Como todos criminalistas brasileiros já sabem, surpresos e entristecidos, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal
“reformou seu entendimento para não mais admitir habeas corpus que tenha por objeto substituir o Recurso Ordinário (...) (RHC). Segundo o entendimento da Turma, para se questionar uma decisão que denega pedido de HC, em instância anterior, o instrumento adequado é o RHC e não o habeas corpus.
A mudança ocorreu durante o julgamento do Habeas Corpus (HC) 109.956-PR, quando, por maioria de votos, a Turma, acompanhando o voto do relator do processo, Ministro Marco Aurélio, considerou inadequado o pedido de habeas corpus de um homem denunciado pela prática de crime de homicídio qualificado, ocorrido na cidade de Castro, no Paraná. A Turma também entendeu que as circunstâncias do caso concreto não viabilizavam a concessão da ordem de ofício. (...) Segundo o Ministro Marco Aurélio, relator, há alguns anos o Tribunal passou a aceitar os habeas corpus substitutivos de recurso ordinário constitucional, mas quando não havia sobrecarga de processos que há hoje” (site do STF de 8 de agosto de 2012).
A Ministra Rosa Weber, a Ministra Cármen Lúcia e o Ministro Luiz Fux acompanharam o Ministro Marco Aurélio.
O presidente da Turma, Ministro Dias Toffoli, divergiu enfaticamente, proclamando:
“Desde o Código Processual Penal do Império é previsto que sempre que um Juízo ou Tribunal se depare com uma ilegalidade, ele conceda [a ordem], mesmo que de ofício e mesmo em autos que não sejam de matéria criminal. Eu não vejo como colocar peias à viabilização do acesso do habeas corpus como substitutivo do recurso ordinário” (site do STF de 8 de agosto de 2012).
A questão começou a ser discutida quando a Primeira Turma julgou o HC 108.715, oportunidade em que o Ministro Marco Aurélio, como relator, reclamou da quantidade excessiva de habeas corpus que o STF e o STJ vinham recebendo, em detrimento do número expressivamente pequeno de recursos ordinários de habeas corpus.
Não foi necessária mais do que essa manifestação, por maioria de votos, de uma das Turmas do STF, para que o STJ passasse a seguir, poucos dias depois, a orientação de nossa Suprema Corte (HC 239.550-RJ, Rel. Ministra Laurita Vaz, julgado em 18.9.2012).
Nada mais certo, diga-se de passagem, porque o STF é o STF, e ponto final. Pode operar, doa a quem doer, uma “viragem de jurisprudência”, e compete aos jurisdicionados, especificamente quando o tema é o habeas corpus – o “remédio heroico” disponível a todo cidadão, advogado ou não – compete a eles, pobres mortais, tentar desvirar o que foi lamentavelmente virado...
Todos sabem do respeito e da admiração – por sinal muito merecidos – que devotamos ao Ministro Marco Aurélio, mas, num Estado Democrático de Direito, a crítica e o debate são benéficos: de uma forma ou de outra, colaboram para o aprimoramento das instituições.
Sendo assim, apressamo-nos em dizer que a Primeira Turma do STF trocou seis por meia dúzia: no lugar dos habeas corpus substitutivos surgirão os recursos ordinários de habeas corpus. Esses recursos são demorados, ainda que juízes e serventuários da justiça não sejam tardinheiros. Consomem muito tempo até que possam ser processados e julgados pelos tribunais superiores. Terão que aguardar a publicação do acórdão e tantas vezes a declaração de votos vencidos e por aí afora.
Ademais, o STF, no passado, não decidiu simplesmente aceitar os habeas corpus substitutivos porque tinham poucos processos em pauta. Lembramo-nos bem de que foi um voto (parcialmente citado logo abaixo) muito lúcido e expressivo do Ministro Moreira Alves o responsável por essa expansão dos benefícios do habeas corpus.
O que se discutiu outrora foi a importância da liberdade individual, não apenas de locomoção, mas afetada por qualquer coação ilegal. Constatada esta, independentemente de aguardar-se prazo para recurso, competiria, salutarmente, ao Poder Judiciário debelá-la urgentemente, pois é para isso que historicamente serve o habeas corpus.
O mais urgente e democrático recurso contra o ultraje da violência foi ampliado exatamente para estender, em caráter humanitário, o pálio sacrossanto da proteção judiciária por sobre todos indistintamente.
Esse instrumento essencial ao exercício do direito de defesa do cidadão, entretanto, foi, agora, menosprezado, deixando-se de lado um dos mais veementes apelos da Carta Magna, quando proclamou, no “Título I – Dos Princípios Fundamentais”, ter como um dos fundamentos “a dignidade da pessoa humana” (art. 1o, III, da CF).
Não conseguimos ver como possa a Constituição Federal ter como um dos fundamentos “a dignidade da pessoa humana” e concomitantemente não atentar para os recursos que a protejam, garantindo imediato direito de defesa ao cidadão contra atos de violência do Estado ou até mesmo de particulares, em determinadas circunstâncias (cárceres privados em nosocômios, sem necessidade terapêutica e contra a vontade do paciente; proibição de empregados deixarem propriedades rurais por serem devedores de seus patrões etc.).
Essas considerações gerais remetem nossa lembrança à triste época da ditadura militar, quando o Ato Institucional nº 6, em seu bojo, alterou a Constituição Federal de 1967, amesquinhando o alcance do habeas corpus, ao proibir, explicitamente, o uso de impetração originária em lugar de recurso:
“Art. 114 – Compete ao Supremo Tribunal Federal:
(...) II- julgar, em recurso ordinário:
a) os habeas corpus decididos, em única ou última instância, pelos Tribunais locais ou Federais, quando denegatória a decisão, não podendo o recurso ser substituído por pedido originário; (redação dada pelo Ato Institucional no 6, de 1969)” (Grifamos).
Em 1969, por ocasião da Emenda Constitucional no 1, a mesma proibição passou a constar do artigo 119, II, c, in fine, da CF.
O constituinte originário de 1988, ao enfrentar a questão, removeu tal limitação que era outorgada ao habeas corpus, assegurando, com isso, seu amplo espectro de garantia à liberdade individual.
O Ministro Moreira Alves foi bastante lógico em significativo voto sobre a matéria:
“(...) o habeas corpus originário é mero substitutivo do recurso ordinário (substituição essa que não é mais proibida pela Constituição atual, ao contrário do que ocorria na Emenda Constitucional no 1/69, em face do artigo 119, II, c, in fine)” (STF, HC 67.263-9).
Não parece adequado, portanto, que a mesma proibição imposta aos brasileiros pela ditadura militar, por meio de previsão constitucional expressa, possa, agora, ser reintroduzida em decorrência de mera interpretação jurisprudencial adversa. Tratar-se-ia de lamentável retrocesso.
É contra essas decisões, prejudiciais à mais simples, ampla e democrática medida amparadora da liberdade, que devemos erguer a nossa voz, na esperança de não sermos ouvidos apenas pelo eco.
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