque são capazes de causar graves danos patrimoniais à empresa condenada. Demais, o Código Penal em vigor tem a multa como pena expressamente cominada a inúmeros crimes. Isso tudo para não considerar que a Constituição Federal ao aludir ao “limite do patrimônio transferido” refere-se, desenganadamente à sucessão de pessoas jurídicas e à multa como pena.

Outro ponto a merecer exame é o relativo ao caput do artigo 5º do projeto. Deixa ele de lado a boa técnica legislativa, no momento em que estabelece que: “constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1º, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos: (omissis)”

Fica-se sem saber exatamente qual é o bem jurídico protegido pela norma. O que significa, por exemplo, “patrimônio público nacional ou estrangeiro”? Se considerarmos o termo como elemento normativo do tipo com o devido rigor técnico, seremos obrigados a buscar socorro na lei 4.717/65, artigo 1º, parágrafo 1º, que define patrimônio público como “os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico”. Mas qual desses bens buscou a lei proteger? Apenas os que possuam conteúdo econômico ou também os imateriais, como os bens culturais, históricos e afins? E como fica a definição de patrimônio público estrangeiro? Deve-se buscar na legislação alienígena a explicação?

Também não se compreende bem o que se se quer dizer com atentado a princípios da administração pública, sobretudo porque vivemos o apogeu dos princípios, que se multiplicam como coelhos a cada dia, de sorte tal que meros postulados ou mesmo regras de aplicação ou de hermenêutica foram promovidos e ascenderam socialmente para a classe dos princípios.

A Constituição Federal cuida apenas dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência em seu artigo 37, mas sabemos que há dezenas de princípios aplicáveis à Administração, como oficialidade, vinculação e motivação, dentre outros, que também são dignos de tutela.

Parece-nos, portanto, com o devido respeito, que a pretensão de punir determinada sociedade por ter vulnerado princípios algo, no mínimo, original no campo do direito administrativo sancionador. Isso porque os princípios – com toda a dignidade e importância que possuem - não são, de per se, bens jurídicos dignos de tutela a justificar a existência de norma sancionadora, até mesmo porque, ao contrário das regras, eles não detêm densidade suficiente para possibilitar o fenômeno da subsunção do fato à norma.

No que respeita aos compromissos internacionais, peca o legislador novamente pela falta de apego à técnica. Esses compromissos foram ou serão assumidos em tratados internacionais, ou são quaisquer compromissos comerciais? No momento da assunção do compromisso internacional, seus termos se transformam em norma interna independentemente de ratificação pelo Brasil? Trata-se de norma sancionadora em branco, que será preenchida no futuro de acordo com o que vierem a decidir os delegatários de nosso país?

Não bastasse, o artigo 5º trata de enumerar, em seus incisos I a V e parágrafos, diversas condutas, que não se consegue saber se estão lá a título meramente enunciativo ou se, ao contrário, trata-se de uma lista exaustiva de comportamentos vedados. A dúvida aumenta ainda mais quando se verifica a coincidência, quase absoluta, entre alguns desses tipos sancionadores e outros tipos já existentes em nossa legislação.

Se a lista é exaustiva e descreve adequadamente os comportamentos proibidos porque dizer no caput que “todos os atos [a seguir descritos] que atentem contra o patrimônio, os princípios e os compromissos” são ilícitos? Parece-nos, sem sombra de dúvida, que a intenção do legislador foi criar norma aberta, abertíssima, capaz de ser “preenchida” pelo aplicador, de acordo com cada caso concreto. De novo, houve desprezo pela CF porque descuidou-se de observar, dentre outros, o princípio da tipicidade, da reserva legal e da lesividade (nullum crimen sine iniuria), segundo o qual somente podem ser erigidos à categoria de ilícitos comportamentos efetivamente lesivos de bem jurídico alheio (por isso também conhecido como princípio da exclusiva proteção aos bens jurídicos), público (difuso ou coletivo) ou particular.

Noutras palavras, não basta que se estabeleça em abstrato a proibição de atentar contra o patrimônio público ou contra os princípios da administração. É necessário também descrever clara e objetivamente os comportamentos que tenham por fundamento a existência de lesão ou ao menos perigo de lesão a bens jurídicos dignos de proteção. De outra forma, termina-se por cair no terreno do arbítrio, ao permitir que o exercício do poder punitivo se justifique como um fim em si mesmo, numa espécie de raciocínio circular que relega a segundo plano os bens jurídicos e os próprios indivíduos, cujo bem-estar e dignidade terminam por ser o denominador comum de todo o sistema repressor estatal. Trata-se, em suma, de pretender sobrepor o Estado Espetáculo ao Estado de Direito, cada vez mais em moda nos dias de hoje. E a Constituição? “Ora, a Constituição” – devem ter pensado os autores do projeto.

Alguém dirá que, em se tratando de pessoas jurídicas, não faz sentido invocar princípios essencialmente vinculados à dignidade humana ou relacionados à proteção a direitos e garantias individuais, porquanto os bens jurídicos em jogo são quase sempre bens coletivos, cujos interesses não são passíveis de serem individualizados em primeiro olhar. Ocorre, entretanto, que toda proteção a bens jurídicos coletivos, como ocorre no caso PL 39/13, não pode descuidar em qualquer momento da necessidade de tutela de bens jurídicos individuais a eles subjacentes, uma vez que se encontra em jogo o bem-estar de todo o grupo de indivíduos que são afetados por qualquer disfunção que venha a ser verificada.

Empresas são feitas por dirigentes, empregados e colaboradores e cumprem papel essencial na sociedade. Por essa razão, não se harmoniza com a proteção à dignidade da pessoa humana, que a Constituição quer proteger, punir pessoas jurídicas, esquecendo-se que da sanção advirão ou poderão advir graves consequências para os indivíduos e famílias cuja subsistência depende da saúde financeira das empresas onde trabalham.

E, se é assim com relação à própria pessoa jurídica infratora, que dizer então da hipótese de pena por sucessão, na qual nem a empresa nem qualquer dos indivíduos que serão afetados pela imposição da multa tiveram qualquer relação ou participação com o ilícito praticado pela empresa sucedida?

Merece realce, ainda, aspecto prático quanto à dosimetria da sanção. A base de cálculo da multa, prevista no aludido projeto de lei, é o faturamento bruto da empresa do exercício anterior ao da instauração do processo. Pode variar de 0,1% a 20% dele. Se pensarmos em 20% do faturamento, ou algo próximo a isso, teremos mais uma causa de falência, qual seja a da multa decorrente da aplicação da lei. Assim, enquanto a tendência legislativa moderna era a da preservação da fonte de produção, através de mecanismos como o da Recuperação Judicial, o projeto vai no sentido oposto para fazer com que empresários pensem muitas vezes antes de investir no Brasil.

Contudo, se o faturamento não satisfizer o desejo do órgão de aplicação, dotado de superpoderes, o valor da multa pode ser fixado em reais diretamente. Nesse caso a multa variará na escala de R$ 6 mil até R$ 60 milhões! Dentro da largueza dos limites das penas mínimas e máximas, se garante, sem dúvida, a morte da sociedade.

Em seguida, e também como pena, temos a publicação extraordinária da decisão condenatória, que se dará às “expensas da pessoa jurídica, em meios de comunicação de grande circulação na área da prática da infração e de atuação da pessoa jurídica ou, na sua falta, em publicação nacional (...) e no sítio eletrônico na rede mundial de computadores” (artigo 6º, § 5º)

Surge aí, na verdade, outra multa, porque a tal publicação não corre na conta do órgão que impôs a sanção, mas é paga pela sociedade infratora. Corre, ademais, algo com nítido caráter constrangedor, porque a empresa terá de publicar, exatamente onde tem sua sede, em seu website ou – sabe-se lá em que circunstâncias – em todo o território nacional que funcionário seu tentou corromper agente público.

O dispositivo, com o devido respeito por aqueles que com ele concordam, reaviva lembrança de práticas de sistemas penais primitivos quando se penduravam cartazes no pescoço de pessoas com alusão à sua condição de condenados para submetê-los à humilhação e execração públicas. Agora a o tipo de humilhação mudou para tornar-se um pouco mais sofisticado. Continua o cartaz, divulgado pela grande imprensa e no website da empresa, com a nota “a empresa tal é corruptora”, quando, na verdade, a pessoa jurídica tinha funcionário corrupto nos seus quadros!

Quanto à obrigação de reparar o dano, tem-se, na verdade, espécie de multa adicional, imposta arbitrariamente pelo órgão aplicador, mesmo que a pena principal tenha sido a mais grave possível. É o que está posto no parágrafo terceiro do art. 6º.: “A aplicação das sanções previstas neste artigo não exclui, em qualquer hipótese, a obrigação de reparação integral do dano causado”, ainda que o evento danoso não ocorra, o que na prática transforma o suposto ressarcimento do dano em penalidade travestida de indenização.

Mas há, ainda, outros pontos inconciliáveis com o direito vigente no Brasil.

Ao Direito de Defesa, por exemplo, dedicou-se um único e exclusivo artigo, que leva o número 11, no qual se estabelece que “será concedido à pessoa jurídica o prazo de 30 dias para a defesa, contados a partir da intimação”. O leitor do projeto fica em dúvida insolúvel para saber qual o termo a quo para a apresentação de peça defensiva, na medida em que o projeto é totalmente omisso quanto ao procedimento apto a conduzir a pessoa jurídica a ser severamente apenada. Prevaleceriam os ditames da lei 9.784/99 que trata do processo administrativo sancionador? Da decisão que aplica a pena de multa cabe recurso para algum órgão? A defesa pode manifestar-se após a coleta da prova? O julgamento é público?

Ainda sobre o direito de defesa, revela-se de duvidosa constitucionalidade o inciso VII do artigo 7º, que estabelece a cooperação da pessoa jurídica como atenuante no momento de calcular-se a pena. Vários são os problemas daí advindos. Primeiramente, criam-se estímulos a comportamentos bastante questionáveis do ponto de vista ético, através dos quais indivíduos se apressarão em prejudicar a empresa em lugar de defendê-la, em frontal violação ao dever de lealdade, inerente a qualquer cargo de direção.

Depois, o PL 39/13 esquece que a empresa é representada pelos seus administradores e que a denúncia ou cooperação na esfera administrativa pode inviabilizar sua defesa na esfera criminal, em manifesta violação do princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. Os dirigentes da empresa decerto ficarão em situação juridicamente insustentável e manifestamente incompatível com o exercício pleno do direito à ampla defesa e ao contraditório. De que adianta a garantia constitucional ao devido processo legal substantivo se, na prática, esta garantia passa a ser improvável ou impossível?

Por último, quando estivermos tratando de empresas de capital aberto com ações negociadas em bolsa, cria-se perverso estímulo ao “denuncismo” inconsequente, uma vez que a conta será paga, na prática, por todos aqueles que investiram seus recursos nesses valores mobiliários e que verão seu preço despencar. O dono da empresa é o público investidor, que em nada concorreu para a prática do ilícito, mas que sofrerá as consequências da sanção.

E como conciliar o dever de informação ao mercado com o caráter sigiloso do acordo de leniência (outra criação do Projeto), que somente é conhecido após sua efetivação? Todas estas perguntas - pode-se assegurar ao leitor - não têm resposta no projeto “aprovado às pressas”, repita-se, hipoteticamente para atender os reclamos do povo nas ruas. O projeto, ou a lei, contempla incontáveis outros aspectos que não cabem nos estreitos limites deste artigo. Uma coisa, porém é certa: novo tempo se aproxima. Lamentavelmente, parece trazer marcas de autoritarismo e pouco caso com os direitos e garantias individuais.

Ninguém em sã consciência pode ser contra o combate à corrupção. Mas não podemos deixar que a pressa nos reconduza ao autoritarismo que tanto lutamos para vencer com a Constituição Federal de 1998. Resta a esperança de que a Presidente da República não sancione o projeto sem a devida reflexão e a necessária serenidade.

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* José Andrés Lopes da Costa é sócio do escritório Chediak, Lopes da Costa, Cristofaro, Menezes Cortês, Rennó e Aragão Advogados; Luiz Fernando de Freitas Santos é advogado

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