A lei 12.015, de 7/8/09, como é sabido, trouxe importantíssimas alterações no CP, sobretudo no que se refere aos denominados crimes sexuais, agora capitulados como crimes contra a dignidade sexual.
Sendo assim, revogou o então art. 214, CP, que tipificava a conduta do crime de AVP - atentado violento ao pudor para que, no art. 213, CP, (que antes previa apenas o crime de estupro) fossem cumuladas as duas tipificações, isto é, em um mesmo artigo, tem-se a tipificação de dois crimes distintos: estupro e AVP. Uma condensação necessária em razão da própria definição do legislador.
De início, surgiu um embate jurídico de extrema relevância para definir se o agente que pratica o crime de estupro e de AVP, no mesmo contexto fático, agiria em concurso de crimes ou então praticaria somente crime único.
Desta feita, a discussão, que subsiste até os dias atuais, reside na definição do tipo penal misto contido no art. 213 do estatuto penal. Caso se entenda tratar-se de tipo misto cumulativo, o agente que comete o crime de estupro e de AVP, ainda que no mesmo contexto fático, pratica dois crimes em concurso material (art. 69, CP – o agente, mediante duas ações, pratica dois crimes), posto que as condutas são figuras autônomas e distintas entre si, fato que demanda maior repressão penal (como exemplo, o tipo penal do art. 242, CP). É a posição de doutrinadores mais conservadores e rigorosos, que recebe o aval da Ministra Laurita Vaz, do STJ.
Por outro lado, caso se entenda tratar-se de tipo misto alternativo (também chamado de ação múltipla ou conteúdo variado), tem-se crime único. Isso porque a prática de uma ou ambas condutas descritas no tipo são fungíveis, tornando-as excludentes entre si. O exemplo clássico é o do crime de tráfico de drogas, já que se o agente realizar a conduta de uma ou todas as tipificadas, cometerá crime único.
Nesse sentido, o STJ unificou entendimento de que a prática de conjunção carnal (sexo vaginal) e ato libidinoso diverso, em um mesmo contexto factual, configura crime único.
Entretanto, esse não foi o ponto central analisado pelo Tribunal da Cidadania, mas sim a questão da retroatividade da lei 12.015/09, que é evidentemente mais benéfica, caso seja acompanhado esse entendimento do STJ (daí a importância de se compreender os posicionamentos acerca do tipo penal do art. 213, CP).
Ora, se antes de 2009 havia um crime autônomo de AVP, fato que implicava, a depender do caso concreto, em concurso material, formal ou até mesmo continuidade delitiva, após 2009, com sua revogação, verifica-se a unidade de crime entre estupro e AVP, fato que necessariamente afasta as regras de concurso de crimes (conforme STJ).
Logo, constatando-se ser a lei posterior mais benéfica ao réu, sua aplicação retroativa é medida de rigor, nos exatos termos do art. 5º, inciso XL, CF/88 e art. 2º, parágrafo único, CP.
Portanto, com base em tal entendimento, o STJ ordenou o recálculo da pena do condenado ao juiz das execuções, que também deve se atentar ao fato de que a nova pena jamais poderá ser superior à aplicada, já que não se permite a reformatio in pejus da decisão.
Sendo assim, verifica-se que o Tribunal da Cidadania aplicou as regras de nosso ordenamento que se encaixam perfeitamente com sua posição, no tocante ao "novo" crime de estupro.
Não obstante, há que se atentar para o fato de que, em uma análise criteriosa e de acordo com a reprimenda esperada ante a gravidade da ação e da lesão a importantes bens jurídicos, verifica-se que as condutas de estupro e AVP são essencialmente distintas e jamais podem fundir-se, o que permite o entendimento de que se tratam de crimes autônomos, implicando, portanto, no reconhecimento de concurso material de crimes quando da prática conjunta, ainda que no mesmo contexto fático.
O Direito é uma ciência interpretativa, que se vale de normas para atingir seus objetivos. Pode-se dizer também que carrega uma forte tendência finalística, que vem a ser o resultado almejado em sua atuação prática. Porém, o escopo da norma não é imutável, absoluto, vez que a sociedade, dela destinatária, também evolui e exige outras interpretações para regular a ordem jurídica e a segurança do Direito. Adaptar um espírito novo a uma "lei velha" é sem dúvida um trabalho penoso, ainda mais quando se encontra resistência com o fato e as novas mentalidades contemporâneas. "Se novos interesses despontam e se enquadram na letra expressa, adverte Maximiliano, cumpre adaptar o sentido do texto antigo ao fim atual".
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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde e é reitor da Unorp