A legalidade da participação da sociedade civil organizada no referendo
Denise Hirao*
Paula Raccanello Storto**
Duas frentes parlamentares foram criadas, representando a dualidade de opiniões sobre o assunto1. A Frente Parlamentar por um Brasil sem Armas defende a resposta “sim”, em contraposição à Frente Parlamentar Legítima Defesa.
A legalidade da participação das organizações da sociedade civil na campanha pelo “sim” tem sido questionada pela Frente Parlamentar Legítima Defesa. Alega-se que o princípio da igualdade estaria sendo violado em eventos promovidos por instituições públicas, tese afastada em duas representações com liminar julgada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE)2.
Além disso, também se alega que a participação de certas ONGs afronta a Resolução do TSE nº 22.041, de 4 de agosto de 2005, cujo artigo 10 dispõe:
“Art. 10. É vedado à frente parlamentar receber, direta ou indiretamente, doação em dinheiro ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie, procedente de:
I - entidade ou governo estrangeiro;
II - órgão da administração pública direta e indireta, federais, estaduais ou municipais ou fundação mantida com recursos provenientes do poder público;
III - concessionário ou permissionário de serviço público;
IV - entidade de direito privado que receba, na condição de beneficiária, contribuição compulsória em virtude de disposição legal;
V - entidade de utilidade pública;
VI - entidade de classe ou sindical;
VII - pessoa jurídica sem fins lucrativos que receba recursos do exterior.”
Liberdade de expressão
O citado artigo 10 assemelha-se ao artigo 31 da lei dos partidos políticos, Lei 9.096/1995, assim como a leis que regulam as eleições.[3] Todas essas previsões buscam implementar o artigo 17, inciso II, da Constituição Federal, o qual deve orientar a interpretação. Segundo o dispositivo constitucional:
Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:
II – proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes”.
Esse artigo refere-se claramente aos partidos políticos e justificava-se como forma de coibir a interferência política de outros países no Brasil. O dispositivo teve origem numa época em que se temia a intervenção da estrutura de um partido comunista que recebesse recursos e ordens do exterior. Tendo em vista a abrangência do poder dos partidos políticos, que constituem a via primordial para o exercício de mandatos na esfera do Poder Legislativo e do Poder Executivo no Brasil, fundamentou-se a adoção de norma específica para a defesa da soberania nacional.
Outra é a situação verificada no referendo, instituto que se assemelha ao processo legislativo do Congresso Nacional4.O referendo combina elementos da democracia direta e da indireta: o Poder Legislativo aprova certo projeto de lei, autoriza a realização do referendo e o povo confirma ou não essa aprovação5.
A participação de ONGs buscando expressar seu posicionamento junto a parlamentares é perfeitamente lícita durante o processo legislativo, independentemente da proveniência de seus recursos.
Essa licitude está em consonância com o princípio da liberdade de expressão, previsto nos artigos 5º e 220 da Constituição Federal:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.”
Desse modo, a liberdade de expressão é um princípio constitucional que apenas poderá ser condicionado a outras disposições constitucionais. Como o artigo 17 da Constituição Federal se dirige somente aos partidos políticos, a proibição de doações só atinge aquelas que tenham o condão de fortalecer determinado partido.
Conclui-se, portanto, que, embora o artigo 10 da Resolução do TSE nº 22.041/2005 estabeleça vedação “à frente parlamentar” de receber contribuições procedentes de “pessoa jurídica sem fins lucrativos que receba recursos do exterior”, a proibição, em realidade, destina-se aos partidos políticos. Como as frentes são suprapartidárias, havendo inclusive parlamentares de um único partido em frentes diferentes, essa situação é impossível neste referendo.
Note-se que outra não poderia ser a interpretação pois a mencionada Resolução foi emitida pelo TSE como expressão de seu poder regulamentar, não podendo ir além das previsões da Lei e da Constituição Federal6.
No ensinamento de Celso Antônio Bandeira de Mello:
O texto constitucional brasileiro, em seu art. 5o, II, expressamente estatui que: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Note-se que o preceptivo não diz “decreto”, “regulamento”, “portaria”, “resolução” ou quejandos. Exige lei para que o poder público possa impor obrigações aos administrados. É que a Constituição brasileira, seguindo tradição já antiga, firmada por suas antecedentes republicanas, não quis tolerar que o Executivo, valendo-se de regulamento, pudesse, por si mesmo, interferir com a liberdade ou a propriedade das pessoas7.
Desse modo, o TSE apenas pode estabelecer normas que não inovem em relação ao estabelecido nas leis, sob risco de violação da Constituição federal. No presente caso, não poderia o Tribunal criar uma norma que vedasse o recebimento de contribuições para as frentes parlamentares em referendos quando a lei apenas proíbe o benefício aos partidos políticos em eleições.
Interpretação teleológica
Ainda que a tese acima fosse completamente rechaçada, seria necessário interpretar a Resolução do TSE nº 22.041/2005 levando-se em consideração a finalidade da norma que regulamenta.
O texto do dispositivo constitucional deixa claro que sua finalidade é a proteção dos princípios que enumera em seu caput e, em especial, a soberania nacional. Nesse sentido, ensinam Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins:
Este inciso é uma decorrência do estipulado no caput do artigo, quando diz que a criação dessas associações resguardará, entre outros princípios, a soberania nacional.
O fato de receber recursos financeiros de entidades ou governos estrangeiros já evidenciaria uma dependência e mesmo uma subordinação a esses, o que tornaria o partido político uma cabeça de ponte de potências estrangeiras dentro do território nacional. Portanto o inciso proíbe tanto o recebimento de recursos financeiros, o que levaria a uma subordinação implícita, quanto a expressa posição de subalternidade (...).
É óbvio que a mera afinidade ideológica não gera essa prescrita subordinação, mesmo porque as ideologias são relativamente poucas e de uma forma ou de outra todos os partidos, na medida em que pretendam ter um apelo ideológico, devem filiar-se a uma dessas correntes mundiais de pensamentos e de ação8.
A adequada interpretação do artigo 10 da Resolução do TSE nº 22.041, de 4 de agosto de 2005, deve levar em consideração a finalidade da norma, qual seja, a proteção da soberania nacional.
Nesse sentido, nem todas as pessoas jurídicas sem fins lucrativos que recebem recursos do exterior estariam proibidas de aportar recursos às frentes parlamentares.Apenas quando o recebimento de recursos do exterior caracterizar subalternidade será proibida essa espécie de doação.
Em geral, os recursos advindos de instituições baseadas no exterior são destinados a projetos específicos, inexistindo cláusulas que estabelecem vínculo institucional orgânico entre a ONG e a financiadora. Ausente a subalternidade, afasta-se a aplicação do referido artigo 10.
Destaque-se, ainda, que a autonomia de diversas organizações fica evidente por meio de seus princípios e programas de ação, os quais não raro demonstram que o posicionamento em relação ao referendo foi adotado antes do recebimento de qualquer recurso do exterior.
De outro lado, tem sido considerada legal a contribuição de empresas multinacionais às frentes parlamentares. Desse modo, as representantes das multinacionais que produzem ou comercializam armas de fogo – estas, sim, subordinadas ao interesse de suas sedes estrangeiras – podem livremente contribuir para a campanha em prol do “não”.
Não se pode admitir que, sob a intenção de garantir igualdade entre as duas frentes parlamentares, uma Resolução do TSE acabe por proibir a livre manifestação do pensamento em nosso país.
Ora, se a proibição do comércio de armas de fogo será levada à manifestação popular, muito se deve à atuação das organizações não-governamentais, que há anos atuam legalmente formulando alternativas para o combate à violência, incentivando, inclusive, o desarmamento. E, justamente quando estas organizações conseguem a importante vitória de levar o tema a amplo debate democrático, que se seguirá de decisão popular sobre o tema, nada deve impedir a livre discussão de idéias com a sociedade em geral.
Conclusões
A interpretação do artigo 10 da Resolução do TSE nº 22.041/2005 deve ser feita à luz dos princípios constitucionais pertinentes e levando-se em conta seu caráter regulamentar, de norma que não foi emitida pelo Poder Legislativo.
Em primeiro lugar, deve-se considerar que o alcance do princípio da liberdade de expressão apenas pode ser delimitado por outras normas constitucionais. A disposição do artigo 17 da Constituição federal proíbe apenas o recebimento de certas doações destinadas aos partidos políticos, entre os quais não estão incluídas as frentes parlamentares constituídas para este referendo. Desse modo, as instruções emitidas pelo TSE, como a Resolução do TSE nº 22.041/2005, não alcançam as ONGs que apóiam as frentes parlamentares.
Além disso, o artigo 17 da Constituição Federal tem como finalidade proteger a soberania nacional. Nesse sentido, a interpretação teleológica da referida resolução afasta a aplicação da vedação estabelecida pela resolução a essas ONGs, visto que elas não representam qualquer risco para a soberania nacional.
Conclui-se, portanto, que a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional não proíbem a colaboração das organizações não-governamentais que recebem recursos do exterior às frentes parlamentares constituídas por ocasião do referendo9.
A proibição do comércio de armas de fogo e munições será o primeiro tema a ser submetido a referendo desde a promulgação da Constituição de 1988. Trata-se de um mecanismo de democracia direta, por meio do qual se expressa a soberania popular10, a ser utilizado para discutir um dos problemas que mais afligem a população brasileira: a violência.
Neste momento fundamental para a consolidação da democracia no Brasil, é primordial que se garanta a liberdade de expressão.
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1Ato da Mesa do Congresso Nacional, 20 de julho de 2005. Art. 1º. Para a realização do referendo previsto no § 1º do art. 35 da Lei nº 10.826, de 2003, sobre a comercialização de armas de fogo e munição no território nacional, poderão ser registradas pela Mesa do Congresso Nacional duas frentes parlamentares que representarão a dualidade de correntes de pensamento.
2Em recente decisão, o ministro José Delgado negou liminar à Frente Parlamentar Pelo Direito da Legítima Defesa, que queria impedir a realização de videoconferência transmitida pelo Interlegis, favorável à proibição do comércio de armas de fogo. Segundo notícia extraída do website do TSE: “‘Não visualizo ofensa à legislação eleitoral que abra espaço para concessão da liminar. A liberdade do debate vinculada às grandes questões do interesse nacional deve ser assegurada’, observou o ministro José Delgado em seu despacho. Os advogados da Frente Pelo Direito da Legítima Defesa sustentaram em representação (RP 785) ajuizada no Tribunal que o evento, promovido pela Frente Parlamentar Por um Brasil sem Armas era uma afronta ao princípio da igualdade de oportunidades entre os concorrentes do referendo de 23 de outubro próximo. Ao apreciar o processo, o ministro José Delgado afirmou que não existia prova de participação direta da Frente Parlamentar.” Fonte: https://www.tse.gov.br, visitada em 31 de outubro de 2005. Ver também Representação nº 781, relator Marcelo Henriques Ribeiro de Oliveira, decisão de 12 de agosto de 2005.
3Por exemplo, o artigo 24 da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997.
4“Processo legislativo é um conjunto de atos preordenados visando à criação de normas de Direito.” In SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros Editores, 15a Edição, 1998, São Paulo, p. 523.
5idem, p. 145-146.
6O TSE é competente para emitir “instruções” relativas ao referendo, nos termos do artigo 8o, III, da Lei nº 9.709, de 18 de novembro de 1998, que regulamenta a execução do disposto nos incisos I, II e III do art. 14 da Constituição Federal.
7MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Malheiros Editores, 17a Edição, 2004, São Paulo, p. 312.
8BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. 2º Volume, Editora Saraiva, 1989, São Paulo, p. 608-609.
9Vale destacar, ainda, que a Convenção Americana de Direitos Humanos prevê em seu artigo 13 o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Desse modo, se esse direito não for assegurado pelas instâncias judiciais domésticas, pode-se apresentar um pedido de medida cautelar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. E, antes de qualquer decisão, o tema pode passar a ser acompanhado pela Relatoria de Liberdade de Expressão da Comissão.
10Constituição Federal, art. 14.
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*Advogada e mestre em Direito pela Universidade de Notre Dame (EUA), sócia do escritório Rubens Naves Santos Jr.
**Advogada e sócia coordenadora da Área de Terceiro Setor do escritório Rubens Naves Santos Jr.
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