Dentre as características do contrato de locação estão a onerosidade (há reciprocidade de direitos e deveres para ambos os contratantes) e a comutatividade (as prestações das partes contratantes são de plano conhecidas)1. Percebe-se que, em razão de o contrato ser comutativo, as partes contratantes possuem prévio conhecimento de todas as cláusulas que são inseridas no negócio jurídico.
Umas das cláusulas que as partes sempre decidem pela inserção é a chamada cláusula penal, comumente conhecida como multa contratual. A referida multa é tratada pelo Código Civil em seus artigos 409 a 4162, e na lei do Inquilinato (lei 8.245/1991) em seu artigo 4º, parágrafo único3, ressaltando que sempre deve ser aplicado para os contratos de locação o disposto na lei especial (lei do Inquilinato), que, frise-se, regula as locações urbanas, tanto sob o aspecto material como também sob o aspecto processual. O CC e o CPC somente serão aplicados às relações locatícias em caráter residual, conforme apontado no artigo 79 da lei 8.245/19914.
Regulada pelo artigo 4º da lei 8.245/1991, a multa é, portanto, uma prefixação antecipada de perdas e danos no caso de inobservância dos ônus obrigacionais dispostos para as partes no negócio jurídico de locação, visando indenizar a parte prejudicada pelo inadimplemento contratual. Normalmente, a cláusula penal vem disposta no contrato como multa moratória - para os casos de atraso no pagamento dos aluguéis -, e como multa compensatória – quando houver indenização prévia por perdas e danos no caso de descumprimento parcial ou total do negócio.
Dessa forma, de acordo com o artigo 4º da lei 8.245/1991, se existir multa no contrato de locação não se admite a aplicação de indenização suplementar porque o dispositivo é claro ao dispor em sua parte final que, no caso de descumprimento, poderá haver a rescisão, "pagando a multa pactuada proporcionalmente ao período de cumprimento do contrato, ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada".
Nessa mesma linha de raciocínio, mesmo que fosse aplicado o CC quando existir cláusula penal no contrato, o parágrafo único do artigo 416 dispõe que "Ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente".
Como se vê, o que deve ser aplicado para o contrato de locação é a multa contratual, assim como em outras relações contratuais, caso não exista ressalva expressa de indenização suplementar por perdas e danos, porquanto não se admite bis in idem. Apenas nos casos de inexistência da multa contratual é que pode o Judiciário estipular uma indenização por perdas e danos, se existentes provas e nexo de causalidade. Porém, não raro, os Tribunais, nos casos de rescisão antecipada dos contratos de locação, decidem pela fixação de indenização por perdas e danos, sem observar, no entanto, a existência de cláusula penal.
Além da clareza dos dispositivos que tratam da matéria, tanto na lei do Inquilinato como no Código Civil, a jurisprudência dominante tem se posicionado no sentido de não admitir a cumulação da multa contratual com a indenização suplementar, a exemplo da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo5:
[...] Ementa: Locação de imóvel urbano. Ação de indenização por perdas e danos c.c. cobrança de cláusula penal. Cláusula penal compensatória alternativa. Reconhecimento. Inadimplemento culposo de obrigações contratuais. Ocorrência. Indenização prefixada devida. Previsão de indenização suplementar. Não reconhecimento. Pedido cumulado de indenização por perdas e danos. Descabimento. Apelo parcialmente conhecido e, na parte conhecida, parcialmente provido. [...]
O entendimento do STJ6 não destoa do pronunciamento do Tribunal de Justiça de São Paulo:
[...] 1. Se no contrato locatício há previsão das cláusulas penais moratória e compensatória, tendo como origem fatos geradores distintos, é cabível a cobrança de uma delas ou de ambas, observados os fatos que autorizam a pretensão. Precedente. 2. Constata-se, na hipótese em apreço, que os Recorridos foram condenados ao pagamento de multas pelo atraso dos aluguéis e pela devolução antecipada do imóvel. Desse modo, é incabível nova condenação em multa moratória, sob pena de se incorrer em bis in idem. [...]
Diante disso, percebe-se que as decisões do Judiciário que afastam a cláusula penal para estipular indenizações com base em pedidos absurdos, muitas vezes até sem prova do prejuízo, são equivocadas. Também podem ser questionadas as decisões que cumulam a multa compensatória com perdas e danos, pois ferem não apenas o disposto no artigo 4º da lei 8.245/1991 como também o disposto no parágrafo único do artigo 416 do Código Civil.
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1Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 6ª Edição. Volume III. Editora Saraiva, São Paulo, 2019, p. 285/287
2Art. 409. A cláusula penal estipulada conjuntamente com a obrigação, ou em ato posterior, pode referir-se à inexecução completa da obrigação, à de alguma cláusula especial ou simplesmente à mora.
Art. 410. Quando se estipular a cláusula penal para o caso de total inadimplemento da obrigação, esta converter-se-á em alternativa a benefício do credor.
Art. 411. Quando se estipular a cláusula penal para o caso de mora, ou em segurança especial de outra cláusula determinada, terá o credor o arbítrio de exigir a satisfação da pena cominada, juntamente com o desempenho da obrigação principal.
Art. 412. O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.
Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.
Art. 414. Sendo indivisível a obrigação, todos os devedores, caindo em falta um deles, incorrerão na pena; mas esta só se poderá demandar integralmente do culpado, respondendo cada um dos outros somente pela sua quota.
Parágrafo único. Aos não culpados fica reservada a ação regressiva contra aquele que deu causa à aplicação da pena.
Art. 415. Quando a obrigação for divisível, só incorre na pena o devedor ou o herdeiro do devedor que a infringir, e proporcionalmente à sua parte na obrigação.
Art. 416. Para exigir a pena convencional, não é necessário que o credor alegue prejuízo.
Parágrafo único. Ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente.
3Art. 4o Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o locador reaver o imóvel alugado. O locatário, todavia, poderá devolvê-lo, pagando a multa pactuada, proporcionalmente ao período de cumprimento do contrato, ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada. (Redação dada pela lei 12.112, de 2009)
Parágrafo único. O locatário ficará dispensado da multa se a devolução do imóvel decorrer de transferência, pelo seu empregador, privado ou público, para prestar serviços em localidades diversas daquela do início do contrato, e se notificar, por escrito, o locador com prazo de, no mínimo, trinta dias de antecedência.
4Lei 8.245/1991. Art. 79. No que for omissa esta lei aplicam-se as normas do Código Civil e do Código de Processo Civil.
5Tribunal de Justiça de São Paulo. Recurso de Apelação 0007279-09.2009.8.26.0071. 34ª Câmara de Direito Privado. Relator Nestor Duarte. Revisora Cristina Zucchi. Registrado em 16.7.2012
6Superior Tribunal de Justiça (STJ). 5ª Turma. Recurso Especial 657568/MG. Relator Laurita Vaz.
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* Ezequiel Frandoloso é advogado do escritório Trigueiro Fontes Advogados
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