Migalhas de Peso

Habeas corpus: uma perigosa volta ao passado

O nosso STF não pode, em plena democracia, ser a madrasta da liberdade alheia e amesquinhar o remédio heroico.

17/10/2012

Da lembrança de Nelson Câmara sobre a eficaz utilização do habeas corpus como instrumento de libertação dos escravos (O advogado dos escravos: Luiz Gama, ed. Lettera.doc, 2010), passando pelos truculentos episódios políticos da República Velha, que levaram Rui Barbosa, em inúmeras oportunidades, ao Supremo Tribunal Federal para conjurar violências (A História das Constituições Brasileiras– 200 anos de luta contra o arbítrio, Marco Antonio Villa, ed. Leya, 2011), até o importante registro de Louis Begley sobre o manejo do habeas corpus nos Estados Unidos para garantir o devido processo legal aos presos na Base Naval de Guantánamo (O caso Dreyfus: Ilha do Diabo, Guantánamo e o Pesadelo da História, ed. Companhia das Letras, 2010), permanece viva a ideia de que o habeas corpus é a mais eficaz garantia contra os abusos do poder e contém o que há de mais precioso para o cidadão.

Na nossa história recente, foi por meio do habeas corpus, também conhecido como remédio heroico, que se conseguiu quebrar a espinha dorsal de uma maneira policialesca de se investigar: prender e não permitir que os advogados tivessem acesso aos autos do inquérito e prender temporariamente como forma de facilitar a obtenção de confissões. A generalização de escutas, muitas vezes abusivas, também foi combatida por meio do habeas corpus.

Como lucidamente advertiu o ministro Gilmar Mendes no julgamento do habeas corpus número 91.514-1, concedido no caso da famigerada Operação Navalha para revogar a prisão preventiva de um dos investigados, "a proteção dos cidadãos no âmbito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole autoritária". Em outra passagem, realçou que a correta aplicação das garantias constitucionais "é que permite avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito e distinguir civilização de barbárie". Numa frase, o habeas corpus é importante para controlar o devido processo legal e afastar arbitrariedades e caprichos de delegados de polícia, passando por juízes e até tribunais.

Erro reeditado

A despeito de sua importância como meio de defesa do cidadão contra o arbítrio estatal, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal está ditando nova jurisprudência: a proibição da impetração direta de habeas corpus na Corte. Para espanto geral, reedita o famigerado AI-6 (Ato Institucional nº 6), de 1º de fevereiro de 1969, com o qual se introduziu um complemento ao disposto no art. 114, II, a, da Constituição Federal de 1946, de modo a vedar "o recurso ser substituído por pedido originário". Com isso, o advogado que tiver o habeas corpus negado pelo STJ terá de aguardar a publicação do acórdão para interpor recurso. Tudo muito demorado e favorecedor da falta de controle e, portanto, do arbítrio.

Compreendia-se que na ditadura se quisesse manietar a ação do STF para afastar constrangimentos ilegais. Mas a Constituição democrática de 1988, embora preveja o recurso ordinário em habeas corpus, não repetiu a vedação do AI-6. É tenebroso que o STF, depois de quase 25 anos, o ressuscite em pleno período democrático.

Seria de se perguntar a quem interessa a tramitação mais lenta do habeas corpus. Certamente aos que cometem abusos, mas junto com esses não nos esqueçamos dos que constroem a chamada "jurisprudência defensiva". Como dizia Humberto Gomes de Barros, ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça, criaram-se pretextos para impedir a chegada e o conhecimento das ações dirigidas ao STJ. Se queremos uma justiça célere para combater a impunidade, não podemos, igualmente, nos descuidar dos meios rápidos e eficazes para a proteção do cidadão diante dos abusos dos agentes estatais.

Há uma dupla dimensão da segurança. De um lado, como proteção contra a criminalidade, mas, de outro, esse o alerta do professor Frederico Stellada, da Universidade de Milão, contra a agressão das autoridades. O habeas corpus, entre nós, tem sido historicamente o grande instrumento que resguarda o cidadão de abusos praticados por agentes do sistema penal, de policiais a juízes, passando por membros do Ministério Público e até agentes do sistema penitenciário. O nosso STF não pode, em plena democracia, ser a madrasta da liberdade alheia e amesquinhar o remédio heroico.

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* Alberto Zacharias Toron é advogado criminalista, do <_st13a_personname productid="em São Paulo">escritório Toron, Torihara e Szafir Advogados, mestre e doutor em Direito pela USP. 

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