1. Introdução
O Estado brasileiro utiliza a arbitragem desde tempos mais remotos. Para ficar somente no período republicano, teve, ao longo de sua história, conflitos territoriais com outros países, utilizando-se da arbitragem para a solução das controvérsias (v.g., Argentina, em 1900, Guiana Britânica, em 1904, e Bolívia, em 1909). Além disso, diversos Tratados internacionais dos quais o Brasil tomou parte elegeram a arbitragem como meio adequado para dirimir conflitos ou para dissipar interpretações jurídicas dispares, como o que se passou, v.g., com o Chile, em 1899, Haiti, em 1910 e Suiça, em 1924.
No tocante às relações jurídicas internas, observa-se que a arbitragem foi utilizada para dirimir controvérsias envolvendo estados federados (v.g. Estados do Rio de Janeiro e Espirito Santo, assim como Acre e Rondônia), e em litígios pontuais, como para fixar-se o montante indenizatório a ser pago aos herdeiros de Henrique Lage, relativamente aos bens incorporados ao patrimônio nacional, anteriormente de propriedade da Organização Lage e também do espólio de Henrique Lage.
No plano interno, contudo, a sua utilização não se deu de maneira sistemática e constante, quiçá em função do descontinuismo com que previsões constitucionais ora prestigiavam, ora desconheciam o instituto. Realmente, do exemplário constitucional basta recordar que a Constituição Federal de 1934 a prestigiou, igual destino, entretanto, não lhe conferindo a Constituição Federal de 1937.
Seja como for, em 1988 a Carta Constitucional prestigiou o instituto, ao atribuir indiscutível importância ao principio da solução pacífica de conflitos, nas relações internacionais (art. 4º, VII), assim como ao, expressamente, prever a possibilidade de sua utilização nas negociações coletivas envolvendo relações de trabalho (art. 114, Parágrafos 1º. e 2º).
No plano infraconstitucional, por sua vez, como se sabe, desde 1916 havia previsão no Código Civil acerca do compromisso arbitral, merecendo, ainda, a arbitragem, outras referências nos Códigos de Processo Civil de 1939 e 1973, preceptivos estes que as partes estabelecedoras de relações jurídicas de direito privado com alguma frequência se socorriam, para instalar o procedimento arbitral para dirimir as controvérsias que enfrentavam.
Mas, se assim se dera no âmbito privado, porque a arbitragem não era, com relativa frequência, utilizada nas controvérsias oriundas de relações jurídicas de natureza administrativa envolvendo a Administração Pública brasileira? Por que a arbitragem não era utilizada para dirimir conflitos nos domínios dos contratos administrativos? Examinemos estes aspectos.
2. A Administração Pública
A Administração Pública brasileira, tanto direta, quanto indireta, atua em estrita obediência ao princípio da legalidade, conforme assim determina o “caput” do art. 37, da Constituição Federal. Sendo assim, possui dependência extrema da lei, veículo introdutor de enunciados que propiciam a elaboração e a aplicação de normas jurídicas com o objetivo de, invariavelmente, proibir, permitir ou obrigar a adoção de determinadas condutas, sob pena da aplicação de sanções correspondentes.
As relações jurídicas das quais a Administração Pública toma parte, em regra, submetem-se a regime de direito público, no qual se aplica a máxima de que somente estará permitido aquilo que a lei assim o autorizar, todo o mais sendo vedado: recordemos que o Direito, classicamente, utiliza-se da classificação dual de Direito Público e Direito Privado, para melhor compreender sua própria gênese. No Direito Privado, como se sabe, há a prevalência da autonomia da vontade das partes no tocante às relações jurídicas das quais participem. No Direito Público, por seu turno, a ênfase se aloja no interesse público, e não na autonomia da vontade.1
Contratos dos quais a Administração Pública participe, e que tenham a sua roupagem integralmente configurada por lei, são presididas por valores, princípios e fatores publicistas, consubstanciando o chamado regime jurídico de direito público. É o caso, exemplificativamente, de contratos que envolvam a delegação da prestação de serviços públicos. Ainda que certos incômodos tragam à iniciativa privada contratada, como é o caso das chamadas cláusulas exorbitantes, as relações jurídicas portam de maneira evidente o objetivo finalistico de se voltar para a satisfação do interesse público.
Mas a Administração igualmente toma parte em contratos submetidos a regime jurídico de direito privado - denominados por parte da doutrina como Contratos da Administração -, nos quais prevalece a liberdade das partes para contratar. Ainda que mesmo assim faça incidir determinados valores publicistas – como o que se passa com o controle financeiro exercido pelos Tribunais de Contas competentes – há, indiscutivelmente, um ambiente de disposições e preceptivos de direito privado na formação das respectivas relações jurídicas. É o que se passa, v.g., nas contratações envolvendo o exercício de atividades econômicas, por parte da Administração Pública, caso, sobretudo, das sociedades de economia mista e empresas públicas.
Numa visão retrospectiva, observa-se que a Administração Pública brasileira, inicialmente, possuía natureza predominantemente patrimonialista (até 1930), burocrática (entre 1930 e 1967) e tecnocrática (entre 1967 e 1998), apresentando-se tecnoburocrática, com algumas iniciativas gerenciais (a partir de 1998).
No período patrimonialista, prevalecia a confusão entre o patrimônio público e o privado: tradicional a ideia de que a função fundamental do Estado nessa época era garantir empregos para a classe média pobre, ligada por laços de família ou de agregação aos proprietários rurais. (...) Formara-se “uma elite dirigente patrimonialista, que vivia das rendas do Estado e não das rendas das terras, e detinha com razoável autonomia um imenso poder político. A elite patrimonialista imperial, embora tivesse origem principalmente nas famílias proprietárias de terra, foi ganhando aos poucos autonomia na sua própria reprodução. O que a caracteriza é o saber jurídico formal, transformado em ferramenta de trabalho e instrumento de poder. A absoluta maioria dos ministros, conselheiros, presidentes de província e deputados era formada em direito”.2
A marcante característica da burocracia, à sua vez, residia na rígida hierarquização e na especialização das funções, ganhando proeminência na reforma realizada por Getúlio Vargas em 1938, com a criação do DASP – Departamento Administrativo do Serviço Público, no qual se concentrara o planejamento e a implementação do perfil da então nova administração pública, com a padronização das aquisições realizadas pela Administração Pública etc.
Prosseguindo, com ênfase desenvolvimentista e inaugurando um período da administração pública tecnocrática, editou-se o Decreto-lei no 200/1967, que sistematizou e delimitou o que se convencionou designar administração pública indireta, integrada por fundações, sociedades de economia mista, empresas públicas e autarquias. Intensifica-se a tecnocracia, com o distanciamento dos interesses políticos e a adoção de critérios objetivos e racionais, indiferente, de certa maneira, aos antagonismos sociais e às pressões da sociedade civil.
Finalmente, em 1988, com a atual Constituição Federal, limita-se “drasticamente a autonomia das agências e empresas do Estado, e retornando aos ideais da reforma burocrática de 1936”.3 Contudo, em 1995, identificando as amarras burocráticas como um entrave ao desenvolvimento do aparelhamento estatal, o Governo Fernando Henrique Cardoso procurou promover uma reforma de gestão no país, mediante a elaboração de um Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, com o propósito de implantar uma reforma gerencial, para tanto conjugando iniciativas, tanto no plano constitucional, com estímulo à Emenda Constitucional no 19/1998, como imaginando incrementar a presença de agências reguladoras, agências executivas e organizações sociais, tendo, ainda, a preocupação de promover modificações culturais nos personagens e nas entidades integrantes do Estado brasileiro.4
A reforma, todavia, enfrentou severas dificuldades na sua efetiva implementação5, enfraquecendo-se, razão pela qual, atualmente, observa-se que a Administração Pública brasileira, nos seus vários planos, nas mais variadas regiões geográficas, tanto direta como indireta, apresenta-se com predomínio da feição tecnoburocrática, não obstante registrem-se algumas iniciativas tímidas gerenciais.6
Exatamente no contexto da reforma do aparelhamento estatal, em que eficiência, custo Brasil, competitividade etc. eram palavras e expressões lançadas nos corredores, nas reuniões, nas plenárias e nos sucessivos estudos realizados nos domínios do Poder Executivo e do Poder Legislativo federal, é editada a Lei 9.307/1996, sistematizando e disciplinando a arbitragem no país, normativo esse subscrito pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso e pelo então Ministro Nelson Jobim, que, como se sabe, posteriormente viria a integrar o Supremo Tribunal Federal, onde, na condição de Ministro da Corte Constitucional, examinaria a constitucionalidade do próprio normativo que subscrevera, conforme mais adiante veremos.
3. A arbitragem
A partir da positivação na Lei 9.307/1996, conceitua-se arbitragem como o meio extrajudicial livremente ajustado por partes contratantes, no qual terceiros, designados árbitros, dirimem controvérsias e litígios envolvendo direitos patrimoniais disponíveis.
Não obstante não se confunda com a jurisdição estatal, possui – a arbitragem - o traço comum de dissipar litígios, numa visão finalistica de pacificar as relações intersubjetivas, especificamente, no ponto, aquelas estabelecidas a partir de um ajuste contratual.
A propósito, muita das vezes o proceder arbitral estabelece necessário e íntimo entrelaçamento com a jurisdição estatal, pois, sobretudo nas situações em que haja resistência por parte de litigantes recalcitrantes, deverá o Estado – no portal judiciário - fazer-se presente para exigir a obediência até então resistida.
A arbitragem obedece, obsequiosamente, a todos os consagrados princípios incidentes sobre os processos judiciais e administrativos, como o devido processo legal, o contraditório e o direito à ampla defesa, a imparcialidade dos julgadores, o necessário convencimento por parte daqueles que emitam sentença etc. Além disso, evidentemente respeita os limites pré-estabelecidos por sua lei de regência, logo, o princípio da legalidade, o da motivação e da isonomia entre as partes, dentre outros.
Até a edição da Lei 9.307/1996, ainda que dispositivos tivessem sido alojados no Código Civil de 1916, e nos de Processo Civil de 1939 e 1973, a nosso ver não se concebera, no país, um conjunto normativo em sentido completo disciplinando o instituto da arbitragem, assinalando todas as suas particularidades, suas nuances, seus procedimento e, claramente, distinguindo seus elementos ínsitos. Fragmentos jurídicos, portanto, já se encontravam alojados em normativos, faltando, contudo, conforme antes já se sublinhou, a disposição normativa sistemática acerca da arbitragem, compreendendo aspectos jurídicos sincrônicos e diacrônicos.
A par disso, ainda que no âmbito das relações contratuais genuinamente de direito privado o instituto tivesse relativa desenvoltura, a visão clássica administrativista então prevalecente via com reservas a possibilidade da Administração Pública submeter-se à arbitragem, como meio adequado para dirimir conflitos dos quais fosse parte.
Evidentemente, havia, sim, relações em que a arbitragem já se fazia presente, inclusive envolvendo a própria Administração Pública, como a opção costumeira por este meio adotada nos contratos de financiamento subscritos com agentes internacionais – caso, v.g., do BIRD - Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, verdadeira cláusula impositiva por parte dos emprestadores e financiadores estrangeiros, dado muitas vezes não depositarem incondicional confiança no Poder Judiciário dos mais diversos países nos quais atuam. Mas, aqui no Brasil, sempre que possível, optava a Administração Pública por prosseguir levando ao Poder Judiciário os conflitos dos quais tomasse parte.
Neste contexto, a introdução da Lei 9.307/1996 não foi de imediato aceita por toda a comunidade jurídica atuante nas relações jurídicas de direito público. Havia, à altura, perplexidade e alguma dose de receio de encontrar-se diante de vitandas inconstitucionalidades. Deveras, perplexidade, ao depararem com a emissão de sentença não sujeita a revisibilidade em segundo grau, o que poderia representar uma ofensa ao principio do devido legal sob a ótica substancial; receio doutra inconstitucionalidade, ao imaginar que a arbitragem ofenderia o princípio da inafastabilidade da jurisdição, consagrado no art. 5º, XXXV, da CF etc.
4. A decisão do Supremo Tribunal Federal e a segurança jurídica
Em 1995 foi distribuído Agravo Regimental, na Sentença Estrangeira 5.206-7, perante o Supremo Tribunal Federal, versando sobre requerimento apresentado por empresa com sede em Genebra, Suiça, no sentido de obter a homologação de laudo arbitral proferido em Barcelona, Reino da Espanha, relativamente a litígio existente entre a requerente e determinada empresa com sede no território brasileiro.
Incidentalmente, o Pleno apreciou e decidiu pela constitucionalidade de dispositivos sensíveis contidos na Lei 9.307/1996, que introduzira, conforme já se assinalou, de maneira detalhada e sistematizada, a arbitragem no Brasil, decidindo então os Srs. Ministros (a) por maioria de votos, que a manifestação de vontade da parte na cláusula compromissória, quando da celebração do contrato, e a permissão legal dada ao juiz para que substituísse a vontade da parte recalcitrante em firmar o compromisso não ofenderiam o artigo. 5º, XXXV, da CF; e (b) por unanimidade, que também a irrecorribilidade (art. 18) e os efeitos da sentença arbitral (art. 31) seriam absolutamente conformes à Carta Constitucional.
Tocara – o decisório – aspectos nevrálgicos alojados na intersecção do direito público e do privado. Dentre outros, admitira que o principio da inafastabilidade da jurisdição não fora baldado, mas, que, também, não detinha, à sua vez, compleição de natureza absoluta, com isto impedindo, juridicamente, que soluções extrajudiciais de composição em litígios pudessem ter lugar.
Lamentavelmente, a aludida decisão do STF somente foi publicada na imprensa oficial em 30.04.2004, isto é, pouco menos do que 10 anos após a sua distribuição (1995), o que contribuiu, involuntariamente, para manter o estado de insegurança jurídica que grassava no país, dado que os interessados observavam que a própria Corte Constitucional conduzia julgamento de longo e espinhoso curso, com pedidos sucessivos de vistas, arduamente decidindo o próprio futuro da arbitragem no país, na forma como fora concebida através da mencionada Lei 9.307/1996.
Todavia, a partir da formalização do resultado do julgamento (12.12.2001) - bem antes, portanto, da publicação do respectivo Acórdão -, viu-se que a intranquilidade jurídica que ainda remanescia em parte da comunidade jurídica foi, então, definitivamente dissipada, obtendo, o instituto, a partir da decisão de constitucionalidade da Corte Constitucional, vigoroso impulso para disseminar-se no país, sobretudo a partir do ânimo que se instalou no Poder Executivo e no Poder Legislativo, os quais, de par, introduziram, no ordenamento jurídico brasileiro, diversas leis autorizando a adoção da arbitragem como meio capaz e credenciado para dirimir controvérsias nas relações das quais a Administração Pública fosse parte.
Nas relações jurídicas envolvendo a Administração Pública, tanto interna como externamente, nas situações que afetam terceiros, é de capital relevância a consciência – e sobretudo a convicção da efetividade – de que a segurança jurídica encontra-se presente, regrando as condutas e as repercussões jurídicas concernentes aos sujeitos, objetos e suas relações.7
Assim, com segurança jurídica assegurada pela Corte Constitucional armou-se um ambiente mais ainda favorável para a arbitragem no Brasil.
5. A Administração Pública definitivamente adota a arbitragem
A edição de normas jurídicas autorizadoras da adoção de arbitragem, por parte da Administração Pública, de maneira sistemática, teve curso no final do século passado, sobretudo a partir do Governo Fernando Henrique Cardoso.8
Até que se obtivesse a aludida decisão do STF, cravando de constitucionalidade a Lei 9.307/1996, o legislador federal atuou com alguma parcimônia legiferante; contudo, a partir daí, imprimiu maior velocidade na possibilidade de adoção da arbitragem para a solução de litígios envolvendo relações de direito público, consagrando-o, ao final, definitivamente, como instituto passível de ser adotado pela Administração Pública brasileira para dirimir conflitos relativamente às relações jurídicas contratuais das quais tomasse parte.
Realmente, na fase inicial, que se inicia logo após a edição da Lei 9.307, de 23.09.1996 (a chamada Lei de Arbitragem), é editada a Lei 9.472, em 16.07.1997 (Lei Geral de Telecomunicações), a qual prevê, no seu art. 93, que o contrato de concessão indicará: (...) XV - o foro e o modo para solução extrajudicial das divergências contratuais.
Dias depois é editada a Lei de Petróleo e Gás, Lei 9.478/97, mais especificamente em 06.08.1997, através da qual o legislador atribuiu à Agência Nacional de Petróleo a autorização para que esta previsse, no seu regimento interno, os procedimentos a serem adotados para a solução de conflitos entre agentes econômicos, e entre estes e usuários e consumidores, com ênfase na conciliação e no arbitramento (art. 93). Consignou, ademais, a Lei 9.478/97, no seu art. 43, que o contrato de concessão deverá refletir fielmente as condições do edital e da proposta vencedora e terá como cláusulas essenciais: (...) X - as regras sobre solução de controvérsias, relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a conciliação e a arbitragem internacional.
O primeiro diploma legal, portanto, dizia respeito aos domínios da prestação de serviços públicos, no caso, por parte de delegados, segundo os termos e as condições constantes de contrato, logo, previamente previstos nos atos convocatórios licitatórios correspondentes. O segundo, inseria nos ambientes das relações econômicas igual possibilidade de solução extrajudicial para dirimir conflitos.
Nesta altura, dá-se a decisão histórica do STF, acolhendo a Lei 9.307/1996, decidindo pela sua adequação e conformidade à Constituição Federal. Consubstancia-se no marco assegurador da segurança jurídica sobre a qual já falamos, verdadeiro termo inicial da disseminação do instituto da arbitragem no país, então ampliando, consistentemente, a possibilidade de sua adoção por parte da Administração Pública, nos seus diversos planos.
A intensificação se observa, no plano federal, a partir da edição da Lei 10.233, em 05.06.2001, que disciplinando ampla gama de direitos e obrigações relativas a Transportes Aquaviários e Terrestres, estabelece, novamente em relação a contrato de concessão, que este deverá refletir fielmente as condições do edital e da proposta vencedora e terá como cláusulas essenciais as relativas a: (...) XVI – regras sobre solução de controvérsias relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a conciliação e a arbitragem (art. 35).
Reiterado prestígio é atribuído pelo legislador à arbitragem, através da Lei 10.438, de 26.04.2002, que disciplinando matéria atinente à Energia elétrica e respectivos players, estabelece que a Aneel – Agência Nacional de Energia Elétrica, ao proceder a determinada recomposição tarifária extraordinária ali especificada, prevê que a recomposição estará condicionada, nos termos de resolução da Aneel, à solução de controvérsias contratuais e normativas e à eliminação e prevenção de eventuais litígios judiciais ou extrajudiciais, inclusive por meio de arbitragem levada a efeito pela Aneel.
Prosseguindo, o legislador ao disciplinar a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE9, por meio da Lei 10.848, de 15.03.2004, agora chamando a Lei de Arbitragem expressamente pelo seu nome (ou pelo seu número, melhor dizendo), determinou, no seu art. 4o, § 5o, que as regras para a resolução das eventuais divergências entre os agentes integrantes da CCEE serão estabelecidas na convenção de comercialização e em seu estatuto social, que deverão tratar do mecanismo e da convenção de arbitragem, nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996. E, logo a seguir, asseverou, no § 6o, desse mesmo art. 4º, que as empresas públicas e as sociedades de economia mista, suas subsidiárias ou controladas, titulares de concessão, permissão e autorização, ficam autorizadas a integrar a CCEE e a aderir ao mecanismo e à convenção de arbitragem antes mencionados.
Em 30.12.2004, após sucessivas reedições, foi dada à nação brasileira a Lei 11.079, estabelecendo norma geral sobre a Parceria Público Privada – PPP, normativo esse que contribuiu para mais e mais aproximar o poder público da iniciativa privada na seara da prestação de serviços públicos e também na execução da infraestrutura correspondente. Tal diploma legal, prosseguindo na intensificação das referencias normativas à arbitragem, conforme disciplinada pela Lei 9.307/1996, expressamente autorizou, no seu art. 11º, que o instrumento convocatório da respectiva licitação poderia prever o emprego dos mecanismos privados de resolução de disputas, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, “nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996, para dirimir conflitos decorrentes ou relacionados ao contrato”.
Na esteira do aprimoramento legislativo no âmbito da prestação de serviços públicos, cuidou o legislador federal, no ano seguinte ao da edição da Lei da PPP (mais especificamente em 21.11.2005, através da Lei 11.196), de parcialmente modificar a Lei 8.987/1995 - Lei das Concessões amplamente utilizada nas privatizações e delegações ocorridas no final do século XX – agora para expressamente autorizar a Administração Pública a inserir previsão de que o contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996.
Logo a seguir, o legislador federal, ao editar a Lei de Franquias Postais, fez constar expressamente da Lei 11.668, isto, em 02.05.2008, considerarem-se cláusulas essenciais do contrato de franquia postal, as relativas ao foro e aos métodos extrajudiciais de solução das divergências contratuais.
Finalmente, ao menos nos limites das presentes considerações, o legislador federal estabeleceu, através da Lei 11.909, em 04.03.2009, relativamente ao transporte de gás natural, que o contrato de concessão deveria refletir fielmente as condições do edital e da proposta vencedora, tendo como cláusulas essenciais, dentre outras, as regras sobre solução de controvérsias relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a conciliação e a arbitragem.
Disse ainda mais: que a concessionária deveria submeter à aprovação da ANP a minuta de contrato padrão a ser celebrado com os carregadores, a qual deveria conter cláusula para resolução de eventuais divergências, podendo prever a convenção de arbitragem, “nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996”; e, em arremate no ponto sob destaque, que os contratos de comercialização de gás natural deveriam conter cláusula para resolução de eventuais divergências, podendo, inclusive, prever a convenção de arbitragem, “nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996”, esclarecendo que tal poderia ser adotado, mediante adesão, pelas empresas públicas e pelas sociedades de economia mista, suas subsidiárias ou controladas, titulares de concessão ou autorização.
Estes normativos colhidos do exemplário demonstram, à saciedade, que o legislador brasileiro definitivamente escolheu a arbitragem como o meio extrajudicial hábil e juridicamente seguro para dirimir controvérsias relativas a relações jurídicas envolvendo a Administração Pública brasileira, quer nos domínios da prestação de serviços públicos – com ênfase na Administração Pública direta e respectivos delegados -, quer no tocante ao das atividades econômicas das quais toma parte, com destaque para as entidades e sociedades integrantes da chamada Administração Pública indireta.
6. Administração Pública e a arbitragem nos dias de hoje
É indiscutível que, contemporaneamente, a arbitragem poderá ser utilizada para dirimir controvérsias e interpretações jurídicas conflitantes, no tocante a relações das quais a Administração Pública, direta ou indireta, nos seus diversos planos, faça parte.
Além de tal ser juridicamente possível, nos segmentos e nas relações contratuais que contam com tal previsão legal, a sua adoção revela-se de todo conveniente. Em súmula estrita, poderíamos assim sintetizar os motivos que, verdadeiramente, recomendam a sua adoção.
1º. – inexiste, atualmente, a insegurança jurídica que efetivamente se observara nos anos seguintes à edição da Lei 9.307/1996. Neste particular, merece destaque o Supremo Tribunal Federal que, em memorável decisão já antes examinada, decidiu pela constitucionalidade de dispositivos sensíveis contidos no aludido normativo;
2º. - a apreciação do conflito e a decisão a ser proferida o será por árbitros especializados na matéria e de indicação das partes interessadas, os quais serão exatamente escolhidos por reunirem, dentre outras qualificações, aptidões e virtudes, expertise para tanto, o que radicalmente a distingue da jurisdição estatal;
3º. – não obstante a Lei de Arbitragem admita a decisão monocrática, o julgamento arbitral, nas questões envolvendo Administração Publica, a nosso ver deverá ser conduzido por pluralidade de julgadores, em número não inferior a 3, com isto conformando-se, à justa, com a não aplicação do principio da revisibilidade, ao mesmo tempo em que permite aprimorar, dada a pluralidade de árbitros, a qualidade da decisão;
4º. - a velocidade com que se realizará a dirimência do litígio, se confrontada com o procedimento judicial, é intensamente superior. É irrita, à arbitragem, a protelação; celeridade é da sua essência, tanto que, expressamente, a Lei de Arbitragem estabelece o propósito de proferir-se o decisório em até 6 meses, ainda que readequações temporais possam ser implementadas. A formulação de recursos sucessivamente interpostos na seara judicial (agravos, nas suas diversas espécies, assim como recursos doutros matizes) não tem lugar na arbitragem, o que lhe confere celeridade indiscutível, com isto resolvendo-se, em prazos relativamente exíguos, litígios que demandariam, na esfera judicial, não menos do que praticamente uma década até obter-se o trânsito em julgado do respectivo decisório;
5º. – o procedimento arbitral dispensa tratamento isonômico entre as partes submetidas à arbitragem, inclusive em relação à Administração Pública, bem diferentemente do que se passa no procedimento judicial, em que há tratamento discriminatório amplamente mais favorável ao Poder Público, chegando-se, por vezes, a serem relevadas intervenções processuais extemporâneas dos representantes da Administração Pública que, no rigor formal, deveriam ser fulminadas pela preclusão;
6º. – tendo em vista que a arbitragem é um meio extrajudicial de solução de litígios, consubstancia-se ancora segura para a iniciativa privada, sobretudo estrangeira, que, por vezes, possui o receio de ver seus pleitos endereçados à Administração Pública brasileira apreciados e julgados pelo próprio Estado (no portal Judiciário), com um olhar que poderia, para alguns de seus integrantes, conter inclinações favoráveis ao Estado, logo, à Administração Pública litigante;
7º - na arbitragem a fixação de prazos procedimentais, em regra, deverá levar em conta as facilidades ou dificuldades enfrentadas pelas partes litigantes, com isto conferido prazos adequados e logicamente proporcionais à providencia a ser implementada, sobretudo no que atina à produção de provas, daí contribuindo, decisivamente, para que o fator temporal beneficie as partes, não se tornando, ao reverso, um óbice, conforme com certa frequência se observa na seara judicial;
8º. - revela-se, a arbitragem, extremamente útil e eficaz na solução de divergências interpretativas pré-litigiosas, presididas por sincera boa fé das partes envolvidas em tomar a solução mais adequada para o caso concretamente considerado, observáveis sobretudo em relação a contratos de longo curso – caso, v.g., de concessões de serviços públicos ou de obras e serviços de infraestrutura instrumentalizadoras dos serviços a serem delegados -, impedindo desgastes e rupturas desnecessárias entre as partes, ao mesmo tempo buscando e propiciando soluções e decisões expeditas; e,
9º. - a arbitragem muito facilita a atuação dos profissionais responsáveis pela defesa da Administração Pública, pois, como se sabe, o exercício da função administrativa submete-se a controle interno e externo rigorosos, os quais, muita das vezes e exatamente em função disso fazem com que determinados procederes sejam na prática utilizados para a própria proteção dos agentes atuantes no litígio e não em favor da sua própria dirimência, como o que se passa com a ordem precipitada para a propositura de medidas judiciais que poderiam ser evitadas, a formulação de pleitos incabíveis ou, como com alguma frequência se observa na formulação de recursos sobre matérias já decididas e com entendimento pacificado, inclusive, no limite, sumulados em caráter vinculante.
Mas, a adoção de arbitragem encontra limites. Além daqueles já previamente estabelecidos na lei de regência da arbitragem no país, há limites impostos e, de outro lado, prerrogativas asseguradas à Administração Pública, que transcendem à própria arbitragem, não obstante a ela igualmente sejam aplicáveis.
O primeiro deles é de que o julgamento arbitral deverá ser de direito, e não por equidade. A incidência do princípio da legalidade à Administração Pública é imposição constitucional (art. 37, caput), donde a nosso ver ser incogitável a não aplicação da legislação apropriada.
Em segundo, a confidencialidade das matérias levadas a julgamento deverá sofrer, no mínimo, algum tempero. Naquilo que for possível conservar-se sobre sigilo no procedimento arbitral, v.g., aspectos técnicos de equipamentos sensíveis à Administração Pública, procederes poderão ser tomados neste sentido, devendo, entretanto, dar-se publicidade do decisório e do seu teor, sob pena de infringência ao princípio da publicidade e transparência que, explicita e implicitamente, se alojam no art. 37, “caput”, da CF.
Em terceiro, direitos indisponíveis não podem frequentar o ambiente arbitral. Deveras, não só por a legislação específica assim não o permitir, mas porque o principio da indisponibilidade do interesse público assim o assegura, autorizando-se a disponibilidade tão somente nos limites pré-estabelecidos pela legislação aplicável, aliás bem ao talante destes corpos normativos que foram editados no país, conforme antes mencionados.
Em quarto, as relação jurídicas envolvendo a Administração Pública passíveis de serem objeto de arbitragem circunscrevem-se àquelas decorrentes de contratos ajustados, nos termos, aliás, da Lei 9.307/1996, o que, reversamente, afasta a aplicação em relação a aquelas que derivem da prática de atos administrativos, quer discricionários, quer vinculados.
Em quinto, o chamado mérito administrativo, ou seja, o juízo de conveniência e oportunidade da autoridade pública, especialmente no que atina a relações jurídicas contratuais, no que se refere ao seu núcleo central não poderá ser escrutinado pela arbitragem, assim como já não o é pela jurisdição estatal, exceção feita a atos que resultem ou possam resultar em ferimento de direito do administrado.
Por fim, mas sem exaurir os limites a serem observados, assegura-se à Administração Pública a aplicação, em concreto, das cláusulas exorbitantes, com fundamento nas normas legais correspondentes, dependendo, naturalmente, das previsões precedentemente contidas nos atos convocatórios e respectivos contratos.
Assim, em suma, observa-se que a arbitragem é, hoje, uma realidade também nas quadras do direito público, cada vez mais ocupando papel de destaque na solução de litígios e interpretações conflitantes nas relações jurídicas que envolvam a Administração Publica brasileira.
__________
1 Marcio Pestana, Direito Administrativo Brasileiro. Rio de Janeiro : Elsevier, 2012, 3ª. ed., p. 30.
2 BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Do Estado Patrimonial ao Gerencial. In: SACHS, Ignacy; WILHEIM, Jorge; PINHEIRO, Paulo Sérgio (orgs.). Brasil. Um século de transformações. São Paulo: Cia. das Letras, 2001, p. 228-230.
3 “Os dispositivos sobre a administração pública na Constituição de 1988 foram o resultado, por outro lado, de esforço deliberado dos grupos burocráticos que, como constituintes eles próprios ou sob a forma de grupos de pressão, entenderam que deviam completar a reforma de 1936. Embora muitos de seus membros estivessem comprometidos com a onda de clientelismo que ocorreu com o advento da democracia, não hesitaram, contraditoriamente, em influir para que a Constituição adotasse princípios burocráticos clássicos. A administração pública voltava a ser hierárquica e rígida, a distinção entre administração direta e indireta praticamente desaparecia. O regime jurídico dos funcionários passava a ser único na União, e em cada nível da Federação. As novas orientações da administração pública, que vinham sendo implantadas no país desde 1967, foram mais que ignoradas, destruídas, enquanto a burocracia aproveitava para estabelecer para si privilégios, como a aposentadoria com vencimentos plenos sem nenhuma relação com o tempo e o valor das contribuições e a estabilidade adquirida quase que automaticamente a partir de concurso público. Um grande mérito, porém, teve a Constituição de 1988: exigiu concurso público para a entrada no serviço público, assim reduzindo de modo substancial o empreguismo que sempre caracterizou o Estado patrimonialista.” BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Do Estado Patrimonial ao Gerencial. In: SACHS, Ignacy; WILHEIM, Jorge; PINHEIRO, Paulo Sérgio (orgs.). Brasil. Um século de transformações. São Paulo: Cia. das Letras, 2001, p. 243-244.
4 Marcio Pestana, Direito Administrativo Brasileiro. Rio de Janeiro : Elsevier, 2012, 3ª. edição, p. 24.
5 “Entretanto, estava claro também para mim que o Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, criado em 1995, não tinha poder suficiente para a segunda etapa da reforma: sua implementação. (...) O Mare foi fundido com o Ministério do Planejamento, passando o novo ministério a ser chamado Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Esse ministério, ao qual foi atribuída a missão de implementar a reforma gerencial, não deu, porém, a devida atenção à nova missão, exceto nas ações relativas à implementação do projetos do Plano Plurianual (PPA). O orçamento não foi diretamente relacionado com o programa de gestão da qualidade. A transformação de órgãos do Estado em agências executivas, ou dependendo do caso, em organizações sociais, não ganhou força. Os concursos públicos anuais para as carreiras de Estado foram descontinuados a títulos de economia fiscal.” Luiz Carlos Bresser Pereira, op. cit., p. 252-253.
6 Marcio Pestana, Direito Administrativo Brasileiro. Rio de Janeiro : Elsevier, 2012, 3ª. edição, p. 23.
7 Marcio Pestana, Direito Administrativo Brasileiro. Rio de Janeiro : Elsevier, 2012, 3ª. edição, p. 173.
8 Não obstante registrando-se que a Lei 8.630, de 26.02.1993 (Lei de Portos), editada no Governo Itamar Franco, já previra a possibilidade de utilização da arbitragem, para solucionar ligitios cuja natureza fora especificada na própria norma: “Art. 23. Deve ser constituída, no âmbito do órgão de gestão de mão-de-obra, Comissão Paritária para solucionar litígios decorrentes da aplicação das normas a que se referem os arts. 18, 19 e 21 desta lei. § 1° Em caso de impasse, as partes devem recorrer à arbitragem de ofertas finais. § 2° Firmado o compromisso arbitral, não será admitida a desistência de qualquer das partes. § 3° Os árbitros devem ser escolhidos de comum acordo entre as partes e o laudo arbitral proferido para solução da pendência possui força normativa, independentemente de homologação judicial”.
9 Pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, sob autorização do poder concedente e regulação e fiscalização pela Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, com a finalidade de viabilizar a comercialização de energia elétrica.
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* Marcio Pestana é doutor e mestre em Direito do Estado - PUC/SP. Professor de Direito Administrativo e Coordenador do Curso de Pós-Graduação de Direito Administrativo e Constitucional da FAAP/SP. Sócio Efetivo do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Árbitro da Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem CIESP/FIESP. Autor das obras O Princípio da Imunidade Tributária (RT), A Concorrência Pública na Parceria Público-Privada (PPP) (Atlas), A Prova no Processo Administrativo-Tributário e Direito Administrativo Brasileiro (Campus/Elsevier). Sócio do escritório Pestana e Villasbôas Arruda Advogados, em São Paulo e no Rio de Janeiro.
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