Migalhas de Peso

Adicionais de ICMS vinculados a fundo de combate à pobreza do Rio de Janeiro – um exemplo de tema a ser revisto pelo Poder Judiciário

Identificar as verdadeiras razões de decidir e segregá-las de passagens obiter dictum, meras observações ou opiniões do julgador que extrapolaram o objeto do processo, é importante para evitar distorções.

14/6/2013

No jargão jurídico, a expressão obiter dictum refere-se a trechos de uma decisão judicial que não determinam a sua conclusão, ou seja, são meras observações ou opiniões do julgador que extrapolaram o objeto do processo e, portanto, não poderão ser consideradas razões de decidir. Tomemos, por exemplo, um inquilino com vasto histórico de condenações por fraude, mas que é despejado de um imóvel por falta de pagamento. A sentença pode até fazer uma alusão à vida pregressa do inquilino, o que será um obiter dictum, mas o fato determinante para o despejo será o inadimplemento do aluguel.

Identificar as verdadeiras razões de decidir e segregá-las de passagens obiter dictum é importante para definir o sentido e o alcance de uma determinada decisão judicial e também em que medida seus fundamentos influenciarão julgamentos futuros sobre questões análogas. Caso contrário, os efeitos do julgado podem ser distorcidos por passagens que não são relevantes para a orientação do juiz ou do tribunal. É que o obiter dictum aborda questões que não foram objeto do processo e, portanto, não foram adequadamente debatidas. No exemplo mencionado, as alusões do magistrado a antigas fraudes praticadas pelo réu não fazem de sua decisão um precedente favorável à tese de que é possível despejar um inquilino em razão de seus antecedentes.

Uma distorção dessa natureza ocorre em relação aos embates judiciais em torno dos adicionais de ICMS vinculados ao fundo de combate à pobreza do Estado do Rio Janeiro, imposto esse de constitucionalidade duvidosa, mas que está sendo validado pelos tribunais em razão de uma passagem obiter dictum de decisão do STF.

Referido imposto foi concebido com fundamento nos artigos 82 e 83 do ADCT - Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que autorizava os Estados e o Distrito Federal a instituir adicionais de ICMS, de até dois pontos percentuais, sobre produtos e serviços supérfluos definidos em lei Federal. Ocorre que o adicional de ICMS do Rio de Janeiro, previsto na lei 4.056/02, foi instituído à margem de qualquer lei Federal, alcança produtos notoriamente essenciais, como materiais de construção e itens de vestuário, e sua alíquota em determinadas operações já chegou a 5 pontos percentuais acrescidos à alíquota base do ICMS. Essas notórias discrepâncias entre o adicional de ICMS fluminense e o seu figurino constitucional levaram a uma enxurrada de ações judiciais, dentre as quais a ADIn 2869, tendo como objeto a lei 4.056/02.

Em 19/11/03 foi promulgada a EC 42, que retirou do ADCT a exigência de lei Federal definidora dos produtos e serviços supérfluos sujeitos aos adicionais de ICMS. Além disso, o artigo 4º dessa emenda pretendeu convalidar, até 2010, a cobrança de adicionais instituídos em desacordo com a própria emenda 42, a emenda 31 e a lei complementar definidora das normas gerais sobre a incidência de ICMS (LC 87/96).

Em razão da emenda 42, a ADIn 2869 teve seu seguimento negado por decisão singular do ministro Ayres Brito, do STF. Entendeu-se que as normas constitucionais haviam sido substancialmente alteradas, de maneira que aquela ADIn perdera seu objeto. Esta foi a razão de decidir adotada pelo min. Ayres Brito. Ocorre que, extrapolando do objeto daquele processo e, assim, em mera declaração lateral, obiter dictum, o min. Ayres Brito observou que o "art. 4º validou os adicionais criados pelos Estados e pelo Distrito Federal, ainda que esses estivessem em desacordo com o previsto na Emenda Constitucional n. 31/01. Sendo assim, se pairavam dúvidas acerca da constitucionalidade dos diplomas normativas ora adversados, estas foram expressamente enxotadas pelo mencionado art. 4º".

Tomando-se por base exclusivamente suas razões de decidir, a ADIn 2869 não deveria exercer qualquer influência no resultado nas discussões individuais acerca da constitucionalidade dos adicionais de ICMS do Estado do RJ, já que as considerações supratranscritas do ministro Ayres Brito não foram objeto do processo, cujo mérito, aliás, sequer veio a ser julgado. A despeito da opinião esboçada pelo ministro, em caráter obiter dictum, as questões pertinentes à constitucionalidade dos adicionais de ICMS e de sua convalidação pela emenda 42 não foram conhecidas no julgamento da ADIn 2869 e os fundamentos referentes ao mérito dessa discussão não foram considerados, analisados e valorados pelo plenário do STF nem por suas turmas.

No entanto, em diversos julgamentos que sucederam a ADIn 2869, o TJ/RJ e o próprio STF empregaram o obiter dictum do ministro Ayres Brito como exemplo de uma jurisprudência assentada e favorável à cobrança dos adicionais de ICMS fluminenses. Mesmo nas ocasiões em que o STF voltou a apreciar a matéria, seus julgados tinham como principal fundamento o "precedente" da ADIn 2869, privilegiando-se o obiter dictum em detrimento da análise adequada dos fundamentos da inconstitucionalidade da lei fluminense.

Empregar um fragmento extraído de uma decisão de ADIn proferida por um único ministro como se fosse a posição consolidada do STF constitui um grave vício na construção da jurisprudência sobre a validade dos ditos adicionais de ICMS. Com efeito, as considerações do ministro Ayres Brito devem ser analisadas no contexto da decisão na qual foram tecidas e jamais poderiam ser tomadas como a síntese de uma posição sacramentada pelo STF.

É tempo, pois, de corrigir o rumo das discussões judiciais em torno dessa matéria, reconhecendo-se que se trata de uma controvérsia ainda carente de apreciação adequada pelo STF.

A esse respeito, deve-se examinar se uma lei editada em desconformidade com o texto constitucional vigente à época pode ser constitucionalizada a posteriori. Ou seja, partindo-se do pressuposto de que uma lei contrária à constituição constitui letra morta, poderia ela ser "ressuscitada" por uma Emenda à Constituição?

Além disso, como dito anteriormente, a lei estadual sobretaxou, como supérfluos, gêneros de caráter essencial, como vestuário e materiais de construção, onerando o consumo das camadas mais carentes da população. Seria possível convalidar uma cobrança com essas características sendo que, mesmo após a emenda 42, a Constituição continuou a exigir que os adicionais de ICMS vinculados a fundos de combate à pobreza tenham sua incidência limitada a bens e produtos supérfluos?

Por fim, tendo em vista que os supostos efeitos convalidantes atribuídos ao artigo 4º da emenda 42 deveriam durar até 2010, como poderia o Estado do Rio de Janeiro continuar a cobrar os adicionais a partir daquele ano?

Todas essas questões continuam a reclamar maior atenção de nossos tribunais, que não podem se furtar a analisá-las sob o fundamento equivocado de que a ADIn 2829 teria solucionado estas e todas as demais controvérsias em torno dos adicionais de ICMS vinculados ao Fundo de Combate à Pobreza do Estado do Rio de Janeiro.

___________

* Luiz Carlos Junqueira Franco Filho é advogado do escritório Oliveira Ramos, Voigt, Maia e Associados

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Tema 1348 do STF: Imunidade do ITBI nas holdings e seus impactos

4/11/2024

Direito ao distrato em casos de atraso na obra: O que diz a lei

4/11/2024

Seria o vínculo trabalhista a única forma de proteção social?

4/11/2024

Os contratos de distribuição e seus aspectos jurídicos em mercados regulados: O setor farmacêutico

4/11/2024

Por um jogo mais responsável

4/11/2024