O Brasil despertou. Após anos de letargia, multidões ocuparam as ruas para demonstrar a profunda insatisfação do povo. Não nos enganemos. A causa não foi a elevação do preço do bilhete único em 20 centavos. O aumento do preço, nos péssimos serviços de transportes coletivos, da maior capital do País, apenas acendeu o rastilho que deflagrou explosões provocadas pelo acúmulo de problemas sociais e econômicos entre as classes B, C, e D.
A força incontrolável das massas se fez sentir, repentinamente, em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Salvador, Porto Alegre, João Pessoa, Florianópolis, Campo Grande, na revelação de que a paciência do povo se esgotou diante da corrupção, do peso dos impostos, e da insensibilidade dos representantes políticos diante do descalabro dos serviços públicos.
Cansado de se queixar e não ser ouvido, o povo tomou as ruas, na desesperada tentativa de ser ouvido pelos poderes Executivo, Legislativo, e Judiciário, isolados em Brasília, de onde não conseguem avaliar e sentir o que se passa, cá em baixo, entre a população sofrida e espoliada.
Os governos, como era de se esperar, reagiram, mas demoradamente. Na capital Federal, e nos Estados, o que se viu foram governantes atônitos e perplexos, incapazes de decidirem como e o que fazer. Por falta de coragem, e de liderança, recorreram, como teria feito o regime autoritário, à polícia. Para resolver problemas sociais agudos, retrucaram com bombas de gás lacrimogêneo, cassetetes, balas de borracha.
Sob a pressão das massas, e atemorizada pela subida vertical dos índices de rejeição, a presidente Dilma Rousseff, de moto próprio, ou orientada por assessores palacianos, resolveu aparecer, e o fez com propostas que exibem as marcas da improvisação. A primeira consistiu na ideia de convocação de assembleia nacional constituinte, destinada, é óbvio, a dotar o país da oitava de longa série de constituições, se começarmos pela Carta Imperial de 1824.
S.Exa. demonstrou ignorar que o processo de redemocratização, iniciado em janeiro de 1985 com a eleição de Tancredo Neves, foi concluído com a promulgação da Constituição de 1988, rejeitada na ocasião pelo PT. Conquanto a atual lei orgânica da Nação conceda ao presidente da República longa série de competências, não lhe conferiu a prerrogativa de convocar assembleia constituinte, medida que, nas atuais circunstâncias, equivaleria a golpe branco contra o Estado Democrático de direito.
Alertada por alguém S. Exa. recuou, para voltar com proposta de plebiscito. A figura jurídica não é nova, ou estranha ao ordenamento constitucional; está prevista nos artigos 14, I, 18, §§ 3º e 4º, 49, XV, e no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, art. 2º.
O colégio eleitoral já se manifestou através de plebiscito. Assim o fez quando deliberou sobre a forma de governo (república ou monarquia constitucional), sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo), desarmamento da população, divisão do Pará em dois estados. O perigo, diante da iniciativa atabalhoada da Sra. Presidente Dilma Roussef, consiste na banalização do primeiro dos instrumentos de manifestação da soberania popular (CR, art. 14, I), cuja utilização deve ser reservada a situações para as quais não bastará deliberação do Poder Legislativo, como nas hipóteses previstas no art. 2º do ADCT.
Indagar do colégio eleitoral, por exemplo, se é favorável à existência de suplentes de senador, eleitos segundo a regra do art. 46, § 2º, da Constituição significa lhe submeter problema cuja resposta não será encontrada com "sim", ou "não".
As quatro outras questões: financiamento de campanhas, definição de sistema eleitoral, fim das coligações partidárias, voto secreto no Congresso, são ainda mais controvertidas, como revelam os conhecidos desacordos partidárias, no Senado, e Câmara dos Deputados. São temas complexos, em torno dos quais inexiste consenso nem mesmo no interior da mesma bancada.
Se o Legislativo autorizar o plebiscito, competirá ao Tribunal Superior Eleitoral a formulação das perguntas, cujas respostas a Sra. Presidente deseja conhecer? Penso que não. O art. 2º, § 2º, do ADCT foi dirigido, especificamente, àquele realizado em 21 de abril de 1993, conforme dispôs a Emenda Constitucional 2/92. Esta emenda, no § 3º do artigo único, concedeu ao STE competência "para expedir instruções necessárias à realização "da consulta plebiscitária", e não "de consulta plebiscitária". Destarte, salvo melhor juízo, ao STE caberá organizar a realização do plebiscito, não a responsabilidade de formular perguntas. Indagar é encargo de quem deseja conhecer a opinião de cada eleitor, acerca de tema entregue à deliberação popular.
Consultada a lei 4.737, de 15 de julho de 1965, que instituiu o Código Eleitoral e foi recepcionada pela Constituição, não encontraremos, entre as competências do TSE nada que diga respeito à redação de perguntas a serem dirigidas à população, em eventual plebiscito.
Até onde se sabe, aliás, o TSE não tem perguntas a respeito de coligação partidária, como eleger suplente de senador, quem financiará campanhas, se as vagas na Câmara serão preenchidas pelo voto proporcional, lista flexível, ou fechada, voto majoritário, distrital puro, ou misto, fim das coligações partidárias, voto aberto ou secreto no Poder Legislativo. Responde, se for o caso, "sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político" (art. 23, XII) e, enquanto órgão do Poder Judiciário, julga de conformidade com a lei, para aplicá-la ao caso concreto.
Saberá a presidente Dilma o que perguntar? Essa é a dúvida que paira no ar.
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* Almir Pazzianotto Pinto é advogado, foi Ministro do Trabalho e presidente do TST.