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Excesso de linguagem na sentença de pronúncia

O processo não é um palco onde os profissionais irão desfilar seus caprichos e fazer afirmações que dificultam o entendimento da causa.

13/9/2012

A 1ª Turma Do STF, julgando RHC (recurso Ordinário em Habeas Corpus)1, anulou decisão de pronúncia proferida por juiz do Tribunal do Júri, em razão do excesso da linguagem contida na sentença. Isto porque, ferindo a regra da imparcialidade, o julgador afirmou categoricamente que a autoria e a qualificação do crime estão devidamente comprovadas. Daí, como resultado da anulação, nova sentença deverá ser prolatada, observando a limitação do linguajar.

A linguagem jurídica utilizada pelos operadores do direito deve obedecer ao equilíbrio que ostenta na balança da deusa Têmis. O processo, formado pelo actum trium personnarum, não é um palco onde os profissionais irão desfilar seus caprichos e fazer afirmações que dificultem o entendimento da causa ou que comprometam a verdade a respeito de determinado fato. No instante em que o processo busca uma verdade, esta deve brotar dos embates e atritos das pretensões, deduzidas corretamente coram judice.

A sentença de pronúncia, pela sua natureza, é decisão interlocutória mista não terminativa, uma vez que encerra a fase do juditium accusationis e, se dada como procedente a pretensão acusatória, autoriza o encaminhamento do processo para ser submetido a julgamento popular. Sua importância reside na realização do juízo de admissibilidade da acusação, seguindo rigorosamente as regras processuais. “Essa função, salienta o sempre oportuno Tourinho Filho, é do próprio juiz togado. Ele somente poderá determinar seja o réu julgado pelo tribunal do Júri se estiver convencido, ante indícios veementes, de ter sido o réu o autor do crime”.2

O Código de Processo Penal, por sua vez, estabelece no artigo 413 “que o juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou participação”. Assim, o julgador não é movido pelo sistema da livre convicção e não emite também um julgamento de mérito. De uma forma bem técnica, objetiva, sem perscrutar a intensidade da volição, despojado de qualquer linguagem que seja inconveniente à causa, irá, com a fundamentação exigida, relatar quais os indícios considerados veementes que motivaram seu convencimento a respeito da autoria e materialidade. É a regra do tudo indica que, tudo leva a crer, da mera probabilidade e não a do caráter absoluto de certeza, que extrapola até mesmo a determinação legal.

Na decisão de pronúncia, bem esclarece Oliveira, o que o juiz afirma, com efeito, é a existência de provas no sentido da materialidade e da autoria. "Em relação à materialidade, a prova há de ser segura quanto ao fato. Já em relação à autoria, bastará a presença de elementos indicativos, devendo o juiz, tanto quanto possível, abster-se de revelar um convencimento absoluto quanto a ela. É preciso considerar que a decisão de pronúncia somente deve revelar um juízo de probabilidade e não de certeza".3

Em razão da limitação do campo de apreciação, que não pode resvalar no subjetivismo do juiz, pois não se trata de uma avaliação do mérito da causa, a decisão deve ser anunciada cum grano salis, sem qualquer invasão na esfera decisória dos jurados. E é sabido que, conforme o conteúdo do decisum, sua leitura em plenário poderá trazer dividendos probatórios para a acusação ou defesa, quebrando a espinha dorsal da imparcialidade judicial. Até mesmo quando o juiz aplica na sentença de pronúncia o princípio do in dúbio pro societate, remetendo o processo para o tribunal do Júri, de certa forma já antecipou uma decisão que, certamente, poderá ser explorada pela defesa no sentido de que a fragilidade probatória espalhou-se na lide em discussão.

O Direito é uma ciência interpretativa. Analisa o conteúdo do texto e o significado de cada vocábulo nele contido com a intenção de buscar um entendimento que represente a realidade que se pretende alcançar. A palavra é elástica, carregada muitas vezes de significados que ultrapassam seu conteúdo originário. E atrás das palavras vem o discurso entabulado pelo pensamento que, apesar de ter a intenção de descrever um fato de determinada forma, colide com uma interpretação em sentido contrário, que também encontra espaço para se ancorar no texto. O brocardo in claris cessat interpretatio é desprovido de qualquer valor científico, pois do texto, por mais lúcido que seja, pode-se extrair outra interpretação ou até mesmo colocar em dúvida os dizeres da originária. Com razão Maximiliano quando afirma que “a interpretação, que outrora parecia plácida, estagnada, é hoje um mar assaz agitado”.4

O princípio da imparcialidade que rege a jurisdição é calcado no equilíbrio não só de tratamento, mas também na utilização de vernáculo condizente com o trato da causa, de tal forma que a nenhuma das partes litigantes será concedido qualquer benefício interpretativo, sob pena da quebra da paridade e igualdade de armas e recursos. Na sentença de pronúncia o julgador deve captar do material probatório o conteúdo indiciário suficiente para autorizar a continuidade do julgamento, que irá bater às portas do Tribunal do Júri, seu juiz natural e o destinatário de todas as provas. Qualquer deslize na linguagem judicial poderá acarretar sérios e incorrigíveis prejuízos a uma das partes, pois o jurado, em razão de seu parco conhecimento jurídico e da relevância de sua decisão, para evitar qualquer discrepância em sua votação, poderá valer-se da conclusão do juiz togado, que dele é muito mais próximo e com funções equivalentes. Não se recomenda extrair os segredos que só se revelam com uma análise feita com olhos atentos numa apreciação mais acurada.

Dizer o julgador que a “autoria de um crime é certa e que está provado que o crime ocorreu por motivo fútil” representa para o juiz leigo uma decisão antecipatória com a segurança necessária, restando somente a votação dos quesitos. O juiz circula por uma linha tênue, que exige um malabarismo hermenêutico para desemaranhar o jogo complexo do tabuleiro processual.

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1 RHC 103078, rel. min. Marco Aurélio, julgado em 21/08/2012, Disponível em: https://migre.me/aoanF. Acesso em: 22 de agosto de 2012.

2 Tourinho Filho, Fernando da Costa. Processo penal, vol. 4. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 165.

3 Oliveira, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. São Paulo: Atlas, 2012, p. 723.

4 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 83.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP, mestre em Direito Público, doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde e é reitor da Unorp





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