O conheci de perto tem alguns dias. Ou serão alguns anos? Espaço e tempo parecem se confundir nesse mecanismo inexato, belo e triste que é a memória humana. Cheiros se confundem com visões, pedaços são enxertados da realidade nos pesadelos ensopados de suor, as coisas vividas se confundem com a realidade imaginada nos sonhos mais perigosos (naqueles sonhados de olhos abertos). Não sabemos nada da memória. Melhor recomeçar: não lembro quando o conheci.
Tenho visões estranhas, lembranças de um homem jovem com a mão no bigode posicionado atrás daquele que era o grande ladrão da República, o inimigo número um do país (ao menos, o inimigo da vez). Hoje eu entendo, sua posição era de cão de guarda; não do crime, mas de um oprimido, não importasse o que aquele teria ou não feito. O réu é sempre um oprimido, como nos ensinou Waldir Troncoso Peres. De todo modo, eu ainda era uma criança e pensava como pensa a multidão: se está com o ladrão, deve ser do grupo. Também o presumi culpado (o cliente) até porque toda criança nasce jornalista. Curioso como a ignorância nos permite a felicidade e o pior, permite-nos a certeza sobre tudo e todos. Eu tinha 10 ou 11 anos.
Brincadeiras e cutucadas à parte, puxo na memória outra cena. Ele de braços dados com o cliente, um respeitado magistrado, na saída de uma audiência ou coisa parecida. O advogado recebe a enxurrada de repórteres, uma manada que precisa e pesca a frase de efeito para a manchete do dia seguinte (e que puxará notícias por toda a semana, vendendo jornais e espaço de propagandas). Mas como também acontece na advocacia a nova geração de jornalistas é lotada de doutores em ter razão sem o mínimo compromisso intelectual com a matéria que tratam e, nesse caso, esses novos jornalistas se fizeram representar por boba alegre que ao fazer uma pergunta, claramente se pensou a voz do povo (e petulantemente, a de Deus): “Como o senhor consegue defender gente assim?”.
A resposta, direta e humilhante: “Defenderia até a mãe da senhora”. Anos tinham se passado desde a primeira lembrança. Creio estava na faculdade ao tempo dessa brilhante resposta. E o magistrado foi absolvido.
Anos depois outra atuação sua gerou revolta em meio mundo. Soltaram, depois de seus argumentos serem ouvidos, a assassina dos pais. O que faria o advogado de grande nome diante de tais circunstâncias? A história recente indica que procuraria um refúgio, tiraria uns dias de folga e desapareceria, sem falar com nenhum repórter. Ele, ao contrário, foi a um programa televisivo, de plateia na sua maioria de jovens, fazer entender que deveríamos ter evoluído como nação e que pensamentos como “réu confesso não pode estar solto durante o processo” é fruto de ignorância legal, analfabetismo e cinismo diante da história de abusos do poder público. A regra é que todos merecem a liberdade até a condenação final simplesmente porque a culpa criminal pode a qualquer momento ser alterada, realmente descoberta ou mudar de mãos. E claro: a exceção não justifica a existência da regra.
E assim são minhas lembranças (ou serão invenções minhas?) antes de frequentar um mundo confessional e vintage como é o dos advogados criminalistas de São Paulo.
Assim que cheguei nesse mundo sempre ouvi falar dele como um dos altos cardeais (um dos preferiti) dessa cúria invejada, odiada e incompreendida - mas respeitada assim como são os exorcistas – que é a cúria dos advogados de defesa.
Ocorre que o drama do mundo é existencial. O humano velho tenta voltar a ser jovem e o jovem, ser velho antes do tempo. Logo me impressionei, e mal, muito mal, pelas ressalvas que meia dúzia de jovens gatos pardos faziam à sua personalidade. Chamavam-no de brigão, de esquentado, de advogado fora de moda por não ter títulos acadêmicos. Aqui, uma observação muito pessoal: são exemplos raros na história quem foi mestre em um ofício e soube ensiná-lo, principalmente quando tratantes de ciências distintas, ou mais especificamente, de uma ciência e de uma arte. Direito e advocacia são como pincéis e pintor, instrumento e artesão. Enzo Ferrari foi um gênio, mas de diferente área que um Alain Prost. Não há intenção em diminuir a ciência do direito com essas observações, muito pelo contrário, mas o direito pelo direito não tem vida (há vida na busca do cientista pela hipótese!) e seu tradutor tem sido o advogado desde a Grécia antiga. Ao menos desde a Grécia antiga.
Mas os que criticam são os que temem. E se temem, é porque não são capazes de compreender. Como meninos da minha idade podem criticar advogados que há anos fazem história, nadando contra a corrente e vencendo-a? Há uma petulância a corroer a advocacia criminal.
Mas a vida é engraçada.
Meses atrás, eu, meus irmãos Fábio Tofic, Augusto de Arruda Botelho e Carlos Chammas Filho estávamos matando o trabalho para assistirmos as sustentações orais da AP470. E lá estava ele ali, na culminância da tribuna do STF com a falsa tranquilidade de um gênio na grande área. Sua cliente foi absolvida. E bem. Os bons honorários devem ter sido esquecidos pela cliente, que imagino ter pensado: “Se tudo o que eu ouvi é verdade, sou de fato uma grande sujeita”.
Meses se passaram e depois de um caso de júri em que atuei (caso de certo destaque) o encontrei numa sessão de palestras sobre o júri. Foram me apresentá-lo e ele levantou da cadeira para me cumprimentar, dizendo meu nome antes que o dissessem para ele. Abraçou-me, me beijou o rosto e me parabenizou pela atuação. As pernas trêmulas se seguraram. E logo pensei que precisaria comemorar aquele momento. Um mestre sabia o meu nome!
Na saída, andávamos juntos quando um amigo olhou e lançou o convite de Baco: “E agora?”. Respondi sem hesitar: “Preciso de um trago”.
Ele só resmungou: “Um trago?”. E ficou por isso mesmo. Despedimo-nos e fomos cada qual para o seu canto.
Fui saber depois que o “trago” de certa forma nos apresentou. Evidente que eu soube por ele, entre um trago e outro. Para o poeta o trago revela mais que um copo, revela um espaço sem tempo.
Concluo: a vida seguirá. São tempos difíceis para ser advogado criminalista. Antes não podíamos dizer. Era proibido. Agora podemos dizer, mas não querem nos ouvir e não há regra que nos permita entrar na cabeça do juiz para saber se ao menos nossos argumentos estão sendo considerados. Comercialmente e no plano restrito da profissão, muitos são os advogados e suas particularidades. Existem advogados respeitados por seus honorários. Outros respeitados porque grandes políticos. Outros porque muito capazes tecnicamente. A maioria, porque passam casos menos importantes para a claque que os rodeiam. Isso é bom, não é ruim não. Ruim é só serem respeitados por causa disso.
E claro, eu não disse seu nome. Recuso-me. A grandeza desse monstro da advocacia está no fato de você, leitor, saber de quem estou falando.
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* Thiago Gomes Anastácio é advogado criminalista.