Migalhas de Peso

Homicídios decorrentes de embriaguez ao volante de direção de veículo automotor

Estamos em estado de guerra não declarado no trânsito.

25/2/2013

Resumo: Este trabalho analisa a questão referente ao tratamento da legislação penal dada aos denominados crimes de trânsito, praticados em estado de embriaguez. Examinando o entendimento dos tribunais, assim como o dos autores estudiosos do tema.

Abstract: This essay examines the issue concerning on how the penal statutes have been applied to hold responsible drunk drivers, that commit crimes while driving automobiles after have drunk alcohol beverage. Also examining the perspective from courts of justice and scholars about this social problem.

Palavras-chave: Embriaguez. Direção. Veículo automotor. Crimes. Trânsito

Keywords: Drunk driver. Automobile. Breaking the law. Traffic.

Sumário: 1 Introdução; 2 A legislação penal; 3 O correto enquadramento penal; 4 Considerações Finais; 5 Referência Bibliográfica; 6 Referência legislativa.

1 Introdução

O Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é composto majoritariamente de uma população urbana (84% da população vive em áreas urbanas)1. Já sem vão décadas desde que se iniciou um verdadeiro êxodo das áreas rurais para as concentrações urbanas.

Independente de quais foram as causas que levaram a esta aglomeração de pessoas nos centros urbanos, o fato incontestável é que, passou haver a necessidade cada vez maior, de viabilizar a vida dessas pessoas diante deste desordenado crescimento das cidades.

Além de moradia, emprego, diversão e outras necessidades básicas, estas pessoas também precisam se locomover. Diante da insatisfatória infraestrutura de transporte oferecida pelo poder público, ou mesmo por comodismo, os veículos automotores (preponderantemente carros e motocicletas), passaram a ser o meio mais utilizado para o deslocamento por parte daqueles que dispõem recursos financeiros para o custeio destes meios de transporte particulares.

De olho nesta necessidade a ser suprida, as instituições financeiras vem disponibilizando linhas especiais de crédito para a aquisição destes veículos. E a indústria automotiva (vitaminada com incentivos fiscais estatais para a geração de empregos em época de crise econômica internacional2) não mede esforços para desovar seus estoques para este sequioso seguimento de consumo.

Junte-se a isto um contexto no qual a vida cotidiana moderna está cada vez mais complexa e mais acelerada. O que leva inúmeras pessoas a circularem com seus veículos em velocidades elevadas (acima das permitidas) para darem conta de suas inúmeras tarefas, e não raro em estado de completa alienação ao que acontece no seu entorno. Muitas vezes gerado por este estresse de ritmo frenético existencial. Sem contar o mau hábito de muitos brasileiros, de ignorar as normas legais regulamentadoras da prática de certas atividades. Tal qual a de dirigir veículo automotor em via pública falando ao telefone celular, ou em estado de embriaguez.

Para finalizar (e complicar ainda mais), some-se uma legislação deficiente, e tribunais caprichosos, que parecem estar mais focados em filigranas jurídicas, que à realidade cruel gerada por decisões descoladas da realidade.

Pronto. Está montado o palco para a carnificina no trânsito, que passou a ser considerada pelo Ministério da Saúde em novembro de 2011, como uma verdadeira epidemia3.

O que se procurará a seguir, é tentar alinhavar quais são alguns dos equívocos legais e judiciais, que vem contribuindo para este estado de guerra não declarado no trânsito.

2 A legislação penal

Dando sequência a esta análise, passe-se a seguir ao exame da legislação que tipifica como crime a conduta de dirigir veículo automotor em via pública, após a ingestão de bebida alcóolica.

Esta conduta delituosa específica, vinha descrita até dezembro de 2012, no Código Brasileiro de Trânsito (lei 9.503/97), nos seguintes termos:

Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Para a caracterização deste crime, portanto, bastava que o agente/motorista dirigisse em via pública um veículo automotor, e fosse flagrado com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas.

Trata-se, portanto, de um crime de "perigo abstrato", em relação ao qual a lei presume a existência de uma situação de perigo. Sendo desnecessário (e até defeso) a realização de prova acerca dos eventuais perigos que foram gerados, pelo fato do agente estar conduzindo em via pública um veículo, com a concentração de álcool por litro de sangue indicada pela lei como proibida. Pois a lei presume a existência de perito, e não admite prova em contrário, tendente a demonstrar uma eventual não caracterização de perigo4.

E, por mais que existam críticas contra a criação dos denominados crimes de perigo abstrato, o fato é que eles existem para o especial fim de conferir uma proteção maior a certos bem jurídicos de interesse coletivo. Que, de outra forma, ficaram expostos e sem uma adequada proteção do sistema jurídico.

Todavia, mesmo diante da clareza do texto legal incriminador dessa conduta, sua aplicação estava seriamente comprometida. Isto porque, na seara penal, prevalece o primado não apenas da legalidade. Mas sim da reserva absoluta da lei, pelo qual somente a lei em sentido estrito pode delinear as condutas delituosas. E, portanto, tudo aquilo que não estiver expressamente consignado no tipo incriminador (ou nele não se encaixar) não poderá ser "inferido" para fins de se realizar um enquadramento penal forçado5.

Sendo que ainda é absolutamente indispensável que haja a perfeita correlação entre a conduta praticada e a descrição elaborada pelo tipo incriminador. Noutras palavras, é necessário verificar se há "tipicidade" da conduta6, fazendo-se uma comparação entre a ação concreta que foi realizada pelo acusado, e os dizeres descritivos da norma.

Ocorre que, sabendo desta nuance jurídica (seja por meio da mídia, ou aconselhados por profissionais da área jurídica), muitos motoristas flagrados em completo estado de entorpecimento, recusavam-se a fazer o teste de alcoolemia. Pois estavam cientes de que, se não fosse comprovado mediante exame de sangue ou pelo uso do popular bafômetro (regulamentado pelo decreto 6.488/2008), que estavam com a dosagem de álcool no sangue superior à permitida, não poderiam ser alcançados pela legislação penal.

Escudados, inclusive, na premissa milenar de que "ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo" (nemo tenetur se detegere). Que conta, inclusive, com assento constitucional e sub-constitucional no sistema jurídico brasileiro.

Constituição Federal

Art. 5°. ...

LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

Código de Processo Penal

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

Preceito jurídico que também é previsto em documentos internacionais, em relação aos quais o Brasil se vinculou, incorporando estas disposições protetivas dos intitulados direitos humanos ao ordenamento jurídico nacional.

No caso, o tratado Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, confeccionado perante a Organização das Nações Unidas (ONU), trazido para o direito interno por meio do decreto 592, de 6 de julho de 1992. Cujo art. 14, 3, "g" deste tratado, assevera que: "...3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, a, pelo menos, as seguintes garantias: ... g) de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada".

Da mesma forma tem-se a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), redigido pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Promulgado no Brasil pelo Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Que estabelece semelhante garantia no seu art. 8°, "g"7.

Entendimento, ademais, que encontra ecos de ressonância favorável nas Cortes de Justiça da Nação. Como pode ser citado, à guisa de exemplo, o aresto abaixo reproduzido, proferido pelo Superior Tribunal de Justiça:

ROMS 200400378581
ROMS - RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA – 18017

EMENTA:

RECURSO ORDINÁRIO - MANDADO DE SEGURANÇA - PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR - EMBRIAGUEZ HABITUAL NO SERVIÇO - COAÇÃO DO SERVIDOR DE PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO, MEDIANTE A COLETA DE SANGUE, NA COMPANHIA DE POLICIAIS MILITARES - PRINCÍPIO DO "NEMO TENETUR SE DETEGERE" - VÍCIO FORMAL DO PROCESSO ADMINISTRATIVO - CERCEAMENTO DE DEFESA - DIREITO DO SERVIDOR À LICENÇA PARA TRATAMENTO DE SAÚDE E, INCLUSIVE, À APOSENTADORIA POR INVALIDEZ - RECURSO PROVIDO. 1. É inconstitucional qualquer decisão contrária ao princípio nemo tenetur se detegere, o que decorre da inteligência do art. 5º,LXIII, da Constituição da República e art. 8º, § 2º, g, do Pacto de São José da Costa Rica. Precedentes. 2. Ocorre vício formal no processo administrativo disciplinar, por cerceamento de defesa, quando o servidor é obrigado a fazer prova contra si mesmo, implicando a possibilidade de invalidação da penalidade aplicada pelo Poder Judiciário, por meio de mandado de segurança. 3. A embriaguez habitual no serviço, ao contrário da embriaguez eventual, trata-se de patologia, associada a distúrbios psicológicos e mentais de que sofre o servidor. 4. O servidor acometido de dependência crônica de alcoolismo deve ser licenciado, mesmo compulsoriamente, para tratamento de saúde e, se for o caso, aposentado, por invalidez, mas, nunca, demitido, por ser titular de direito subjetivo à saúde e vitima do insucesso das políticas públicas sociais do Estado. 5. Recurso provido. (DJ DATA:2/5/2006 PG:00390)

Tais garantias, não se discute, são indispensáveis num estado democrático de direito. O que se questiona, aqui, é a forma ardilosa e desonesta como são utilizadas por alguns motoristas flagrados em estado de embriaguez pelo álcool.

Não por outra razão o Código de Trânsito Brasileiro veio a ser alterado em 20 de dezembro de 2012, por meio da lei 12.760/2012. Passando o art. 306 a constar com a seguinte redação:

Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

§ 1o As condutas previstas no caput serão constatadas por:

I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou

II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.

§ 2o A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.

§ 3o O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.

Mecanismos que foram regulamentados pela RESOLUÇÃO 432, de 23 de janeiro de 2013, expedida pelo Conselho Nacional de Trânsito (DOU – Seção 1, p. 30, 29/1/2013).

Tornando mais severa a repressão penal e administrativa, contra aqueles que ingerem bebidas alcóolicas e conduzem veículos automotores em vias públicas. Seja porque flexibilizou os meios probatórios para caracterizar a embriaguez pelo álcool, seja porque proibiu a ingestão de qualquer quantidade de álcool pelo motorista.

Bem assim, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou audiência pública no dia 7 de maio de 2012, visando arejar a discussão com diferentes setores da sociedade sobre esta questão. Posto que, o STF foi incumbido de julgar Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4103, manejada pela Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento (Abrasel). Na qual se pretende ver invalidados comandos insertos na lei 11.705/2008 (denominada Lei Seca), que trouxe modificações ao Código de Trânsito, e maiores restrições ao consumo de bebidas alcoólicas por motoristas de veículos automotores. Mas que foi objeto de nova modificação, agora por meio da lei 12.760/2012. Que, provavelmente, ainda que por "arrastamento", também será examinada pelo STF.

Mas, mesmo com este aprimoramento do sistema repressivo, ainda existem algumas situações permissivas, que impedem um maior rigorismo na aplicação dos comandos legais. Como a seguir será melhor esclarecido.

3 O correto enquadramento penal

Feitas estas considerações, cabe, agora, verificar como deve ser efetivado o enquadramento penal daqueles que são flagrados embriagados na direção de veículo automotor.

A questão é aparentemente simples, mas envolve nuances que podem acarretar tratamentos diferenciados para situações assemelhadas. E mesmo gerar injustiças, ao permitir que homicidas do trânsito escapem praticamente ilesos da jurisdição penal.

Num primeiro cenário, tem-se o agente que é flagrado dirigindo alcoolizado e, voluntariamente, aceita submeter-se aos testes de alcoolemia (bafômetro ou exame de sangue). Se constatado estar com concentração acima da permitida, automaticamente seria enquadrado no art. 306, da lei 9.503/97.

E, se porventura se recusar a fazer os referidos testes, poderá, agora, da mesma forma, ser enquadrado, diante de sinais que indiquem alteração da capacidade psicomotora. De acordo com a nova redação do CTB, art. 306, § 1º, II, combinado com o art. 2778.

As contradições e heresias jurídicas, entrementes, estão reservadas para outras situações. Dentre as quais se destaca a morte de pessoas vítimas de atropelamentos ou batidas de carros, acarretadas por motoristas embriagados. Neste ponto, o tema se torna nebuloso e, lamentavelmente, vem-se inclinando para uma vertente desfavorável à proteção dos bens jurídicos dos inocentes, que são vitimados por tais motoristas embriagados inconsequentes.

Em tais hipóteses, de homicídio gerado por motorista embriagado, a tipificação penal da conduta poderia ser realizada de duas formas. Ou seja, em tese, tanto seria possível enquadrar o agente como incurso no art. 302 da lei 9.503/97 (homicídio culposo na direção de veículo), que prevê pena privativa de liberdade de dois a quatro anos. Como também no art. 121, combinado com o art. 18, I, segunda parte, do Código Penal (homicídio com dolo eventual – no qual o agente, apesar de não querer efetivamente, assume o risco da ocorrência do resultado, não refreando seu comportamento ante a possibilidade de concretização do evento fatídico)9, com pena de reclusão de seis a vinte anos, mas podendo chegar até trinta anos, se o homicídio for considerado qualificado (art. 121, §2°).

À toda evidência, a diferença de tratamento é abissal, acarretando consequências mais ou menos severas, dependendo do modo como se opere o enquadramento criminal do agente causador do acidente.

Mas, então, vem a questão: qual seria o enquadramento penal mais correto? Deixar o agente responder por simples crime culposo (art. 302 da lei 9.503/97), ou tratá-lo como um homicida doloso (art. 121, c/c art. 18, I, segunda parte, do Código Penal)?

A linha de raciocínio mais acertada (respeitando entendimentos em contrário), propugna em favor do enquadramento penal do agente na figura do homicídio com dolo eventual. Deveras, prescreve o Código Penal, no seu art. 28, que a embriaguez não exclui a imputação penal. Abrindo, apenas, pequenas brechas nos §§ 1° e 2º, para se eximir da responsabilidade o agente que tenha cometido o fato em estado de embriaguez10. Mas que, pelo menos na maioria esmagadora dos casos, não se aplicam ao grande número de delinquentes do trânsito.

Explica-se. O Código Penal adotou, no seu art. 28, II, a intitulada teoria da actio libera in causa (ação livre quando da conduta)11. Por esta concepção, em casos de embriaguez (por álcool ou substâncias de efeitos análogos), para fins de aferição da responsabilização penal, deve-se levar em consideração não o momento no qual o agente praticou a conduta incriminada (em estado de embriaguez).

Mas sim o instante precursor ao ingresso do agente neste estado de embriaguez. Noutros dizeres, é preciso que se verifique se o agente, quando estava sóbrio, tinha noção de que estava se colocando num estado de embriaguez (ou de provável embriaguez). Se, voluntariamente se colocou nesta condição, ao ter ingerido a substância entorpecedora (tal qual o álcool), deverá responder pelos atos que, posteriormente, vier a praticar. Mesmo que, no ato da conduta, esteja com a consciência turvada, como decorrência dos efeitos da substância inebriante que voluntariamente sorveu.

Logo, aquele que, ilustrativamente, senta-se à mesa de um bar, faz o consumo elevado de bebida alcóolica, depois pega seu carro para ir embora e, no trajeto, vem a atropelar e matar um pedestre que andava pela calçada (devido a ter perdido o controle da direção do seu veículo), deverá ser responsabilizado pela prática de homicídio com dolo eventual.

Pois, ao ter voluntariamente ingerido bebida alcóolica, sabendo que, depois, voltaria para sua casa dirigindo seu veículo neste estado de entorpecimento, assumiu, inequivocamente, o risco de vir a se envolver em algum acidente. Como corolário da sua reduzida capacidade de controlar o veículo, em razão do uso imoderado de uma droga lícita (pois o álcool é considerado uma droga lícita, de consumo permitido para maiores de dezoito anos de idade).

Ora, aquele que, mesmo sabendo que irá conduzir um veículo automotor em via pública, faz uso de substância alcóolica está, irretorquivelmente, assumindo o risco de produzir um resultado antijurídico. Não se preocupando com os danosos reveses que sua conduta desajustada pode acarretar a bens jurídicos alheios. Revelando, assim, desprezo à salvaguarda de terceiros. O que o torna merecedor de severas reprimendas penais.

Todavia, infelizmente, este não o posicionamento que vem sendo adotado por boa parte das Cortes de Justiça. Do que é elucidativo o aresto recente, abaixo reproduzido, proveniente do Supremo Tribunal Federal (STF). No qual foi sedimentado pela Primeira Turma do STF (por maioria de votos) que, na hipótese do agente bêbado, causar um acidente com seu veículo automotor, ele somente será responsabilizado por dolo eventual, se comprovado que sua embriaguez foi preordenada. Ou seja, que o agente se colocou, adredemente, em estado de embriaguez, para cometer o delito (no caso, de atropelamento de vítimas inocentes, que andavam pela calçada), in verbis:

Ementa: PENAL. HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA. ACTIO LIBERA IN CAUSA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO. REVALORAÇÃO DOS FATOS QUE NÃO SE CONFUNDE COM REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. ORDEM CONCEDIDA.

1. A classificação do delito como doloso, implicando pena sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of law, é reformável pela via do habeas corpus.

2. O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual.

3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo.

4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas alcoólicas no afã de produzir o resultado morte.

...

8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP. (DJE 13.10.2011)

Nesta ótica, estampada na decisão acima transcrita, somente seria possível responsabilizar o motorista que atropelou e matou pedestres que estavam andando na calçada, se for comprovado que o motorista, ao ter bebido (embriaguez preordenada) desejava atropelar e matar estes pedestres (mesmo que os desconhecesse e nada tivesse contra eles – sendo o atropelamento destes transeuntes, e não de outros, mero capricho do acaso). Significa que, a menos que haja testemunhas, imagens e sinais acústicos gravados e outras provas congêneres, revelando que o motorista, ao se embriagar, estava tramando a morte de pedestres (qualquer pedestre, que tivesse a desdita de estar na calçada errada no instante em que este motorista bêbado inescrupuloso perdesse o controle do seu carro) por atropelamento tão-logo saísse da mesa do bar, a ele somente se poderá imputar a prática de um crime culposo (sem intenção), por imprudência na condução de seu veículo automotor.

With all due respect (com todo o respeito devido), trata-se de linha de raciocínio defeituosa, e que expõe a perigo, sobremaneira, os bens jurídicos e interesses de terceiros inocentes.

A ironia (às avessas) deste raciocínio é tanta que, chegamos ao auge da incongruência jurídica (unindo o disparate ao absurdo – se fora possível) de termos os seguintes cenários jurídicos:

se o agente for pego bêbado, por uma fiscalização, dirigindo veículo automotor, é mais conveniente (do ponto de vista de sua situação jurídica), que se recuse a fazer o teste de alcoolemia e comporte-se de uma maneira tal que não venha a revelar que está embriagado. Por exemplo, ficando sentado sem conversar com ninguém. Pois, como ninguém pode ser obrigado a fazer prova contra si mesmo, e como a lei exige a presença de uma concentração mínima de álcool no sangue para caracterizar o ilícito penal, ou outros meios de aferição como imagens da pessoa visível e irretorquivelmente embriagada, sem estas provas técnicas, o agente não poderá ser responsabilizado penalmente por conduzir veículo em estado de embriaguez.

Do contrário, se agente, bêbado, dirigindo veículo automotor, envolve-se num acidente de trânsito, ceifando a vida de pedestres inocentes, deverá implorar aos policiais que atenderem a ocorrência, para que o deixem realizar o teste de alcoolemia, ou a que registrem (filmando) seu suposto completo estado de embriaguez. Pois, ao se constatar sua embriaguez, de acordo com entendimento (equivocado) acima mencionado, o máximo que receberá será uma imputação pelo homicídio culposo. Posto que, para que pudesse ser enquadrado como incurso no homicídio com dolo eventual, seria imprescindível comprovar que o agente (motorista embriagado), ao ter ingerido bebida alcóolica, desejava ter atropelado e matado algum pedestre (repita-se, qualquer pedestre que estivesse na sua rota errante).

4 Considerações Finais

Pelo exposto, verifica-se que, por mais que tenham ocorridos avanços na legislação aplicável à matéria, tornando mais eficaz o sistema de fiscalização e punição, é imprescindível a mudança de mentalidade jurídica sobre como se enquadrar penalmente, aqueles que conduzem veículos automotores em estado de embriaguez.

Pois, para se promover a punição mais severa destes motoristas inconsequentes, e que dão causa a mortes no trânsito, já existem mecanismos legais vigentes e eficazes.

O que falta, isto sim, é superar a concepção (enviesada) de supremacia de supostas garantias individuais absolutas, que impediriam a adoção de certas premissas jurídicas. Como a encampada no Código Penal, art. 28, II (teoria da actio libera in causa) que, apesar de acolher, em certa medida, postulados de uma vertente de responsabilidade objetiva atenuada, não pode deixar de ser aplicada no regramento da vida da sociedade contemporânea, em situações excepcionais.

Mormente se o fundamento para o seu emprego, for a preservação de bens e interesses jurídicos de inocentes. Vítimas indefesas estas que, não se pode olvidar, também tem a garantia fundamental à segurança, nos termos da Constituição Federal, art. 5°, caput: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança...".

Sem exageros, e dentro de parâmetros razoáveis, é absolutamente indispensável que se usem todos os meios jurídicos e legais, para se preservar a incolumidade da sociedade, e promover a punição daqueles que se mostram resistentes ao cumprimento dos ditames estabelecidos, para se manter a harmonia no meio social.

Mas, em verdade, o que precisamos mesmo não é de instrumentos jurídicos mais eficazes e rigorosos. O que necessitamos mesmo, urgentemente, é mudar a consciência da coletividade, de maneira a que ninguém mais dirija em estado de embriaguez. Providência que, para nossa própria sorte (pois somos senhores dos nossos atos) e desgraça (pois somos ao mesmo tempo coautores das mazelas decorrentes destes atos aberrantes), depende apenas de nós mesmos.

Se a sociedade, como um todo, realmente tivesse esta consciência, não precisaríamos de nenhum arcabouço jurídico para resolver o problema da embriaguez no trânsito. Porque, obviamente, ninguém mais dirigiria depois de beber, sabendo dos riscos envolvidos nesta prática repudiável.

Como este estágio de civilidade ainda está muito longe de ser alcançado (se é que um dia será), não resta alternativa senão endurecer o sistema normativo contra estes homicidas em potencial, que cruzam as vias públicas munidos de suas armas móveis sobre rodas.

5 Referência bibliográfica

Agência Brasil (Empresa Brasil de Comunicação). "Câmara aprova MP que concede incentivos fiscais à indústria automotiva". Acesso em 31 jan 2012.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). "“Censo 2010: população do Brasil é de 190.732.694 pessoas". Acesso em 24 jan 2012.

Jornal EXTRA globo.com. "Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, vê 'epidemia' de mortes no trânsito". Acesso em 24 jan 2012.

Capez, Fernando. Curso de Direito Penal - Parte Geral volume 1, 7 edição, 2004, Saraiva, p. 294/295.

BITENCOURT, Cezar Roberto. “Tratado de Direito Penal”- Parte Geral 1”, 16 edição, 2011, Saraiva, p. 306.

GRECO, Rogério. “Código Penal Comentado”, Ed. Impetus, 4ª edição, 2010, p. 1.

JESUS, Damásio E. Direito Penal – Parte Geral Volume 1, Saraiva, 27ª edição, 2003, p. 290/291.

PRADO, Luiz Regis. “Curso de Direito Penal Brasileiro”. Vol. 1, 10ª edição, RT, 2011, p. 259/260.

6 Referência legislativa

BRASIL. Decreto-lei n° 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.

BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 05 out 1988.

Decreto nº 678 de 6 de novembro de 1992. Publicado no DOU de 9.11.1992 (Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969).

BRASIL. Lei n° 9.503 de 23 de setembro de 1997. Publicado no DOU de 24.9.1997 (Institui o Código de Trânsito Brasileiro).

Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Publicado no DOU de 7.7.1992 (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação).

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1Censo 2010: população do Brasil é de 190.732.694 pessoas: Após cerca de quatro meses de trabalho de coleta e supervisão, durante os quais trabalharam 230 mil pessoas, sendo 191 mil recenseadores, o resultado do Censo 2010 indica 190.732.694 pessoas para a população brasileira em 1º de agosto, data de referência. Em comparação com o Censo 2000, ocorreu um aumento de 20.933.524 pessoas. Esse número demonstra que o crescimento da população brasileira no período foi de 12,3%, inferior ao observado na década anterior (15,6% entre 1991 e 2000). O Censo 2010 mostra também que a população é mais urbanizada que há 10 anos: em 2000, 81% dos brasileiros viviam em áreas urbanas, agora são 84%...

2Agência Brasil: Câmara aprova MP que concede incentivos fiscais à indústria automotiva

3BRASÍLIA - Dados divulgados nesta sexta-feira pelo Ministério da Saúde mostram que o número de mortes no trânsito passou de 37.594, em 2009, para 40.610, em 2010, um aumento de 8%. Os acidentes envolvendo motocicletas foram responsáveis por 25% do total, com 10.134 registros. Em 2009, as motos já respondiam por esse percentual de acidentes. “Os números revelam que o país vive uma verdadeira epidemia de lesões e mortes no trânsito. Estamos atrás apenas de Índia, China, Estados Unidos e Rússia”, disse o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, em nota divulgada pelo ministério.

4PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, p. 259/260: "...delitos de perigo: basta a existência de uma situação de perigo – lesão potencial. Dividem-se em: delito de perigo concreto: o perigo integra o tipo como elemento normativo, de modo que o delito só se consuma com a sua real ocorrência para o bem jurídico... o perigo deve efetivamente estar comprovado... e delito de perigo abstrato: o perigo constitui unicamente a ratio legis... o perigo é inerente à ação ou omissão, não necessitando de comprovação..." (grifei)

5Greco, Rogério. "Código Penal Comentado", p. 1: "É o princípio da legalidade, sem dúvida alguma, um dos mais importantes do Direito Penal... não se fala na existência de crime se não houver uma lei definindo-o como tal. A lei é a única fonte de Direito Penal quando se quer proibir ou impor condutas sob ameaça de sanção. Tudo o que não for expressamente proibido é lícito em Direito penal..."

6BITENCOURT, Cezar Roberto. "Tratado de Direito Penal", p. 306: "...Tipicidade é a conformidade do fato praticado pelo agente com a moldura abstratamente descrita na lei penal… Um fato para ser adjetivado de típico precisa adequar-se a um modelo descrito na lei penal, isto é, a conduta pratica pelo agente deve subsumir-se na moldura descrita na lei".

72. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas... g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e

8Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Infração - gravíssima; Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses; Medida Administrativa – recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4o do art. 270 da lei 9.503, de 23 de setembro de 1997 - do Código de Trânsito Brasileiro.

Art. 277. O condutor de veículo automotor envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito poderá ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que, por meios técnicos ou científicos, na forma disciplinada pelo Contran, permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência. (Redação dada pela lei nº 12.760, de 2012)

§ 1o (Revogado). (Redação dada pela lei nº 12.760, de 2012)

§ 2o A infração prevista no art. 165 também poderá ser caracterizada mediante imagem, vídeo, constatação de sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora ou produção de quaisquer outras provas em direito admitidas. (Redação dada pela lei nº 12.760, de 2012)

§ 3o Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.705, de 2008)

9Jesus, Damásio E. “Direito Penal”, p. 290/291: “Ocorre dolo eventual quando o sujeito assume o risco de produzir o resultado, isto é, admite e aceita o risco de produzi-lo. Ele não quer o resultado, pois se assim fosse haveria dolo direto. Ele antevê o resultado e age. A vontade não se dirige ao resultado (o agente não quer o evento), mas sim à conduta, prevendo que esta pode produzir aquele. Percebe que é possível causar o resultado e, não obstante, realiza o comportamento. Entre desistir da conduta e causar o resultado, prefere que este se produza...”

10Art. 28 - Não excluem a imputabilidade penal... II - a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos.

§ 1º - É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

§ 2º - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, por embriaguez, proveniente de caso fortuito ou força maior, não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

11Capez, Fernando. Curso de Direito Penal, p. 294/295: "Embriaguez. Conceito: causa capaz de levar à exclusão da capacidade de entendimento e vontade do agente, em virtude de uma intoxicação aguda e transitória cansada por álcool ou qualquer substância de efeitos psieópicos. sejam eles entorpecentes (morfina, ópio etc.), estimulantes (cocaína) ou alucinógenos (ácido lisérgico).... Conseqüência: actio libera in causa. A embriaguez não acidental jamais exclui a imputabilidade do agente, seja voluntária, culposa, completa ou incompleta. Isso porque ele, no momento em que ingeria a substância, era livre para decidir se devia ou não o fazer. A conduta, mesmo quando praticada em estado de embriaguez completa, originou-se de um ato de livre-arbítrio do sujeito, que optou por ingerir a substância quando tinha possibilidade de não o fazer. A ação foi livre na sua causa, devendo o agente, por essa razão, ser responsabilizado. É a teoria da actio libera causa (ações livres na causa). Considera-se, portanto, o momento da ingestão da substância e não o da prática delituosa, Essa teoria ainda configura resquício da responsabilidade objetiva em nosso sistema penal, sendo admitida excepcionalmente quando for de todo necessário para não deixar o bem jurídico sem proteção...".

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* Sérgio de Oliveira Netto é procurador Federal e professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE.





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