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Democracia, controle de constitucionalidade e o retrocesso da PEC 33/11

CF/88 voltou-se para a adoção de um modelo que empreendesse o sistema de separação de poderes e a ideia de segurança jurídica. É nesse contexto, portanto, que a PEC 33/11 causa inquietude.

29/4/2013

A consolidação dos direitos fundamentais constitui pilar incensurável a ser alcançado pelo controle de constitucionalidade. Assim é que os instrumentos destinados à defesa da Constituição melhor se perfazem em um espaço democrático, pois são esses os ambientes mais férteis para a concretização de tais direitos1.

A realização do bem comum radicado pela base ética que suporta o controle de constitucionalidade descamba na garantia de um modelo de sociedade inimaginável em regimes autoritários ou totalitários. Nas democracias, o controle se presta à dignidade de todos os homens, em razão de serem detentores de direitos inalienáveis e imprescritíveis. Entretanto, a falta de um consenso histórico a justificar o controle de constitucionalidade nos cenários de concentração de poder resulta no abandono dos direitos humanos, ínsitos do constitucionalismo.2

A aspiração da Constituição de 1988 é de uma democracia fundamentalista. Por essa experiência democrática, de tradição alemã, nem o povo está habilitado a derrogar determinados direitos contemplados na constituição. Há outras duas vertentes democráticas: a constitucional monista, existente na Inglaterra, não admite o controle judicial de constitucionalidade, eis que o Parlamento é a única instância legítima e autorizada para definir todas as leis necessárias ao bem-estar do povo, prescindindo de qualquer outro poder para censurá-lo; e a democracia constitucional dualista, incorporada pelos Estados Unidos, a qual acomoda dois tipos de decisões, as dos representantes do povo e a do próprio povo.3

A adoção dessa ou daquela democracia apontará o controle mais consentâneo para a concretização dos direitos fundamentais. Nesse diapasão, despontou na Europa o controle concentrado de constitucionalidade das leis afastando a possibilidade de todo e qualquer juiz realizar o referido controle, e isso porque palpitava à época valores muito fortes, como o da separação dos poderes e da segurança jurídica. 4

Portanto, a repulsão pelos países da Europa (Alemanha, Itália, Espanha, Bélgica, Turquia, Polônia, Macedônia, Hungria, Romênia, Eslovênia, República Tcheca, entre outros) ao modelo norte-americano de controle de constitucionalidade justificava-se por valores realmente arraigados no constitucionalismo desses países no século XIX, quais sejam, a defesa do princípio monárquico, a profanação da lei e o culto à sólida concepção da separação dos poderes.5

A profanação da lei bitolava a cultura política europeia, pois a ideia de que a lei era o fruto da razão ou da “vontade geral” (expressão difundida por Rousseau, o qual fez prevalecer a noção de Direito, como aquele consubstanciado no seio social – Artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem de 1789), acabou ensejando também a rejeição do judicial review nos países do velho continente.6

Da mesma maneira manifesta-se Louis Favoreu, ao afirmar que “a partir da Revolução de 1789, ao longo do século XIX e início do século XX, o dogma rousseauniano da infalibilidade da lei se impôs e raramente foi posto em dúvida”.7

Ademais, o modelo da separação dos poderes lançado por Montesquieu afigurava-se como obstáculo à adoção do sistema de jurisdição constitucional norte-americano, já que a lei dentro do sistema concebido da separação de poderes consistia em parâmetro de observância obrigatória do poder de julgar.8

Não nos olvidemos, porém, que a própria estruturação do sistema judicial na Europa não dava abrigo ao judicial review. É que paralelo aos tribunais ordinários, há também uma jurisdição administrativa, compreendida por órgãos próprios, conformando um sistema judicial dualista, inexistente nos Estados Unidos, onde a jurisdição é una.9

A esse respeito, transcrevamos a lição de Louis Favoreu, para quem a unidade de jurisdição só se adere bem aos países da common law:

[...] a dualidade ou a pluralidade de jurisdições não é uma garantia para o sucesso do implante mas, ao contrário, um fator de fracasso. O sistema de tipo estadunidense só funciona bem onde há unidade de jurisdição, isto é, nos Estados Unidos e nos países com common law, porque nestes países não há separação entre os contenciosos e a dimensão constitucional pode estar presente em todos os processos, sem necessitar um tratamento à parte e sem risco de chegar a divergências de opinião sobre a constitucionalidade dos textos fundamentais. A justiça constitucional não se divide; ora ela é difusa, mas no centro de um aparelho jurisdicional único, encabeçado por uma Corte Suprema; ora ela é concentrada nas mãos de uma jurisdição constitucional única.10

Dessa maneira, caso se fosse acometer aos juízes – classe de burocratas investidos em suas funções de maneira não-democrática – tão importante tarefa, recear-se-ia a sociedade européia de um quadro de insegurança jurídica e concentração de poder.11

Não sobeja dúvida, o surgimento do controle concentrado de constitucionalidade emergiu de um consenso histórico-social, abalizado por respeitadas doutrinas vigentes nos países europeus. Conduziu-se à instauração do modelo concentrado visando à garantia da segurança jurídica, “tendo por base a rapidez do julgamento de uma lei ou ato normativo cuja constitucionalidade é questionada, tudo dentro de um processo objetivo, sem partes”12, buscando sempre a consolidação do bem-estar social.13

Entre nós, a preocupação do constituinte não foi outra. A Constituição de 1988 voltou-se para a adoção de um modelo que empreendesse o sistema de separação de poderes e a ideia de segurança jurídica. É nesse contexto, portanto, que a PEC 33/11, aprovada ontem pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados causa inquietude, questionamento, e repulsa.

A submissão das decisões do STF ao Congresso minimiza o controle de constitucionalidade, e depõe contra o espírito democrático da Constituição Federal de 1988. A proposta, aliás, encontra similar correspondência na Constituição mais autoritária de nossa história, a Constituição de 1937, do governo de Getulio Vargas. Naquele documento constava do artigo 96 e parágrafo único o seguinte:

Art 96 - Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do Presidente da República.

Parágrafo único - No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal.

Ora, a previsão evidentemente não se harmoniza com a realidade política e social que subjaz a Constituição Federal de 1988. A jurisdição constitucional é exercida para assegurar a força normativa da constituição, que se extrai exatamente da vontade do povo, que entregou ao STF o papel de guardião da Constituição, para a defesa de seus direitos, depois do sombrio período do regime de exceção. A Constituição é um documente perene, cambiante, traz mudança no significado de seu texto de acordo com os valores e evolução da sociedade, e a ponderação de valores é da essência, é imanente à jurisdição constitucional. É infeliz, e talvez assustadora, o que pretende a PEC 33/11, além de denunciar um inevitável retrocesso na evolução do controle de constitucionalidade das leis.

_________

1 RAMOS, Paulo Roberto Barbosa. A filosofia do controle concentrado de constitucionalidade das leis na ordem jurídica brasileira pós-88. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.9, n. 37, 2001, p. 178.

2 Ibidem, p. 178.

3 Ibidem, pp. 179-180.

4 Ibidem, p. 182.

5 LEAL, Roger Stielfman. O efeito vinculante na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 43-46.

6 LEAL, Roger Stielfman. O efeito vinculante na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 43-46.

7 FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais. Trad. Dunia Marinho Silva. São Paulo: Landy, 2004, p. 20.

8 LEAL, Roger Stielfman. Op.cit., p. 32.

9 Ibidem, p.46.

10 FAVOREU, Louis. Op.Cit, p. 21.

11 RAMOS, Paulo Roberto Barbosa.Op.cit, p. 181.

12 Ibidem, pp. 181-182.

13 Ibidem, p. 182.

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* Kayo José Miranda Leite é advogado do escritório Cassel & Ruzzarin Advogados . Professor de Direito Constitucional do Centro Universitário do Distrito Federal e de Direito Processual Civil do UniCeub.

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