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A (in) aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos contratos firmados entre cooperativas de crédito e seus cooperativados

A relação estabelecida entre cooperativas e cooperados não pode ser classificada como relação de consumo.

20/12/2012

1 Introdução

O presente trabalho tem por objetivo demonstrar que inobstante os serviços prestados pelas Cooperativas de Crédito aos seus Cooperados possuam natureza financeira ou bancária, a relação estabelecida entre Cooperativas e Cooperados - ato cooperativo- não pode ser classificada como relação de consumo, razão pela qual, não sofre incidência das disposições contidas no Código de Defesa do Consumidor.

2 Cooperativas de crédito

Sociedades cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, constituídas para prestar serviços aos associados, cujo regime jurídico no Brasil foi instituído pela Lei nº 5.764/1971.

Nos termos no art. 3º do reportado diploma legal: “Celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetico de lucro.

Complementando a redação supracitada encontramos a definição de sociedade cooperativa no art 4º da Lei 5.764/1971:As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência, constituídas para prestar serviços aos associados...”.

Denota-se dos dispositivos legais acima citados que as cooperativas são sociedades intuito personae, ou seja, surgem e se organizam em função de um determinado grupo de pessoas para consecução de um determinado fim, diferentemente das sociedades de capital em que pouco importa saber quem são as pessoas que adquirem cotas ou ações, mas efetivamente o capital integralizado.

Nas palavras de Arnold Wald:

As sociedades cooperativas ostentam natureza jurídica sui generis, caracterizando-se, precipuamente, por sua finalidade, e pela nítida configuração de sociedade de pessoas, criando um regime jurídico próprio, ao qual, não se aplicam, necessariamente todas as normas do Direito Societário, pevalecendo sempre as regras societárias e, eventualmente e subsidiariamente as normas de Direito Civil. (…) Verifica-se, assim, que a Cooperativa é, no Brasil, sociedade civil com características próprias, em que assume especial realce o espirito de mutualidade, equivalente à reciprocidade das prestações entre cooperativa e cooperado, em contraposição, ao cunho eminentemente empresarial das demais sociedades. ( WALD Arnold. Da natureza e do regime jurídico das Cooperativas e do sócio demitido que se retira da sociedade. Revista dos Tribunais, v.84, n 771, p.63-72, 1995)

A natureza civil das sociedades cooperativas decorre do fato de serem sociedade de pessoas em contraposição as sociedades de capital. É exatamente esta característica que torna a sociedade cooperativa num tipo ímpar dentro do Direito Societário, pois a sociedade cooperativa é um tipo de sociedade despida de interesses mercantis e constituída pelos e para associados.

Desta particularidade decorre o fato de que a sociedade cooperativa não age em nome próprio, mas em nome dos seus cooperados com intuito de prestar serviços a eles próprios sem auferir lucro ou receita. O seu objetivo primordial é atender a necessidade e anseios dos cooperados, atuando como mandatária destes, na busca do cumprimento do seu objetivo social.

As sociedades cooperativas podem ser classificadas quanto ao nível e objeto. Com relação a este último podem ser: de produção, de consumo ou de crédito.

Cooperativas de crédito são instituições financeiras, por equiparação, constituídas sob a forma de sociedade cooperativa, tendo por objeto a prestação de serviços financeiros aos associados, como concessão de crédito, captação de depósitos à vista e a prazo, cheques, prestação de serviços de cobrança, de custódia, de recebimentos e pagamentos por conta de terceiros sob convênio com instituições financeiras públicas e privadas e de correspondente no País, além de outras operações específicas e atribuições estabelecidas na legislação em vigor.

Embora as Cooperativas de Crédito sejam instituições financeiras por equiparação autorizadas e fiscalizadas pelo Banco Central e os serviços por ela prestados sejam semelhantes aos oferecidos pelos Bancos não se igualam a estes pelas seguintes características; são sociedades de pessoas e não de capital, o voto não é proporcional ao capital social; o usuário é o próprio dono do negócio e não mero cliente, não existem propósitos mercantilistas, avançam pela cooperação e não pela competição.

Em seu livro Cooperativa de Crédito - Instrumento de Organização Econômica da Sociedade", Ademar Schardong, presidente do Banco SICREDI S.A., apresenta as principais diferenças existentes entre as Cooperativas de Crédito e os Bancos Comerciais, vejamos:

As cooperativas de crédito são sociedades de pessoas e não de capital, em que o poder de decisão está na efetiva participação dos sócios e não na detenção de quotas de capital social na instituição;


As cooperativas de crédito têm como objetivo a captação e administração de poupanças, empréstimos e prestação de serviços aos cooperados, independentemente da ideia de, como pessoa jurídica, obter vantagens para si, em detrimento do resultado do sócio, este investido da dupla qualidade: de associado e cliente das operações e dos serviços cooperativos;

Suas operações estão restritas ao quadro associativo que é constituído de pessoas físicas e jurídicas;

Os resultados (sobras) são distribuídos entre os sócios, proporcionalmente ao volume de operações que realizaram durante o exercício;

Nas Cooperativas o controle é democrático (1 pessoa = 1 voto) enquanto que nos Bancos o controle é exercido a partir da participação do capital.

As relações obrigacionais entre sócio e cooperativas não se confundem com a de fornecedor e consumidor, pois estas são caracterizadas como atos cooperativos, com tratamento próprio na legislação cooperativista;

É vedada a transferência de quotas-partes (capital social) a terceiros, enquanto que nos Bancos a transferência do capital (ações) pode ser feita livremente (bolsas de valores)

Sobre o resultado não incide tributação (Imposto de Renda e Contribuição Social (CSSL)), em face da tributação se dar na pessoa física do associado. (SCHARDONG, Ademar. Cooperativa de Crédito – Instrumento de Organização Econômica da Sociedade – Porto Alegre: Rigel, 2002)

Supostamente em razão destas peculiaridades é que a Lei 5764/1971 em seu art. 5º § único veda o uso da expressão “Banco” pelas Cooperativas1.

Portanto mesmo sendo instituições financeiras por equiparação as Cooperativas de Crédito não perdem sua natureza de sociedade de pessoas, constituída para prestar serviços aos seus associados cujo fim primordial é o crescimento individual de cada sócio e da comunidade na qual encontra-se inserida, o que lhe esvazia o caráter mercantil.

3 A relação de consumo

Para classificar uma relação jurídico-obrigacional como sendo de consumo, é indispensável ter conhecimento prévio de dois conceitos fundamentais, quais sejam, Consumidor e Fornecedor.

Consumidor, à luz do artigo 2º da lei 8078/90, é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produtos ou serviços como destinatário final.

Para que a pessoa física ou jurídica seja considerada como consumidor e, portanto considerado destinatário econômico final, o produto ou serviço adquirido ou utilizado não poderá guardar qualquer conexão, direta ou indireta, com a atividade econômica por ele desenvolvida. O produto ou serviço deve ser utilizado para o atendimento de uma necessidade própria, pessoal do consumidor.

Por sua vez, fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços (art. 4º da lei 8078/90).

Para que uma pessoa física ou jurídica seja considerada fornecedor de produtos ou serviços é necessário que desenvolva atividade econômica de maneira profissional e autônoma, ou seja, que desenvolva atividade empresária.2

Portanto por relação de consumo é de se entender toda relação jurídico-obrigacional que liga um consumidor a um fornecedor, tendo como objeto o fornecimento de um produto ou da prestação de um serviço.

4 A (in) aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos contratos firmados entre cooperativas de crédito e seu associados

A incidência das disposições contidas na Lei 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor reclama a existência da relação de consumo.

Em que se pese as Cooperativas de Crédito prestarem serviços de natureza financeira aos seus associados e o enunciado 297 do Superior Tribunal de Justiça declarar expressamente que as disposições contidas na legislação consumerista aplicam-se as instituições financeiras, isso em nada altera a natureza jurídica da relação estabelecida entre Cooperativa de Crédito e seus Cooperativados.

Nos termos do artigo 79 da Lei 5764/1971 as operações realizadas entre sociedade cooperativa e seus associados denomina-se o ato cooperativo e tem por objetivo a consecução dos fins da sociedade, não constituindo operação de mercado, contrato de compra e venda de produto ou mercadoria.3

O ato praticado entre a cooperativa e o cooperado, é fruto da manifetação de vontade do associado que é o próprio dono do negócio cooperativo. Sendo assim, Cooperado não pode ser confundido com consumidor e, tampouco, cooperativa com fornecedor, já que o ato cooperativo não almeja lucro ou exige remuneração, outrossim, o resultado positivo deste ato se transforma ao final de cada exercício nas sobras da sociedade cooperativa que retornarão ao associado mediante deliberação assemblear.

Nesse sentido:

“O cooperado, em verdade, exerce dupla função na sociedade da qual participa, é seu membro e, ao mesmo tempo, destinatário de seus serviços, sendo esta relação negócio jurídico praticado nos limites internos de um círculo em que somente se encontram essas partes, ato ordinariamente denominado de cooperativo. Para uma relação ser regida pelas disposições do Código de Defesa do Consumidor, necessário é ter de ambos os lados da relação, um fornecedor de serviços ou produtos e um consumidor.“ (BRAGA, Paulo R C. Aspectos Jurídicos das Cooperativas de Crédito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2005, Capítulo 12).

Não podemos perder de vista que Cooperativa de Crédito é uma instituição de crédito organizada sob forma de sociedade cooperativa, mantida pelos próprios cooperados, que exercem ao mesmo tempo o papel de donos e usuários da sociedade.

Em uma Cooperativa todas as operações feitas pelos associados (empréstimos, aplicações, depósitos e outras) são revertidas em seu benefício através de preços justos. Os recursos aplicados na cooperativa ficam na própria comunidade, o que contribui para o desenvolvimento das localidades onde está inserida.

Por esta razão as relações jurídicas decorrentes do "ato cooperativo" não estão sujeitas às disposições do Código de Defesa do Consumidor, pois o associado não é consumidor, mas sim um dos titulares da sociedade, com quotas de capital e direito a voto, sendo aquela mera prestadora de serviços sem visar lucro ao próprio ente cooperativo.

Tão distinta é a Cooperativa de Crédito que às suas operações e serviços não se aplicam os dispositivos do Código de Defesa do Consumidor. Os negócios jurídicos internos das sociedades cooperativas - os atos cooperativos - decorrem da condição de proprietário e usuário que ostenta o cooperado. Não seria eficaz este reclamar dele próprio, uma vez que aderiu ao estatuto social da sociedade, o qual estabelece a responsabilidade dos sócios pelos negócios jurídicos da mesma. (SCHARDONG, Ademar. Cooperativa de Crédito – Instrumento de Organização Econômica da Sociedade – Porto Alegre: Rigel, 2002)

Pelos argumentos aqui expostos é que se defende a inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos contratos firmados entre Cooperativas de Crédito e seus associados, mesmo que sejam tidos como serviços de natureza financeira ou bancária.

5 Conclusão

Consoante afirmado no decorrer de trabalho para que a relação jurídico-obrigacional seja classificada como relação de consumo faz-se necessário a presença cumulativa de três elementos fornecedor, consumidor e produto/serviço.

Não obstante as Cooperativas de Crédito sejam instituições financeiras e prestem serviços aos seus associados de natureza financeira ou bancária, a relação estabelecida entre ambos não pode ser classificada como sendo uma relação jurídico-obrigacional de consumo porque lhe falta os seguintes elementos: Consumidor e Fornecedor.

Conforme já esclarecido o Cooperado não pode ser definido como consumidor porque ele acumula a condição de sócio e usuário da cooperativa de crédito fazendo jus inclusive a repartição do lucro no final de cada exercício financeiro.

Noutro giro a Cooperativa de Crédito também não pode ser considerada fornecedor, porque ao prestar os serviços aos seus associados o faz como mandatários dos mesmos e sem o intuito de auferir lucro.

Portanto inexistindo fornecedor e consumidor impossível classificar a relação jurídico-obrigacional como sendo de consumo, afastando-se por conseguintes a incidência de toda e qualquer norma contida no Código de Defesa do Consumidor as relações estabelecidas entre Cooperativas e Cooperativados.

As relações estabelecidas entre Cooperativas e Cooperativados denominam-se “ato cooperativo”.

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Referências

BRAGA, Paulo R C. Aspectos Jurídicos das Cooperativas de Crédito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2005, Capítulo 12

BRASIL. Lei nº 5764, de 16 de dezembro de 1971. Define a Política Nacional de Cooperativismo, institui o regime jurídico das sociedades cooperativas, e dá outras providências Diário Oficial da União, Brasília, 16 de Dez. 1971.

BRASIL. Lei nº 8078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de set. 1990.

SCHARDONG, Ademar. Cooperativa de Crédito – Instrumento de Organização Econômica da Sociedade – Porto Alegre: Rigel, 2002.

WALD Arnold. Da natureza e do regime jurídico das Cooperativas e do sócio demitido que se retira da sociedade. Revista dos Tribunais, v.84, n 771, p.63-72, 1995

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1 Art. 5° As sociedades cooperativas poderão adotar por objeto qualquer gênero de serviço, operação ou atividade, assegurando-se-lhes o direito exclusivo e exigindo-se-lhes a obrigação do uso da expressão "cooperativa" em sua denominação. Parágrafo único. É vedado às cooperativas o uso da expressão "Banco”.

2 Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

3 Art. 79. Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais.

Parágrafo único. O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria.

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* Nair Eulália Ferreira da Costa é sócia do escritório Ivan Mercêdo Moreira Sociedade de Advogados. Bacharela em Direito pela PUC Minascom Especialização (Pós-Graduação lato sensu) em Direito Processual pelo Instituto de Educação Continuada na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

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