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Referendo, desarmamento e democracia

A próxima realização do referendo sobre o desarmamento representa um marco fundamental na democratização das relações entre Estado e sociedade brasileira

5/10/2005


Referendo, desarmamento e democracia


Marçal Justen Filho*

A próxima realização do referendo sobre o desarmamento representa um marco fundamental na democratização das relações entre Estado e sociedade brasileira. Em todos os países democráticos, é usual a consulta à Nação para avaliação direta da orientação a ser adotada em temas de interesse coletivo relevante. O que se espera, por isso, é que o presente referendo não se configure como um evento anormal, utilizado pelos governantes apenas como instrumento de legitimação de decisões já escolhidas de antemão.

Por isso mesmo, existe um dever de cidadania quanto à participação. Os cidadãos brasileiros, que assistem como expectadores passivos os desvarios praticados nas instâncias estatais, têm o dever de participar. Não há democracia efetiva e real sem a atuação efetiva e comprometida dos cidadãos.


Daí a presente manifestação pessoal: sinto-me no dever de exteriorizar minha posição pessoal relativamente ao desarmamento.

E minha manifestação decidida é pelo “não” à proposta de vedação à propriedade privada de armas de fogo. Ressalto, desde logo, que não tenho arma de fogo, não tenho porte de arma e, como a maioria das pessoas, tenho um certo temor quanto à sua existência e manuseio. Também não sou sócio de fabricantes de armas e não tenho qualquer vínculo com alguma espécie de lobby do armamento. Não dou pareceres sobre esse tema e não os darei. Não tenho qualquer interesse econômico no assunto.

O que me move a defender o “não” é constatar que, respeitados os limites da generalização, a maioria das propostas pelo desarmamento se enquadra em dois grandes grupos. Há o grupo dos “sinceros-ingênuos” e há o grupo dos “não ingênuos-não sinceros”.

Os sinceros-ingênuos são aqueles que reprovam o elevado índice de violência na sociedade brasileira e aspiram desesperadamente por uma solução. Na sua ânsia por encontrá-la, apegam-se à ilusão de que a proibição da propriedade privada de armas de fogo eliminará ou reduzirá a violência. São inquestionavelmente sinceros. Com a maior boa-vontade, esperam e confiam em que a proibição produzirá o resultado que buscam. Mas acabam por incorrer na ingenuidade, porque não avaliam os efeitos práticos e reais do desarmamento. São ingênuos porque julgam que basta uma lei impondo uma proibição para que tal resulte na eliminação das condutas proibidas.

Mas há também os não-ingênuos. São aqueles que têm a consciência da existência de outras causas para a violência. Defendem o desarmamento não para reduzir a violência - se ela ocorrer será um efeito secundário bem-vindo. Mas as suas razões são outras, que não trazem claramente à luz do debate.

São não-sinceros porque buscam, por meio do desarmamento, outros objetivos, muito mais significativos do ponto de vista político. O intuito buscado é a eliminação da defesa legítima.

São aqueles que pensam que seus objetivos devem ser obtidos “no tapa”, o que pressupõe a eliminação das armas de fogo. Ou seja, pretendem a prevalência do direito do mais forte e dos mais numerosos, sem possibilidade de defesa ou contraposição das minorias.

Nada tenho a dizer aos componentes do segundo grupo. Quero me dirigir ao primeiro grupo, composto pelos sinceros. Peço-lhes que meditem seriamente sobre os riscos indesejados (por eles próprios) do desarmamento geral. Eu não tenho dúvida que, aprovado o desarmamento, haverá um efeito imediato de redução da violência. Afinal, um grande número de desatinos se resolverá sem tiros, ao contrário do que se passa atualmente.

No entanto, a evolução seguinte será a multiplicação da violência em virtude da incapacidade repressiva das forças policiais e da implementação das políticas dos não-sinceros.


Na seqüência, o crime organizado fornecerá armas para a ampliação de seu poder. E as forças policiais não disporão de efetivos para fazer frente a uma criminalidade muito mais poderosa do que ocorre no presente.

Por outro lado, inúmeras organizações políticas exercitarão arbitrariamente suas razões. E as forças policiais a tanto não se oporão, tal como já não se opõem presentemente.


Ou seja, a situação ficará muito pior do que a atualmente existente. Nós não podemos esquecer que o que está ruim pode ficar pior.

Todos os países do mundo subordinam a adoção de inovações legislativas relevantes a estudos científicos e a previsões sobre a evolução provável dos fatos. Ora, as estatísticas demonstram a ausência de relação entre o número de armas em residências privadas e o número de homicídios. Como justificar, então, que eliminar as armas conduziria à redução das mortes violentas? Em outras palavras, a vedação à propriedade privada de armas infringe o princípio da proporcionalidade.

Todos nós estamos de acordo quanto à insuportabilidade dos índices de violência. Ataquemos, então, as causas, com providências confiáveis. O conhecimento científico exclui a questão do desarmamento.

Mas, se for válido inovar com base em juízos meramente opinativos (tal como se passa com o desarmamento – as pessoas “acham” que isso vai reduzir a violência), então me sinto legitimado a formular uma proposta fundada em uma intuição pessoal. Subjetivamente, acho que uma das maiores causas de violência no Brasil é a consagração da impunidade assegurada às mais elevadas autoridades políticas. O indivíduo do povo constata que os mais altos dignatários são protegidos pela ordem jurídica contra a punição por condutas reprováveis.

Ora, diante da evidência de que um sujeito pode se eleger mediante utilização de “caixa dois” e, depois, renunciar ao mandato e se “aposentar”, sem qualquer punição - então por que um excluído não pode apropriar-se do patrimônio alheio valendo-se de qualquer meio, inclusive da violência? A violência física é a repetição, no âmbito da sociedade, das práticas reprováveis praticadas no seio do Estado.

Portanto, estou propondo a realização de um outro referendo, envolvendo os privilégios dos ocupantes dos mais altos cargos do Estado brasileiro. Proponho que a população brasileira seja consultada sobre a extinção das imunidades e prerrogativas previstas na Constituição para os ocupantes de cargos e funções públicas, que sejam desvinculadas do exercício da atividade política. Levanto, então, a bandeira do fim das imunidades e privilégios que transformam o Brasil numa espécie de monarquia eletiva, em que os novos “nobres” são os eleitos pelo sufrágio.

Subjetivamente, tenho certeza de que essa solução será muito mais eficiente no combate à violência do que a eliminação das armas dos particulares. Minha intuição é tão válida e muito mais lógica do que o “achismo” do fim das armas de fogo. Ou seja, por que não eliminar os odiosos privilégios dos poderosos antes de extinguir os meios de defesa dos particulares?
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* Advogado do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados










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