Migalhas de Peso

Vaga no STF

Debate sobre a afirmação do ministro Joaquim Barbosa de que o STF necessita ser composto por estadistas.

5/4/2013

Muito interessante o debate que se instaurou neste rotativo a propósito da afirmação do ministro Joaquim Barbosa de que o STF necessita ser composto por estadistas, havendo crítica de um lado (Migalhas 3.090 - 2/4/13) e elogio do outro (Migalhas 3.091 - 3/4/13). Apesar das divergências, pode se dizer que as duas opiniões estão corretas.

Sem dúvida alguma, o exercício da magistratura traz consigo, de per si, um efeito importante sobre a ordem política, pois é expressão de exercício do poder; afinal, compõe um dos Poderes da nossa República, em pé de igualdade com o Executivo e o Legislativo (art. 2º da CF/88,), e é garantia da paz social (Antônio Carlos de Araújo e Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria Geral do Processo, 26ª ed., Malheiros, São Paulo, 2010, pp. 30-31). Não à toa os Imperadores Romanos chamaram a si o julgamento em última instância dos processos; pretendiam assim reforçar o poder do príncipe, tendo César Augusto até angariado nota de Suetônio como julgador assíduo, eficaz e de “uma extrema doçura” (A Vida dos Doze Césares, vol. 1, tradução de Sady Garibaldi, Athena Editora, Rio de Janeiro, 1937, p. 87). Por fim, vale lembrar que, no arcabouço simbólico judaico-cristão, o próprio Deus é visto como rei, legislador e juiz (cf. Is 33, 22), e que se considera que Cristo voltará no final dos tempos a fim de julgar as Nações (cf. Mt. 25, 31-33). Desse modo, pode-se dizer que todo o magistrado exerce uma função política, de modo que a afirmação do ministro Joaquim Barbosa se aplica não apenas aos ministros do STF, mas a todos os integrantes do Poder Judiciário.

Não obstante, como se verifica na redação do art. 102 da CF/88, o STF possui basicamente duas funções: guardar a Constituição e funcionar como órgão da jurisdição ordinária em determinadas hipóteses. Ocorre, porém, que a função de Corte Constitucional é bastante limitada, e isso por dois motivos. Em primeiro lugar, há adoção, pela nossa Constituição, do sistema de controle difuso dos atos estatais, de modo que todos os órgãos judiciais compartilham dessa função, não apenas o STF. Ao mesmo tempo, este realiza um tímido controle concentrado, uma vez que o exerce apenas de maneira excepcional, haja vista que a regra é envidar-se apenas a solução do caso concreto por meio do julgamento dos recursos extraordinários. Em segundo lugar, somente a classe dos juristas é que tem acesso à composição da Corte, com o que se demonstra que suas decisões são, eminentemente, fundadas na técnica jurídica, nada garantindo que sejam buscadas as bases políticas da Constituição e o real implemento do bem comum (JOSÉ AFONSO DA SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, 33ª ed., Malheiros, São Paulo, 2010, pp. 558-559). Desse modo, nosso sistema restringe a atuação dos ministros do STF, fazendo deles simples juízes de uma instância superior.

Apesar disso, ao cumprir seu papel de guarda da Constituição Federal, o STF acaba por exercer também as funções políticas de um verdadeiro Tribunal Constitucional. De acordo com a enumeração realizada por J. J. Gomes Canotilho, são atingidas fatalmente as seguintes questões políticas: “(1) defesa das minorias perante a omnipotência da maioria parlamento-governo; (2) primazia hierárquico-normativa da Constituição e do legislador constituinte perante a omnipotência da maioria parlamento-governo; (3) primazia do dogma tradicional da presunção de constitucionalidade dos actos legislativos; (4) legitimidade do desenvolvimento do próprio direito constitucional através da interpretação dada às normas da Constituição pelos juízes constitucionais” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 2002, p. 675). Quem duvidar da aplicação de tais palavras ao nosso sistema, basta verificar que o STF, na sua atuação, envidou coibir o uso de algemas (súmula vinculante n. 11), afastou o tratamento excessivamente privilegiado dado em favor do Estado quanto aos seus precatórios (ADIns 4357 e 4425), criou terceira hipótese de aborto lícito (ADPF 54) e mudou o conceito de família (ADPF 132), tudo isso sem que ninguém do povo tivesse votado em nenhum dos onze ministros que o compõem; demonstra-se assim que os ministros, em todo o caso, agiram politicamente, demonstrando algumas vezes envergadura de estadistas, outras não, de acordo com as palavras do professor Adilson Dallari.

Diante disso, penso que a frase do ministro Joaquim Barbosa e o debate que se instaurou neste rotativo trazem a lume a necessidade de começarmos a discutir o desenho da divisão das funções de poder da nossa República traçado pela CF/88. Será que convém concentrar em uma só Corte as funções de última instância judicial e de Tribunal Constitucional? Será mesmo bom termos um sistema de proteção constitucional em que todos são competentes para decidir, ao mesmo tempo em que todas as decisões são recorríveis, de modo que ninguém é responsável por nada, apesar de se arvorarem todos em Estadistas? Que tipo de pessoas queremos ter no exercício das funções públicas, nas suas variadas expressões: homens e mulheres que, sob a capa da legalidade e do “sistema”, não se preocupam nem um pouco com o bem dos cidadãos a eles submetidos ou que, pelo contrário, movidos por um senso de responsabilidade pessoal, dispõem-se prontamente a servir?

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* Pedro Paulo de Siqueira Vargas é advogado do escritório Clito Fornaciari Júnior - Advocacia.


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