Migalhas de Peso

Repensando sobre os embargos infringentes

Parece ficar sem sentido a exigência de divergência qualificada no julgamento das ações penais originárias.

29/4/2013

No que respeita aos embargos infringentes no Processo Penal, as Ordenações Filipinas os estenderam às causas criminais (Cf. Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro de J.A. Pimenta Bueno, edição anotada e atualizada por José Frederico Marques, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1.959, p. 557) e tinham profundo conteúdo de retratação.

É verdade que, de início, no velho direito português houve quem negasse aos embargos a natureza de recurso, posto que julgados pelo próprio órgão prolator da decisão, mas Joaquim José Caetano Pereira e Souza, nas suas “Primeiras Linhas sobre o Processo Civil, acomodadas ao Foro do Brazil por Augusto Teixeira de Freitas, Rio de Janeiro, 1879, Tipografia Perseverança, tomo II, p. 4”, dizia que tal afirmação era um erro tão ilusório, como o da suposição de um mundo sem arrependimento, e portanto sem misericórdia. Ao contrário, dizia ele, o primeiro dos recursos é o dos Embargos, exprimindo que o homem pode, e deve, por si mesmo remediar o mal de seu primeiro erro... Os Embargos, como recursos, são os interpostos para o mesmo juízo que proferiu as decisões (p. 6).

E distinguindo os embargos em ofensivos, modificativos ou declaratórios, observava que “na primeira Instância, pertence o conhecimento dos embargos ao Juiz, que proferiu a decisão, ou a seu sucessor. Na segunda Instância os embargos serão julgados pelos mesmos Juízes que proferiram o Acórdão embargado” (ob. cit. p. 15).

Com a promulgação do Código de Processo Penal do Império, em 1832, os embargos infringentes foram abolidos, e esta situação permaneceu até o advento da proclamação da República. Com os poderes conferidos aos Estados para elaborarem seus Códigos de Processo Civil e Processual Penal alguns Estados adotaram os embargos infringentes, de que foram exemplo os Códigos do Rio Grande do Sul e da Bahia. O Código baiano, elaborado, por Eduardo Espínola, no seu art. 2080, dizia: “Os embargos de nulidade e infringentes do julgado serão articulados e podem ser acompanhados de qualquer documento. As partes terão vista por cinco dias cada uma, para impugnação e sustentação dos embargos, sendo em seguida os autos conclusos ao relator, o qual na primeira sessão relatará os embargos, seguindo-se a discussão e julgamento pela mesma Turma que houver proferido a decisão embargada”. Perdurava, assim, o profundo conteúdo de retratação.

Com a unificação dos Códigos de Processo Penal operada em 1942, entrou em vigor o atual Código de Processo Penal e este silenciou a respeito dos embargos infringentes ou de nulidade. Contudo, o regimento interno do STF, de 1940, talvez por influência do já ministro Eduardo Espínola, dispunha no seu art. 194: “Admitem-se embargos de nulidade e infringentes do julgado às decisões terminativas do feito, proferidas: I) Pelo Tribunal Pleno: a) nas ações cíveis e criminais originárias; b) nas rescisórias de seus julgados ou dos das Turmas; c) nas homologações de sentença estrangeira; d) nas revisões criminais. II) Das Turmas...) e o art. 197 dizia que o relator, verificando que foram opostos em tempo útil e que o caso é de embargos, os admitirá por despacho, a fim de que sejam preparados e apresentados ao Presidente do Tribunal na primeira sessão seguinte ao preparo, para o sorteio de novo relator”.

Como se percebe os embargos infringentes ou de nulidade continuaram com o seu profundo conteúdo de retratação, seguindo a lição de João Monteiro.

Foi a lei 1.720-B, de 3 de novembro de 1952, que deu nova redação ao art. 609 do estatuto processual penal, acrescentando-lhe, inclusive, um parágrafo, que introduziu no Código de Processo Penal os embargos infringentes ou de nulidade, com esta particularidade: sem perder a sua razão de ser que era a retratação, exigiu-se, para a sua admissibilidade, a divergência ainda que mínima:

“Quando não for unânime a decisão de segunda instância, desfavorável ao réu, admitem-se embargos infringentes e de nulidade, que poderão ser opostos dentro de dez dias, a contar da publicação do acórdão, na forma do art. 613. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto de divergência”

Pouca coisa diz o CPP sobre o procedimento dos embargos. O parágrafo único do art. 609 faz remissão ao art. 613, donde se concluir que os Tribunais, nos seus regimentos internos, devem complementar as regras contidas no citado dispositivo, preenchendo-lhe as lacunas. O relator e o revisor disporão de prazo igual e sucessivo para se manifestarem. Esse prazo não pode ser inferior a dez dias para cada um. Igual prazo é concedido ao procurador-Geral da Justiça para opinar a respeito. Se houver sustentação oral, o prazo é de quinze minutos. Essas as regras contidas no art. 613. Contudo, o art. 609, caput, do CPP, já com sua nova redação, conferiu às leis de organização judiciária dos Estados competência para o disciplinamento normativo dos recursos da sua alçada e, a paulista estabeleceu que o julgamento dos recursos ficaria a cargo de Turma Recursal composta de 3 desembargadores de uma mesma Câmara e, quanto aos embargos infringentes ou de nulidade o julgamento ficaria afeto à Câmara Criminal com a totalidade de seus membros, isto é, os 3 que participaram do julgamento e mais 2 que passariam a ser o relator e o revisor.

O nosso Código mantém os embargos infringentes ou de nulidade, procurando, assim, na medida do possível, o aperfeiçoamento das decisões.

Quanto ao Supremo Tribunal Federal, a Carta Constitucional de 1969, no seu art. 119, § 3º, alínea c, conferiu-lhe atribuição normativa primária para prever em seu regimento interno “o processo e o julgamento dos feitos da sua competência originária e recursal”. Em face dessa atribuição normativa constitucionalmente conferida à Suprema Corte, esta, no seu regimento interno, com a redação dada pela Emenda Regimental 2, de 1985, trouxe algumas inovações importantes: a) aumentou de dois para cinco dias o prazo para a interposição dos embargos declaratórios; b) estabeleceu procedimento para as ações penais originárias bem diverso do previsto nos arts. 556/562 do CPP, posteriormente revogados pela lei 8.038/90; e, finalmente, c) no art. 333, estabeleceu: “Cabem embargos infringentes à decisão não unânime do Plenário ou da Turma: I) que julgar procedente a ação penal; II) que julgar improcedente a revisão criminal; III) que julgar a ação rescisória; IV) que julgar a representação de inconstitucionalidade; V) que, em recurso criminal ordinário, for desfavorável ao acusado”.

A hipótese prevista no inciso IV foi revogada pelo art. 26 da lei da ação direta de inconstitucionalidade de 10/11/99, que nessa hipótese não admite embargos infringentes, pouco importando se a decisão foi ou não unânime.

Embora o caput do art. 333 do RISTF estabeleça a oponibilidade de embargos infringentes quando nas hipóteses retrocitadas a decisão do plenário ou da turma não for unânime, seu parágrafo único dispõe: “O cabimento dos embargos, em decisão do Plenário, depende da existência, no mínimo, de quatro votos divergentes, salvo nos casos de julgamento criminal em sessão secreta”.

Quando o caput fala em decisão não unânime, o parágrafo único, que deve manter estrita relação com o artigo a que está atrelado, esclarece que não haverá unanimidade, se do Plenário a decisão, quando houver quatro votos divergentes. E o mesmo parágrafo ainda excepciona: “salvo nos casos de julgamento criminal em sessão secreta”. Assim, se a competência fosse da turma, bastaria um voto divergente para que se pudesse opor embargos infringentes. A divergência de quatro votos, por óbvio, somente poderia ocorrer quando o julgamento estivesse afeto ao Plenário, a menos que a decisão fosse realizada secretamente, mesmo porque, nessa hipótese, sabia-se apenas que a decisão não fora unânime. Essa a disposição do RISTF, atualizado em 1980, com a redação dada pela Emenda Regimental 2, de 4/12/85.

Todavia, tendo a nossa Lex Mater de 1988, no art. 93, IX, proclamado que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, podendo a lei, em determinados casos, estabelecer uma publicidade restrita, não permitindo, assim, julgamento secreto -- a menos que o próprio Pacto Fundamental (que pode excepcionar a si próprio) autorize como é a hipótese do Tribunal do Júri -, e cabendo ao plenário o julgamento das ações penais originárias, como deverá proceder hoje, uma vez arredada a exceção do julgamento secreto? 

No Ag. Reg. nos Emb. Div. Nos Emb. Decl. No Ag. Reg. No Agravo de Instrumento 654.910/MG, o STF, em decisão proferida em 6/3/13, relatoria a cargo do eminente ministro Celso de Mello, com a proficiência de sempre, registrou Sua Excelência:

“... Com a superveniência da Constituição promulgada em 1988, no entanto, o Supremo Tribunal Federal perdeu essa extraordinária atribuição normativa, passando a submeter-se, como os demais Tribunais judiciários, em matéria processual, ao domínio normativo da lei em sentido formal (CF. art. 96, I, “a”).

Em virtude desse novo contexto jurídico, essencialmente fundado na vigente Constituição da República (1988) – que não reeditou regra com o mesmo conteúdo daquele preceito inscrito no art. 119, § 3º, “c”, da Carta Política de 1969 -, veio, o Congresso Nacional, mesmo tratando-se de causas sujeitas à competência do Supremo Tribunal Federal, a dispor, uma vez mais, em plenitude, do poder que historicamente sempre lhe coube, qual seja, o de legislar, amplamente, sobre normas de direito processual.

..............................................................

Não se pode desconhecer, contudo, que se registrou, na espécie, com o advento da Constituição de 1988, a recepção, por esse novo estatuto político, do mencionado preceito regimental (RISTF, art. 331), posto que veiculador de norma de direito processual, que passou, agora, a partir da vigência na nova Lei Fundamental da República, a ostentar força, valor, eficácia e autoridade de norma legal, consoante tem proclamado, de modo iterativo, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 147/1010 – RTJ 151/258)”.

Quando o julgamento das ações penais originárias era secreto, a divergência podia ocorrer, mesmo que um dos eminentes ministros divergisse dos demais. Era assim que dispunha a parte final do parágrafo único do art. 333 do RISTF.

Hoje, como os julgamentos devem ser públicos – apenas com aquela ressalva de que a lei poderá limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados ou somente a estes, como o fez, também, o legislador ordinário, no art. 12, II, da lei 8.038/90 --, pergunta-se: se no julgamento das ações penais originárias, em que, com a divergência apenas de um voto, os embargos eram oponíveis, à dicção da última parte do parágrafo único do art. 333 do RISTF, em face do segredo do ato, como deve ser atualmente? Dever-se-á manter aquela excepcionalidade, arredando-se apenas a sigilação? Aqui podem surgir duas correntes:

a) como a sessão era secreta e havia impossibilidade de saber se quatro ou menos ministros dissentiram dos demais, natural a ressalva. Agora, como a sessão é pública, poder-se-á dizer ser aplicável a primeira parte do parágrafo único: “O cabimento dos embargos, em decisão do Plenário, depende da existência, no mínimo, de quatro votos divergentes”;

b) observe-se que a regra geral está contida no caput do art. 333 do RISTF: “cabem embargos infringentes à decisão não unânime do Plenário ou da Turma”: I) que julgar procedente a ação penal: II) que julgar improcedente a revisão criminal; III) que julgar a ação rescisória; IV (revogado) e V) que, em recurso criminal ordinário, for desfavorável ao acusado. Contudo, o parágrafo único, na sua parte inicial, exigiu uma divergência qualificada (quatro votos) quando a decisão fosse do plenário, salvo se o julgamento devesse ocorrer secretamente. Nesse caso, bastaria um voto divergente para serem admitidos os infringentes. Mas, com a abolição dos julgamentos secretos, não seria razoável estender a norma do parágrafo único àquela excepcionalíssima situação das sessões secretas.

Como nos julgamentos secretos bastaria um voto dissidente para que pudessem ser opostos os embargos infringentes, e sendo este recurso exclusivo da Defesa, a nosso juízo, dever-se-á aplicar a regra do caput, que se consona com a regra do parágrafo único do art. 609 do CPP e se harmoniza com o princípio da ampla defesa, dogma constitucional e com a própria natureza dos embargos que é a retratação, na velha e revelha lição de João Monteiro.

Mais: embora o Pacto Fundamental de 1988 houvesse recepcionado o regimento interno da Suprema Corte no que respeitava ao seu poder de estabelecer normas atinentes ao processo e julgamento dos feitos de sua competência originária ou recursal, excluindo apenas a realização de sessões secretas, o certo é que, tendo a CF de 88 deixado de conferir à Suprema Corte aqueles poderes que o art. 119, § 3º, “c” da Carta de 1969 lhe atribuíra, voltando o Poder Legislativo “a dispor uma vez mais, em plenitude, do poder que historicamente sempre lhe coube, qual seja, o de legislar, amplamente sobre normas processuais” , como bem o disse o eminente Ministro Celso de Mello, naquele julgado supracitado, com o advento da lei 8.038/90, esta, instituindo normas procedimentais para os processos que especifica, perante o STJ e STF, no art. 24 estabeleceu: “na ação rescisória, nos conflitos de competência, de jurisdição e de atribuições, na revisão criminal e no mandado de segurança será aplicada a legislação processual em vigor”. Veja-se, e a propósito, a questão de ordem suscitada nos embargos infringentes em ação rescisória 1.178-3/034-SP, relator Min. Néri da Silveira, assim ementada:

“1. Ação Rescisória. 2. Embargos Infringentes. 3 Regimento Interno do STF, art. 333 e parágrafo único. 4. Lei nº 8038/1990, art. 24. 5. Código de Processo Civil, art. 530. 6. Desde o advento da Lei nº 8.038/1990, art. 24, não cabe exigir o número mínimo de quatro votos dissidentes, previsto no parágrafo único do art. 333 do RISTF, para a admissão de embargos infringentes, contra acórdão do Plenário do STF, em ação rescisória. Bastante se faz não seja o aresto unânime. 7. Questão de ordem que se resolve no sentido de não ser mais aplicável às ações rescisórias o disposto no parágrafo único do art. 333 do RISTF, mas, sim, o art. 530 do Código de Processo Civil”.

Em se tratando de revisão criminal, o art. 24 da lei 8.038 de 28/5/90 determinou a observância da legislação processual penal vigente, e como esta, no art. 624, § 1º dispôs que “no Supremo Tribunal Federal... o processo e julgamento 'das revisões criminais' obedecerão ao que for estabelecido no seu regimento interno”, logo, não houve nenhuma alteração.

Desse modo, de todas as hipóteses que comportam embargos infringentes, na moldura do art. 333 do RISTF, com o advento da lei 8.038/1990, pode-se afirmar que as únicas não atingidas pela lei ordinária são as que dizem respeito à condenação na ação originária, a revisão criminal e o recurso criminal ordinário, se desfavorável ao réu (crime político). Dessas três hipóteses, apenas a primeira era objeto de decisão secreta. Como não mais haverá sessão secreta, parece ficar sem sentido a exigência de divergência qualificada no julgamento das ações penais originárias; a uma, porque a regra geral é a do caput do art. 333 do RISTF (cabem embargos infringentes à decisão não unânime do Plenário ou da Turma) e a duas, porque se quando a sessão era secreta bastaria uma dissidência para comportar os infringentes, parece lógico que não mais havendo a sigilação no julgamento, deve prevalecer a regra do caput do art. 333 que não exige divergência qualificada. Alie-se a essa observação o fato de que os embargos infringentes foram instituídos como privativos da Defesa, sem perderem sua razão histórica que é a retratação.

Mais: interpostos os embargos infringentes, no prazo de quinze dias, após decisão sobre eventuais declaratórios, se rejeitados, oponível será o agravo regimental no prazo de cinco dias. Se admitidos, conceder-se-á igual prazo à procuradoria-Geral da República para contrarrazões, sendo que outros serão o relator e o revisor, nos termos do art. 76 do RISTF.

_________

* Fernando Tourinho Filho é professor de Direito Processual Penal do Centro Universitário de Araraquara (UNIARA).

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