Referendo, desarmamento e democracia
Marçal Justen Filho*
Por isso mesmo, existe um dever de cidadania quanto à participação. Os cidadãos brasileiros, que assistem como expectadores passivos os desvarios praticados nas instâncias estatais, têm o dever de participar. Não há democracia efetiva e real sem a atuação efetiva e comprometida dos cidadãos.
Daí a presente manifestação pessoal: sinto-me no dever de exteriorizar minha posição pessoal relativamente ao desarmamento.
E minha manifestação decidida é pelo “não” à proposta de vedação à propriedade privada de armas de fogo. Ressalto, desde logo, que não tenho arma de fogo, não tenho porte de arma e, como a maioria das pessoas, tenho um certo temor quanto à sua existência e manuseio. Também não sou sócio de fabricantes de armas e não tenho qualquer vínculo com alguma espécie de lobby do armamento. Não dou pareceres sobre esse tema e não os darei. Não tenho qualquer interesse econômico no assunto.
O que me move a defender o “não” é constatar que, respeitados os limites da generalização, a maioria das propostas pelo desarmamento se enquadra em dois grandes grupos. Há o grupo dos “sinceros-ingênuos” e há o grupo dos “não ingênuos-não sinceros”.
Os sinceros-ingênuos são aqueles que reprovam o elevado índice de violência na sociedade brasileira e aspiram desesperadamente por uma solução. Na sua ânsia por encontrá-la, apegam-se à ilusão de que a proibição da propriedade privada de armas de fogo eliminará ou reduzirá a violência. São inquestionavelmente sinceros. Com a maior boa-vontade, esperam e confiam em que a proibição produzirá o resultado que buscam. Mas acabam por incorrer na ingenuidade, porque não avaliam os efeitos práticos e reais do desarmamento. São ingênuos porque julgam que basta uma lei impondo uma proibição para que tal resulte na eliminação das condutas proibidas.
Mas há também os não-ingênuos. São aqueles que têm a consciência da existência de outras causas para a violência. Defendem o desarmamento não para reduzir a violência - se ela ocorrer será um efeito secundário bem-vindo. Mas as suas razões são outras, que não trazem claramente à luz do debate.
São não-sinceros porque buscam, por meio do desarmamento, outros objetivos, muito mais significativos do ponto de vista político. O intuito buscado é a eliminação da defesa legítima.
São aqueles que pensam que seus objetivos devem ser obtidos “no tapa”, o que pressupõe a eliminação das armas de fogo. Ou seja, pretendem a prevalência do direito do mais forte e dos mais numerosos, sem possibilidade de defesa ou contraposição das minorias.
Nada tenho a dizer aos componentes do segundo grupo. Quero me dirigir ao primeiro grupo, composto pelos sinceros. Peço-lhes que meditem seriamente sobre os riscos indesejados (por eles próprios) do desarmamento geral. Eu não tenho dúvida que, aprovado o desarmamento, haverá um efeito imediato de redução da violência. Afinal, um grande número de desatinos se resolverá sem tiros, ao contrário do que se passa atualmente.
No entanto, a evolução seguinte será a multiplicação da violência em virtude da incapacidade repressiva das forças policiais e da implementação das políticas dos não-sinceros.
Na seqüência, o crime organizado fornecerá armas para a ampliação de seu poder. E as forças policiais não disporão de efetivos para fazer frente a uma criminalidade muito mais poderosa do que ocorre no presente.
Ou seja, a situação ficará muito pior do que a atualmente existente. Nós não podemos esquecer que o que está ruim pode ficar pior.
Todos nós estamos de acordo quanto à insuportabilidade dos índices de violência. Ataquemos, então, as causas, com providências confiáveis. O conhecimento científico exclui a questão do desarmamento.
Mas, se for válido inovar com base em juízos meramente opinativos (tal como se passa com o desarmamento – as pessoas “acham” que isso vai reduzir a violência), então me sinto legitimado a formular uma proposta fundada em uma intuição pessoal. Subjetivamente, acho que uma das maiores causas de violência no Brasil é a consagração da impunidade assegurada às mais elevadas autoridades políticas. O indivíduo do povo constata que os mais altos dignatários são protegidos pela ordem jurídica contra a punição por condutas reprováveis.
Ora, diante da evidência de que um sujeito pode se eleger mediante utilização de “caixa dois” e, depois, renunciar ao mandato e se “aposentar”, sem qualquer punição - então por que um excluído não pode apropriar-se do patrimônio alheio valendo-se de qualquer meio, inclusive da violência? A violência física é a repetição, no âmbito da sociedade, das práticas reprováveis praticadas no seio do Estado.
Portanto, estou propondo a realização de um outro referendo, envolvendo os privilégios dos ocupantes dos mais altos cargos do Estado brasileiro. Proponho que a população brasileira seja consultada sobre a extinção das imunidades e prerrogativas previstas na Constituição para os ocupantes de cargos e funções públicas, que sejam desvinculadas do exercício da atividade política. Levanto, então, a bandeira do fim das imunidades e privilégios que transformam o Brasil numa espécie de monarquia eletiva, em que os novos “nobres” são os eleitos pelo sufrágio.
Subjetivamente, tenho certeza de que essa solução será muito mais eficiente no combate à violência do que a eliminação das armas dos particulares. Minha intuição é tão válida e muito mais lógica do que o “achismo” do fim das armas de fogo. Ou seja, por que não eliminar os odiosos privilégios dos poderosos antes de extinguir os meios de defesa dos particulares?
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* Advogado do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados
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