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A nova lei de detração penal: dúvidas interpretativas e o "jeitinho brasileiro"

Dúvidas interpretativas e o "jeitinho brasileiro".

30/11/2012

É muito provável que em breve o ordenamento jurídico penal brasileiro receba uma nova lei que introduz significativas mudanças nas condutas impostas ao juiz quando da prolação da sentença penal condenatória.

Trata-se de projeto de iniciativa da Presidência da República e já aprovado, sem mudanças de texto, na Câmara dos Deputados (projeto nº 2.784/2011) e no Senado Federal (projeto nº 93/2012), tendo como objeto promover alterações no Código de Processo Penal no sentido de determinar que a detração seja considerada pelo juiz que proferir a sentença condenatória. A nova lei, que deverá ser sancionada nos próximos dias, contém apenas dois artigos, prescrevendo em seu artigo 1 º (não incorporado a nenhuma codificação) que a detração deverá ser considerada pelo juiz sentenciante; estabelecendo, no artigo 2º, alterações no texto do artigo 387 do Código de Processo Penal, das quais a mais relevante é a previsão de que “o tempo de prisão provisória, prisão administrativa ou internação será computado para fins de determinação do regime inicial de pena privativa de liberdade”.

Este projeto de lei faz parte de um conjunto de medidas planejadas pelo Ministério da Justiça para a melhoria do sistema penitenciário, denominado Programa Nacional de Apoio ao Sistema Prisional, e teve o específico propósito de abreviar a soltura de condenados que tenham aguardado a prolação da sentença penal com privação da liberdade. A ideia foi dotar o julgador do processo de conhecimento de poder para realizar a detração, antes conferidos apenas ao juiz da execução, a fim de que sejam evitadas situações em que apenado “tenha que aguardar a decisão do juiz da execução penal, permanecendo nesta espera em regime mais gravoso ao que pela lei faz jus”, conforme consta da exposição de motivos.

Penso que a nova lei vai exigir dos aplicadores do Direito um certo esforço interpretativo, de modo a ser recepcionada no sistema normativo sem provocar impactos não planejados na origem do projeto, em especial porque são perceptíveis imperfeições técnicas que podem conduzir a alcances normativos indesejáveis ao interesse social.

A detração penal é instituto típico do execução penal e de conceito bastante conhecido, constituindo-se no direito do sentenciado ao cômputo do tempo de prisão processual, em qualquer de suas modalidades, no quantum da pena a que ficou sujeito no título executivo penal. Este tempo, decorrido durante o processo de conhecimento, é considerado como uma antecipação da pena definitiva imposta na sentença, procedendo-se o respectivo desconto da pena final aplicada na sentença e consignada na guia de execução penal.

A inovação mais importante do projeto é, sem dúvida, a ampliação do alcance da jurisdição do juiz do processo de conhecimento, que passa a estar dotado do poder-dever de realizar a detração penal pena já na sentença. O problema que ouso antever na aplicação da lei nova é gerado pelas alterações promovidas no § 2 º do artigo 387 do CPP, pois no texto determina-se que o tempo de prisão processual deva ser considerado na determinação do regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade, promovendo-se assim uma indevida confusão entre institutos penais distintos, quais sejam: a detração e o regime de cumprimento da pena.

A determinação do regime inicial de pena está entre os últimos pronunciamentos feitos pelo juiz no complexo de atividades a serem desenvolvidas no capítulo da dosimetria da pena na sentença condenatória. Conforme determina o artigo 110 da LEP, o juiz sentenciante, após determinar a pena final aplicada ao réu, deverá estabelecer, com base neste quantum de pena, o regime inicial de cumprimento segundo os parâmetros previsto no artigo 33 do Código Penal. Defendo que os dispositivos legais por últimos citados, que não sofreram qualquer alteração textual nesta micro-reforma legal, não devem também sofrer qualquer restrição de alcance em face de possíveis interações interpretativas com a nova lei. Ou seja, o juiz deve continuar determinando o regime inicial de cumprimento com base na pena final aplicada na sentença, não devendo considerar neste momento a “nova detração penal” advinda da lei .

A partir da vigência da lei nova, o juiz da sentença estará obrigado a dedicar um capítulo do julgado a reconhecer o direito do réu à progressão de regime, caso tenha ele tempo de prisão processual suficiente para tanto, fazendo neste capítulo específico da sentença a detração da prisão processual já cumprida. Com este procedimento, tem-se preservada a separação entre as atividades judiciais que já eram praticadas antes da lei nova e a nova atribuição do juiz sentenciante de realizar conduta antes a cargo do juiz da execução, qual seja: reconhecer a primeira progressão de regime a que o réu possa eventualmente ter direito, sendo que no contexto deste pronunciamento específico contido na sentença que estará inserida a operação de detrair a prisão preventiva já cumprida e dizer se o réu já tem direito a progredir do regime inicial. Porém, o regime inicial de cumprimento é determinado na sentença da mesma forma como era antes da lei nova, ou seja, com base na pena definitiva (e não nesta detraída da prisão preventiva já cumprida).

Este cuidado, antes de ser mero capricho procedimental, tem o objetivo de evitar situações confusas ou possíveis repercussões indesejadas do alcance da lei nova. Com efeito, como o regime inicial de cumprimento da penal é determinado justamente pela pena final aplicada, esta não deve ser influenciada pelo direito do réu à detração do tempo de prisão preventiva, pois isto significaria consagrar a detração como uma nova última etapa da própria dosimetria da pena, promovendo confusão entre institutos jurídicos distintos. Convém ressaltar que a pena definitiva tem várias outras funções importantes no sistema jurídico-penal além de servir de referência para o regime inicial da pena, dentre as quais, por exemplo, o cálculo do prazo de prescrição da pretensão punitiva ou executória. Assim, é de todo salutar que se mantenha perfeitamente conhecido na sentença penal condenatória qual a pena definitiva aplicada ao réu pela infração penal a que foi julgado para, em momento posterior na própria sentença, ser realizado o pronunciamento judicial sobre eventual detração penal e direito à progressão de regime.

Penso que a leitura da exposição de motivos feita pela Presidência da República ao encaminhar o projeto de lei deixa claro que não foi intenção do Executivo criar ou estender benefícios penais ou de execução penal, mas tão somente facilitar o acesso dos sentenciados ao direito à primeira progressão de regime, porém segundo as regras já vigentes no ordenamento jurídico penal, devendo assim ser rejeitada qualquer aplicação da lei nova que conduza a situações que se desviem deste objetivo, até mesmo pela possível criação de situações mais benéficas que gerariam grande volume de revisão de execuções em curso.

Por fim, importante registar que esta inovação legislativa, promovendo inesperada e repentina interação entre as jurisdições penais de conhecimento e executiva, parece partir do pressuposto de que a progressão de regime é um mero procedimento de cálculo aritmético de cumprimento de pena, ignorando que está condicionada por lei à aferição do mérito do apenado para passar de um regime mais gravoso a outro.

Ainda que a redação artigo 112 da LEP, desde a edição da lei 10.783/03, tenha passado a exigir para a verificação do mérito na progressão simples atestado de bom comportamento carcerário, a jurisprudência já vem entendendo que o juiz preservou a faculdade de exigir a demonstração de progresso do apenado no processo de ressocialização por meio de laudos técnicos (parecer criminológico), devendo tal faculdade ser observada pelos juízes na aplicação da lei nova, negando-se a progressão quando entenderem que o resguardo da ordem pública exige uma aferição mais acurada do mérito do apenado, incompatível com a fase da prolação da sentença condenatória.

Com efeito, a execução penal perderia completamente seu sentido de ser um processo de individualização da pena se a progressão de regime não pudesse estar sujeita a um juízo sobre a capacidade provável de adaptação do condenado a uma nova situação menos restritiva de liberdade, tendo em vista especialmente a necessidade de resguardar o convívio social de pessoas que ainda representem um perigo para a ordem pública.

Neste sentido, é necessário ter uma postura crítica sobre esta inovação legislativa, que mais se assemelha a velha prática dos governantes de recorrer ao uso de leis penais para resolver problemas que na verdade exigem investimentos e políticas públicas, neste caso, na melhoria do sistema prisional brasileiro.

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* Antônio Cláudio Linhares Araújo é promotor de Justiça no Rio Grande do Norte





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