“Doze condenados do mensalão poderão ter um novo julgamento”. Esta era a manchete de capa do jornal O Estado de S. Paulo da edição de 23 de abril passado. Um dia antes, na segunda-feira (22 de abril), foi publicado o acórdão de inusitadas 8.405 laudas. Desde então, a imprensa noticiou com certa perplexidade o cabimento de novo recurso para alguns condenados. Trata-se, evidentemente, dos embargos infringentes, cabíveis por força do art. 333, I e par. único, do regimento interno do STF.
Como se colhe de tal regra, se o plenário julgar procedente a ação penal, mas com quatro votos divergentes, são oponíveis embargos infringentes.
A perplexidade pública, sem dúvida, é simples de ser compreendida. Se o Supremo Tribunal Federal é a instância máxima de jurisdição, quais seriam os motivos para o cabimento de novo recurso a ser julgado exatamente pelo mesmo órgão colegiado que prolatou a decisão recorrida?
Pois bem, desde as Ordenações Afonsinas, de 1446, o legislador lusitano já se preocupava com decisões não unânimes. Certas normas impunham a necessidade de julgamento por um magistrado adicional, quando a turma não houvesse proferido decisão unânime, outras, por sua vez, previam a necessidade de quórum diferenciado para prover (dois votos conformes) ou para improver (três votos conformes) os agravos tirados contra decisões interlocutórias. Este procedimento é secundado nas subsequentes Ordenações do Reino (Manuelinas/1521, e Filipinas/1603) e também, no século XVIII, em Assentos da Casa de Suplicação de Lisboa.
Vale ressalvar, outrossim, que jamais o sistema medieval lusitano dispôs sobre um recurso autônomo contra decisões não unânimes. A discordância entre julgadores dizia respeito tão somente às regras de julgamento, ou seja, o julgamento não unânime somente se findava com a remessa automática ex officio à cognição de novo julgador, independentemente de provocação da parte recorrente.
Apenas no século XIX é que a legislação portuguesa aprovou um recurso autônomo cabível contra decisões não unânimes. O recurso até chegou a ser incorporado ao Código de Processo Civil português de 1876, mas não foi acolhido no diploma de 1939.
Assim sendo, salvo engano, desde então, o Brasil é o único país onde há previsão de um meio de impugnação específico contra decisões não unânimes (sobre a evolução histórica, v., por todos, EGAS DIRCEU MONIZ DE ARAGÃO, Embargos Infringentes, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1973).
Entre nós, o recurso foi recepcionado já na década de 1920. Primeiramente, em leis esparsas sobre a organização judiciária do Distrito Federal, seguidas de leis federais já na década de 1930. Finalmente, o recurso é inserido na Codificação de 1939 e mantido na de 1973, tendo sido, é verdade, objeto de algumas reformas processuais, que restringiram o seu respectivo cabimento.
Resta claro, portanto, que desde o direito reinol até a sistemática atualmente vigente, como regra procedimental do recurso, o julgamento não unânime pode ser objeto de revisão por um colégio de julgadores mais numeroso. Opera-se portanto normalmente a devolutividade, ínsita aos recursos em geral. É certo que os magistrados componentes da precedente turma julgadora também participam do julgamento dos embargos, mas não unicamente, sempre na companhia de novos membros designados.
É esta apreciação por novos julgadores, diante do confronto das opiniões divergentes que assegura, ao menos psicologicamente, o maior prestígio da justiça. Sobre este sentimento, é clara e objetiva a lição de PONTES DE MIRANDA, ao lembrar que os melhores arestos são aqueles advindos de julgamento em embargos infringentes em decorrência do maior estudo da demanda por ocasião da novel avaliação. Ademais, o próprio jurista assevera que tal posição é antes uma máxima de experiência – “com a observação direta de muitos anos” – do que uma valoração axiológica ou dogmática da norma posta (cf. F. C. PONTES DE MIRANDA, Comentários ao Código de Processo Civil, v. 5, Rio de Janeiro, Forense, 1949, p. 169-170).
Assim sendo, a supra aludida regra do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal causa estranheza precisamente porque se o plenário prolatou a decisão, não existem magistrados adicionais para apreciar a divergência de julgados.
A norma prevista no art. 333 do regimento interno do Supremo Tribunal Federal é, deste modo, deveras paradoxal. Em nenhum momento da história processual luso-brasileira, decisões não unânimes desafiaram recursos exclusivamente para os mesmos prolatores da decisão recorrida.
Conclui-se, por fim, que a incoerência da norma não está estritamente ligada ao fato de o plenário do Supremo Tribunal Federal ser o órgão máximo de jurisdição, mas sim a impropriedade do efeito devolutivo de um recurso submetido unicamente à apreciação dos mesmos prolatores da decisão recorrida, algo que, como visto, contraria a sistemática do recurso desde os tempos medievais. Sem a inclusão de novos magistrados, o recurso perde a razão de ser!
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* Rogério Lauria Marçal Tucci é advogado do escritório Tucci Advogados Associados e membro da Comissão dos Novos Advogados do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo.