A 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça confirmou, por unanimidade, e assim manteve a sentença condenatória de um homem acusado a oito anos de prisão pela prática do crime de estupro contra uma garota de oito anos de idade. Segundo os fatos, o crime ocorreu no ano de 2011 e, além da vítima, outras duas crianças presenciaram-no e o relataram aos pais da menina.
O acusado apelou da decisão e pleiteou absolvição por falta de provas, questionando ainda os depoimentos da mãe da menina e das crianças que figuraram como testemunhas.
Primeiramente, quanto ao depoimento da mãe da vítima, o desembargador relator Paulo Roberto Sartorato entendeu que eventual dúvida acerca daquele depoimento deveria ter sido sanada no momento oportuno, o que não ocorreu. Isto porque o momento adequado para a produção e colheita de provas no processo penal encontra-se exatamente na audiência de instrução e julgamento, conforme previsão do artigo 4001 do Código de Processo Penal, e não quando da interposição do recurso de apelação. Ocorreu, portanto a preclusão temporal.
No caso em questão, ao contrário do alegado pelo acusado, há provas que embasam sua condenação. Basta ver numa rápida observação que o conjunto probatório, devido à especificidade do caso concreto, foi obtido a partir da somatória da palavra da vítima e dos depoimentos de seus colegas que presenciaram o ato.
Quanto à validade destes depoimentos, é certo que os menores de quatorze anos, por lei, não estão obrigados a prestar o compromisso de dizer a verdade em seus testemunhos, sendo ouvidos no processo apenas como informantes2. Contudo, não se pode ignorar suas palavras, por duas razões: trata-se de crime sexual hediondo e que, de regra, deixa poucos vestígios; a menoridade, por si só, não é conclusiva no sentido de que os infantes apresentaram versão que não corresponda à verdade perquirida. Pelo contrário, de acordo com a decisão há perfeita sintonia entre os depoimentos contestados e as provas arrecadadas.
Por esta razão, a valoração do depoimento do menor, seja vítima ou informante, será dada pelo juiz de acordo com a verossimilhança dos fatos narrados, sua coerência e a harmonia com o conjunto probatório levado aos autos. Note-se que, no presente caso, a palavra da vítima estava em consonância com as demais informações levadas pelos outros infantes. Como bem salientado pelo relator, "[...] os relatos [...] guardam plena consonância entre si e, também, com o da infante […], inclusive nos variados detalhes da dinâmica delitiva, como as posições em que estavam molestador e vítima, o local em que estavam ambos, a natureza dos abusos, as reações da vítima etc".
Para tanto, deve-se levar em conta que uma das peculiaridades do crime de estupro é que, na maioria das vezes, o fato ocorre na clandestinidade, isto é, envolve apenas os sujeitos ativo e passivo do delito e em lugares isolados – "solus cum sola in solitudine" –, o que dificulta a obtenção de provas, tanto material quanto testemunhal. Assim sendo, a palavra da vítima ganha uma relevância essencial por ser muitas vezes a única forma de se provar o ocorrido.
Importante destacar também o temor da vítima em relatar para seus familiares o ocorrido, uma vez que "ela teme a punição ou a incapacidade dos adultos de protegê-la da violência de seu agressor3". Tanto é assim que no caso sub studio foram os colegas da menina violentada que denunciaram o fato. A criança, ainda na tenra idade, vítima de agressão sexual, dificilmente irá esquecer a cena traumatizante e carregará por toda vida uma personalidade ferida. Interessante o relato de Cyrulnik a respeito da sensação de uma vítima de estupro: "O que a destruiu não foi o ato sexual. Foi a representação de uma penetração sexual imposta pela violência, um arrombamento de seu corpo e de sua alma em que ela jamais tinha pensado"4.
Outro fator relevante acerca do estupro é a dificuldade de obtenção de prova material. Isto porque a lei 12.015/2009 deixou de fazer a distinção entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor. Pela legislação antiga, o estupro só se configurava pela prática de conjunção carnal, de modo que só podia ser cometido por homem contra mulher. Já o atentado violento ao pudor se constituía pela prática de qualquer outro ato de libidinagem, podendo ser cometido por qualquer pessoa. Hoje, ambas as condutas pertencem ao mesmo tipo penal, razão pela qual o crime é classificado como complexo.
Por exemplo, o molestador que pratica atos libidinosos ao passar a mão pelas partes íntimas da vítima pratica estupro. Porém, tal conduta raramente deixará vestígios, dificultando a obtenção de prova material do delito.
Observadas tais peculiaridades, a jurisprudência pátria já se posicionou no sentido de que a palavra do ofendido, ainda que seja ele de tenra idade, assume papel de grande importância na apuração dos fatos, compondo, quando possível, o material probatório que lastreará a condenação. Vejamos:
"Nos delitos de natureza sexual a palavra da ofendida, dada a clandestinidade da infrac¸a~o, assume preponderante importância, por ser a principal se na~o a u'nica prova de que dispo~e a acusac¸a~o para demonstrar a responsabilidade do acusado. Assim, se o relato dos fatos por vi'tima menor e' seguro, coerente e harmo^nico com o conjunto dos autos, deve, sem du'vida, prevalecer sobre a teimosa e isoladainadmissa~o de responsabilidade do re'u. (TJSP RT 671/305-6)".
"(...) 1. '... a palavra da vi'tima tem grande validade como prova, especialmente porque, na maior parte dos casos, esses delitos, por sua pro'pria natureza, na~o contam com testemunhas e sequer deixam vesti'gios' (HC 47212/MT, Rel. Ministro GILSON DIPP, DJ de 13/3/06). (...). (REsp 401028/MA, Rel. Ministro OG FERNANDES, Sexta Turma, DJe de 22/3/2010)".
"(...) I - A palavra da vi'tima, em sede de crime de estupro ou atentado violento ao pudor, em regra, e' elemento de convicc¸a~o de alta importa^ncia, levando-se em conta que nestes crimes, geralmente, na~o ha' testemunhas ou deixam vesti'gios (Precedentes). (...). (HC 135972/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, Quinta Turma, DJe de 7/12/20090)".
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1Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado. (Redação dada pela lei 11.719, de 2008).
2Art. 208. Não se deferirá o compromisso a que alude o art. 203 aos doentes e deficientes mentais e aos menores de 14 (quatorze) anos, nem às pessoas a que se refere o art. 206.
3Gabel, Marceline. Crianças vítimas de abuso sexual/Marceline Gabel; Tradução Sonia Goldfeder. São Paulo – Summus, 1997, pág. 55.
4Cyrulnik, Boris. Dizer é morrer : a vergonha. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, pág. 42.
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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior e Pedro Bellentani Quintino de Oliveira são, respectivamente, promotor de Justiça aposentado e advogado.
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