Interessante e bem lançada a decisão proferida pelo juiz da comarca de Lajeado que julgou improcedente a pretensão do autor que visava a anular o registro de nascimento lavrado em seu nome, como pai. O processo tramitou em segredo de justiça e o autor da ação pleiteou a negativa de paternidade da filha, após realizar exame de DNA, que o excluiu biologicamente. O relato processual dá conta de que, durante doze anos, o requerente cultivou uma família na qual nasceu e cresceu a menina e sponte propria foi registrada por ele.
O conteúdo jurídico da sentença proferida pelo juiz Luiz Antônio de Abreu Johnson residiu no fato de que “dez anos se passaram desde o nascimento da filha até o ajuizamento da demanda. Houve convivência, houve troca, houve afeto. A menina foi apresentada à sociedade como filha, e ele como pai dela, e assim foi criada a ideia de pertencimento”.1
A cultura brasileira ainda carrega o inconveniente ranço dos “laços de sangue”, procurando deixar sempre evidenciada a importância da herança genética, como fator de segurança na afirmação da família e também na prevenção de doenças futuras, no caso daquelas hereditárias. A própria legislação civil revogada vedava o reconhecimento de filhos adulterinos e incestuosos, além de restringir os direitos do adotado. O critério é que mais legítimo seria o filho quanto maior fosse o grau de consanguinidade.
Lobo, com muita acuidade, acentua:
“O CC, por seu turno, consagrou em sede infraconstitucional as linhas fundamentais da CF em prol da paternidade de qualquer origem e não apenas da biológica. Encerrou-se definitivamente o paradigma do CC anterior, que estabelecia a relação entre filiação legítima e filiação biológica; todos os filhos legítimos eram biológicos, ainda que nem todos os filhos biológicos fossem legítimos. Com o desaparecimento da legitimidade e a expansão do conceito de estado de filiação para abrigar os filhos de qualquer origem, em igualdade de direitos (adoção, inseminação artificial heteróloga, posse de estado de filiação), o novo paradigma é incompatível com o predomínio da realidade biológica. Insista-se, o paradigma atual distingue paternidade e genética”.2
Após a CF. várias inovações foram inseridas no direito à procriação. Todos os filhos, havidos ou não fora do casamento, assim como aqueles provenientes de adoção, gozam dos mesmos direitos, sem quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Nasce, então, não só pelo permissivo legal, mas também como um novo conceito social, a paternidade socioafetiva, na qual alguém, sem qualquer vínculo sanguíneo e sem imposição legal, recebe uma criança como filho, tendo como sustentáculo o sentimento de afeto e amor.
No caso em comento, a filha sente-se filha dos pais com quem conviveu e realizou sua história de vida até então e os pais, da mesma forma, sempre agiram com a devoção peculiar daqueles que geraram. Pai e mãe, desta forma, pelo novo perfil da família, não são aqueles que cederam o material procriativo e sim aqueles que criaram, educaram e dispensaram afeto e carinho, procurando conferir um ambiente perfeito e responsável para que a criança possa desenvolver suas qualidades, viver em harmonia e atingir a plena realização. É o demonstrativo mais sincero de que o afeto fala mais alto do que qualquer prova sanguínea.
Todo tipo de relacionamento, em qualquer idade, na realidade, se traduz no apego. A convivência de vários anos com canais comunicantes faz com que as pessoas vivam muito próximas, criando vários espaços de sintonia afetiva. A criança, em razão da tenra idade, vive em função de seus cuidadores e junto deles procura criar uma base estrutural com a solidez necessária. A vulnerabilidade do ser humano inicia com seu próprio nascimento e se desenvolve pelas várias fases da vida. É justamente nos primeiros anos que surge a convivência de dominação, não no sentido egoístico, mas sim no de exploração de todas as qualidades e virtudes recomendadas, mesmo sem o determinismo genético. Cyrulnik, neuropsiquiatra e chefe de ensino da “clínica do apego”, da Universidade de Toulon, em definição exemplar, alertou que “a gente não se apega ao mais gentil ou ao mais diplomado, a gente se apega a quem nos dá segurança”.3
As duas paternidades podem ser questionadas na justiça com a apresentação de todos os meios de provas considerados idôneos em direito. Não seria nenhum contrassenso dizer que a melhor paternidade seja a decorrente da junção da biológica com a afetiva, pois reúne os dois ingredientes necessários para facilitar a perfeita e harmônica convivência. Se o filho adotado pleitear, como agora é permitido pelo ECA, o reconhecimento de sua origem genética, não contraria em nada a paternidade já firmada como afetiva, pois se trata do exercício do direito de conhecer sua cadeia genética. O código menorista deixa evidenciado: “O Adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos”.4
Em decisão recente, porém, a 4ª turma do STJ, em processo que teve como relator o ministro Luis Felipe Salomão, entendeu que “deve prevalecer a paternidade socioafetiva sobre a biológica para garantir direitos aos filhos, na esteira do princípio do melhor interesse da prole, sem que, necessariamente, essa afirmação seja verdadeira quando é o filho que busca a paternidade biológica em detrimento da socioafetiva”.5
No caso do julgado, trata-se de “adoção à brasileira”, pois a menina foi entregue a um casal que a registrou como se fosse o pai e a mãe biológicos. Posteriormente, com a morte dos pais registrais, quando a autora contava com 47 anos de idade, pleiteou ação de investigação de maternidade e paternidade com anulação de registro contra seus pais biológicos. O juízo de primeiro grau deferiu o pedido, mas manteve o registro de nascimento inalterável. O TJ/RS reformou a sentença, julgou a ação improcedente porque flagrantemente descabida a investigação de paternidade quando resta consolidada a relação jurídica de paternidade socioafetiva com o pai e a mãe registrais.
A decisão do STJ desconstitui o vínculo socioafetivo desenvolvido durante muitos anos entre a autora e seus pais registrais, que são excluídos da certidão e dão lugar aos pais biológicos, sem qualquer convivência. Mas, como bem ressaltado pelo digno Relator, trata-se de “adoção à brasileira” e a filha tem o direito de conhecer sua origem genética, principalmente por não ter contribuído com a existência de erro ou falsidade no documento registral.
Mas, mesmo com a existência da falsidade na declaração de nascimento, criou-se um vínculo muito maior que ultrapassa todas as letras da lei e vai ao encontro do anseio de aceitabilidade legal e até mesmo popular. O que se leva em consideração é justamente o afeto, o pertencimento, o envolvimento emocional que impulsionou as pessoas que participaram do relacionamento familiar afetivo. O tempo de convivência estabeleceu um regramento todo especial. Tamanha é sua força, que se encarregou de decretar a extinção de punibilidade por eventual delito e fez com que prevalecesse o documento registral como prova inconteste de filiação. Seria até mesmo certa contradição o pai biológico, após muitos anos sem se interessar pela prole, num repente, ocupar o espaço daquele que durante toda uma vida dedicou esforço e comprometimento na educação da criança.
O STF já lançou olhares a respeito da prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica e, em votação eletrônica regulamentada pela EC 45, reconheceu a repercussão geral do tema pela sua relevância sob os pontos de vista econômico, jurídico e social.6
É certo que o patrimônio genético, apresenta-se como dado importante. É aquele que assegura a própria sobrevivência da espécie, por isso rotulado de patrimônio genético da humanidade. O Conselho da Europa, preocupado com os procedimentos inescrupulosos, recomendou a intangibilidade da herança genética levando em consideração as intervenções artificiais. “O patrimônio genético, como o próprio nome diz, afirma Oliveira Júnior, é a somatória das conquistas do homem, no plano físico, psíquico e cultural, que o acompanha através de seus registros biológicos, faz parte de sua história e evolução e, como tal, merece a proteção legal. É o relato e o retrato da raça humana, desde o homem de Neandertal. Passa a ser objeto de tutela pessoal e estatal e qualquer ofensa a ele é desrespeito à própria humanidade. A proteção desloca-se da individualidade do ser humano já formado, com personalidade própria, para aquele que ainda vem a ser, com personalidade jurídica”.7
O próprio CC, que entrou em vigência em 2002, trouxe considerável colaboração com nova postura em razão dos avanços da engenharia genética. Desprezou a regra de que a maternidade é sempre certa (maternitas certa est). Resolve-se, desta forma o impasse para saber se a mãe vem a ser a que doou os óvulos ou a que os recebeu e gerou o filho. Mas, em contrapartida, é de se indagar também a respeito da prole de ambas. Como não há qualquer registro ou banco de dados a respeito da ovodoação, pode até ser que os filhos, sem a catalogação genética necessária, venham a se casar entre si e trazer outros complicadores biológicos e legais.
Nesta linha de pensamento, apesar do DNA ter apontado outro pai biológico, tem-se a impressão que a mais coerente interpretação seja a de manter a paternidade registral, sem prejuízo do reconhecimento da paternidade biológica, como um dado genético, próprio da natureza. Será o demonstrativo a inteligência, o espírito humano, a convivência entre as pessoas, a troca de afetos, o pertencimento, a solidariedade sempre presente, sentimentos esses comunicantes, estabelecem e fortalecem a relação familiar. A relação biológica carrega somente a origem genética, que passa para o segundo plano num mundo em que se busca muito mais do que a informação da natureza.
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1 Processo 110.005.897, que tramita em segredo de justiça, pela comarca de Lajeado (RS).
2 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Paternidade socioafetiva e o retrocesso da súmula 301 do STJ. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1036, 3 maio 2006 .
3 Cyrulnik, Boris. Dizer e morrer. Tradução Claúdia Berliner – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 102.
4 Artigo 48 do ECA.
5 O número e o processo não foram divulgados em razão de sigilo judicial.
6 ARExt 692.186.
7 Oliveira Júnior, Eudes Quintino de. As condutas e responsabilidades médicas em face do princípio da autonomia do paciente. Tese de Doutorado. Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto - Famerp – São José do Rio Preto, 2010, p. 120.
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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado e advogado; Pedro Bellentani Quintino de Oliveira é advogado.