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Comarcas ou filiais?

As comarcas, no Judiciário, são como as filiais na empresa privada. A matriz é substituída pelo tribunal, de onde parte o comando para o desenvolvimento da atividade de prestação de serviços.

13/6/2013

As comarcas, no Judiciário, são como as filiais na empresa privada. A matriz é substituída pelo tribunal, de onde parte o comando para o desenvolvimento da atividade de prestação de serviços. A lei de organização judiciária do estado diz que “a cada município corresponderá uma comarca”.

Nesse caso, com a desativação de 43 comarcas houve significativo retrocesso, porquanto a lei considera cada município uma comarca, e a Bahia acaba de contrariar essa previsão, porquanto deixou mais municípios sem constituírem sede de comarcas.

O TJ desativou 50 comarcas, mas, logo depois e diante dos protestos, resolveu reativar sete, fechando, no final, 43 comarcas. Entre essas, há unidades judiciárias com fórum, recentemente reformados, com cartório eleitoral, com casa de juiz, com servidores e com toda a engrenagem inexistente em muitas que atualmente estão em funcionamento.

É como se uma empresa fechasse, no estado, 43 filiais. Nesse caso, a repercussão para o negócio é bastante significativo, pois foram suspensas as atividades de mais de 20% do número de agências; o fechamento das 43 unidades judiciárias continua refletindo na vida de aproximadamente 500 mil pessoas em todos os municípios atingidos pela medida.

A desativação deu-se porque, segundo o gestor, não atendia às condições para continuarem funcionando; diz que não havia número mínimo de feitos ajuizados anualmente, além de insignificante arrecadação de custas judiciais. A medida extrema causou surpresa e aborrecimento às respectivas comunidades; induvidosamente, houve algum erro, na instalação ou na desativação.

Poucos tribunais do país levaram adiante eventual proposta de desativação de comarcas, sob o fundamento de que faltam recursos ou não há demandas suficientes para justificar a manutenção da unidade judiciária.

Sabe-se que o estado de Alagoas, no ano de 2008, através da resolução 31/08, desativou cinco comarcas, porque estudos promovidos pelo Tribunal constatou que, por mês, eram distribuídos menos de 20 processos. De nada valeram os protestos, mas, mesmo assim, em março de 2010, uma dessas comarcas, Paulo Jacinto, que conta com aproximadamente sete mil habitantes, foi reativada.

No Amazonas, em maio de 2011, após meses de debates, o Pleno do TJ resolveu desativar 36 comarcas do interior. Todavia, a grita dos vários segmentos da sociedade foi tamanha que, sob a liderança do govenador e dos deputados, revogou-se o ato de desativação e as comarcas voltaram a sediar o Judiciário.

A OAB, políticos, servidores da justiça e o povo em geral travam dura luta para impedir que o TJ/MS desativasse sete comarcas, prejudicando dessa forma quase 100 mil habitantes. Os deputados propuseram até mesmo a suspensão de votação de projetos de interesse do Executivo e do Judiciário como medida de pressão para evitar a desativação. Nesse quadro, o presidente do TJ adiou a decisão que só será retomada no final do mês de junho do corrente ano.

Vê-se, pelo Brasil afora, que não é medida simples e corriqueira a desativação de comarcas.

O serviço público exige responsabilidade e critérios, além de estrita obediência à lei; não se guia aleatoriamente, segundo a vontade deste ou daquele gestor. Na empresa privada, a abertura de uma dependência da matriz é vinculada somente ao capital e, para o empresário mais cauteloso, indispensável estudos para mostrar a viabilidade do negócio. Só será aberta a filial se apontadas condições para lucro.

Já dissemos que há muitas semelhanças entre a atividade pública e a privada. Na instalação de uma comarca - (filial) -, busca-se prestação de serviço, enquanto o gestor na área privada quer lucro. Portanto, enquanto em uma, empresa privada, quer-se mais dinheiro, na outra, atividade pública, procura-se distribuir geograficamente melhor os serviços judiciais para facilitar o acesso do cidadão à justiça.

A presença de um juiz na comarca contribui enormemente para evitar a ação deletéria de criminosos, oferecendo ainda maior segurança à população; a desativação promove o afastamento da justiça, que levará também o promotor, o defensor e os servidores. A ausência do juiz distancia cada vez mais o Judiciário da sociedade.

Não se entende como o Judiciário pode raciocinar em termos de arrecadação de custas para desativar comarcas, quando se depara com um quadro alarmante de pessoas carentes que necessitam dos serviços da justiça.

A lei enumera requisitos para instalação de uma comarca, tais como a extensão territorial, a população, o colégio eleitoral, o aforamento anual de feitos contenciosos, o “edifício do fórum em condições adequadas, contendo instalações condignas para os advogados, representantes da Defensoria Pública e do MP”, as “casas residenciais condignas, que permitam a juízes, promotores de Justiça e defensores públicos residirem na comarca”, a “cadeia pública em condições de segurança”.

Leva-se a situação para a área privada e, supõe-se que se pretende abrir um negócio no ramo de prestação de serviço; nesse caso, o empresário terá de fazer uma pesquisa para saber se os moradores da região precisam daquele empreendimento que se propõe a iniciar. Ultrapassada essa primeira etapa, o passo seguinte será o plano de negócio, quando se conhecerá detalhes sobre o projeto, a exemplo, do investimento, faturamento, rentabilidade e o prazo de retorno do capital aplicado. No estudo será analisado também os riscos e a eventual inviabilidade do empreendimento.

A empresa não abrirá as portas sem um local adequado, sem os produtos para oferecer ao consumidor, sem um chefe e sem os funcionários.

Com a unidade judiciária, o zelo deve ser maior, pois as exigências anotados na lei devem ser obedecidas, sob pena de o agente público desrespeitar os princípios básicos da administração e cometer um ato de improbidade administrativa.

A falência (desativação) do negócio poderá não significar grandes danos para a comunidade, porque restrito ao investidor; não é o mesmo o que acontece com o setor público, daí porque a irresponsabilidade do gestor deve ser apurada, diante da deslealdade.

As unidades judiciárias do interior do estado da Bahia, na sua absoluta maioria, não tem um gestor para conduzir a prestação do serviço, o juiz, além de faltar os outros participantes diretos da atividade, o promotor e o defensor público; ausentes ainda, na grande maioria, os servidores, indispensáveis para movimentar a máquina judiciária. Mas a omissão não para por aí, pois não existe nem o edifício, onde deverá ser prestado o serviço, o fórum. Nem se fala em cadeia pública, outro requisito anotado na lei, porquanto as existentes são fétidas e desprovidas de qualquer segurança ou higiene. Aliás, os juízes, cônscios de seus deveres, tem interditado muitas dessas unidades prisionais, porque absolutamente abandonadas pelo gestor público.

Mesmo com todas essas deficiências, a atividade jurisdicional foi iniciada e sabia-se, antecipadamente do desfalque na sua estruturação. Se houve estudos, mostrando condições para abertura da unidade, estúpido erro cometeu o gestor público, porque não se preencheu as condições mínimas e elementares, estatuídas na lei. Podia-se ter a área geográfica, a população, mas faltavam o “edifício do fórum em condições adequadas”, os servidores e o juiz, além de toda a infraestrutura funcional.

É o mínimo que se podia exigir, pois, como iniciar uma atividade sem os personagens principais e sem o local para o trabalho?

Aliás, registre-se que a figura do defensor público é coisa rara, não só na Bahia, mas em todo o país. É descaso para com o necessitado que não dispõe de recursos para contratar advogado para defender seus direitos.

Assim, os poucos servidores, colocados naquela comarca, obrigam-se a sacrificar sua saúde e a própria família, quando exercem a função pública em ambiente promiscuo sem a mínima segurança e desprovido de higiene; merecem, como já dissemos, adicional de periculosidade, pois até avida fica exposta, diante da absoluta falta de segurança e de condições do imóvel indicado para os serviços judiciários.

Esses abusos grosseiros, consistentes na instalação da comarca, sem juiz, sem promotor, sem servidor, sem edifício para o fórum, impedem naturalmente o aforamento anual de feitos, a arrecadação mínima e a movimentação dos processos. Mas, registre-se que essa situação se manteve e devia ser endireitada pelos gestores seguintes, que não se preocuparam em defender o erário público e “deixou-se como está, para ver como vai ficar”.

A situação do Judiciário, no interior do estado, é tão dramática que não causa surpresa, nem constrangimento o fato de ocorrer o fenômeno denominado de prescrição de crimes, ou seja, a extinção da punibilidade, porque os operadores do direito não aplicaram a lei num prazo fixado; demorou demais, ficou inerte sem se manifestar.

O homicídio, por exemplo, exige que o Estado-juiz decida pela punição ou absolvição em 20 anos, passados os quais é-se compelido a arquivar o processo do criminoso.

Mas qual juiz, qual promotor, se essas figuras são inexistentes em grande parte das comarcas?

Alguém, então, tem de ser responsável pelo trabalho empreendido por juiz, promotor, advogado, servidor, com os gastos em folhas e mais folhas de papel, com inúmeras diligências realizadas, com depoimentos de testemunhas e tudo isso é jogado na lata de lixo, por causa da prescrição.

O certo de tudo é que o gestor, que se propõe a desativar a comarca, contribui enormemente para dificultar a vida do povo sofrido do interior, porquanto suspende-se uma série de atividades jurisdicionais, que ficam disponíveis, a partir de então, noutra unidade que pode está distante mais de 100 quilômetros. E o pior é que o jurisdicionado, que se desloca para buscar uma certidão, uma sentença, vai encontrar maiores obstáculos, vez que seu processo pode nem está cadastrado na comarca agregadora, apesar de passado mais de um ano.

Na Bahia, antes da desativação da comarca, tomou-se medida antipática e também prejudicial ao cidadão, quando se mandou recolher os livros dos cartórios de registro civil com funções notariais, existentes nos distritos judiciais; determinou-se que os titulares passariam a atender nas sedes das comarcas, o que, de certa forma, foi um primeiro movimento para a desativação.

É como se estivesse dando um aviso para a próxima providência consistente no efetivo fechamento da comarca.

O resultado é que não se registra, nem se lavra escritura ou se obtém um documento nos distritos, uns porque foram desativados, outros porque seus titulares aposentaram-se e não se promoveu concurso.

Penalizado com a situação do jurisdicionado, a Corregedoria das comarcas do interior adotou duas providências: a primeira foi orientar os juízes para baixarem portarias designando um servidor para deslocar-se até o distrito ao menos uma vez por semana, evitando que a dona de casa, o pobre sejam obrigados a procurar o cartório, por vezes, 100 quilômetros de distância, para registrar um óbito, um nascimento; a segunda medida foi encaminhar ao Pleno do Tribunal uma resolução para revogar o ato anterior e fazer funcionar os cartórios, como eram antes; encontra-se o ato da Corregedoria na presidência para decisão do Pleno, pois a Comissão de Organização Judiciária já deu parecer favorável.

O que fazer?

Enquanto não se realizar concurso, medida de extrema emergência, não há solução, pois as comarcas estão sem juízes, sem servidores e, portanto, os processos deslocados das unidades desativadas estão paralisados.

Se o Tribunal buscou diminuir os custos, o que não constitui motivo para desativar as comarcas, não acertou na providência, pois boa parte das unidades judiciárias funcionam com recursos próprios, advindos dos cartórios extrajudiciais, privatizados, mas sem delegatários, motivando a destinação de toda a arrecadação para o Tribunal além de contar com o executivo municipal que cede grande número de servidores para os serviços judiciários. Além de tudo isso, sabe-se que as despesas, não diminuíram, pois, algumas das comarcas desativadas, continuam gastando com a manutenção do fórum, com os serviços extrajudiciais, além de pagar os servidores que optaram para continuar na unidade fechada, sem contar com as diárias pelos deslocamentos dos juízes.

O reconhecimento de falta de condições para funcionamento da comarca é posição bastante perigosa para o gestor, na Bahia, porquanto, na situação atual, restam poucas comarcas com observância da lei. Inclui-se no rol unidades de grande porte, mas que não tem defensor, nem servidores. A comarca só funciona, porque o prefeito do município paga aluguel do fórum, fornece o material de expediente além de disponibilizar mais de 90% dos servidores da unidade.

Esse posicionamento de desativar comarcas, semelhantemente ao que ocorre com o fechamento de um hospital ou de uma escola, demonstra o descaso e incompetência do Estado na solução dos problemas do cidadão e daí o aparecimento das ONGs - organizações não governamentais - para suprir o Poder Público.

A desativação das comarcas fere o interesse do desenvolvimento regional e ocupação do território do Estado, além de dificultar o acesso do cidadão à justiça.

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* Antonio Pessoa Cardoso é desembargador do TJ/BA e corregedor das comarcas do interior.

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