Migalhas de Peso

Eliana Calmon, rebelde que fala

Ao mesmo tempo em que a ministra se tornou um ícone entre muitos, foi reprimida pelos tribunais superiores.

5/9/2012

A ministra Eliana Calmon, depois de dois anos de intenso trabalho na Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça, (CNJ), deixa o cargo, que tão dignamente soube exercer e valorizar; cidadãos comuns, magistrados, advogados, promotores, defensores públicos, delegados, servidores, enfim todos os operadores do direito lamentam sua saída.

Nossa homenagem à ministra é lançada, recordando as lições que deixa para benefício dos magistrados e para respeito da instituição.

A coragem e o destemor da Corregedora possibilitaram-lhe o enfrentamento das mais altas autoridades do país, do corporativismo do sistema judicial, transformando-a na maior responsável pelo combate à corrupção em todos os níveis e pela transparência dos serviços judiciais.

Os erros do Judiciário, verbalizados pela Corregedora, já eram do conhecimento do povo, que apenas sussurrava, porque não têm voz nem meios para fazer ecoar seus gritos de revolta e rebeldia.

O cidadão tomou ciência de que o Judiciário não está isento de defeitos, de corrupção, como qualquer outra instituição pública; a caixa preta, que envolvia o sistema e encobria as ilicitudes praticadas pelos “bandidos de toga”, é que fazia a diferença e foi aberta e mostrada suas entranhas.

A Corregedora apontou, apurou e puniu, corajosamente, casos escandalosos de corrupção e de desvio de função no Judiciário brasileiro; contribuiu, decisivamente, para retirar do seio da classe muitos “bandidos” que se escondiam atrás da toga e recebiam indevidamente o poder de julgar; enumerou e buscou retirar da magistratura privilégios que não são recomendáveis, porque fogem dos princípios constitucionais da igualdade de todos perante a lei.

No período no qual ocupou o CNJ abriu mais de uma centena de processos para investigar magistrados dos quais muitos foram afastados e outros banidos dos tribunais. Pela primeira vez foi preso um presidente de tribunal de justiça e, em função de voto da ministra, contrariando o entendimento do relator, um Corregedor de Justiça foi aposentado compulsoriamente.

Em outubro do ano passado, quando a ministra era questionada por suas seguras e corretas afirmações, levamos ao Pleno do Tribunal de Justiça da Bahia moção de solidariedade, aprovada por unanimidade.

Naquela oportunidade dissemos:

“Será que a investigação e punição de um ministro, aposentado compulsoriamente por atos de corrupção, não mostra verdade na afirmação da Corregedora? Será que a apuração e pena imposta a Presidentes de Tribunais, que serviram da toga para enriquecerem, não apontam o uso da veste para fins ilícitos? Será que o desembargador que extorquia serventuários para beneficiar filho de amante, não mostra que se abusa com a roupa preta para desvios de função? Será que o uso da atividade de um juiz de primeira instância por um magistrado de segundo grau, com objetivos de corrupção, não mostra ser verdadeira a afirmação da Corregedora?”

Dizia mais a nota:

“Quem de nós não sabe que uma denúncia contra um magistrado é recebida com muito desalento, má vontade mesmo”? Sendo assim, como fica o pobre que foi preso injustamente, o serventuário que respondeu a processo administrativo indevidamente?".

“O cidadão enjaulado pela fúria e arbitrariedade do julgador fica calado; o serventuário que não se dobrou aos caprichos do magistrado prefere afastar-se, porque terá imensas dificuldades para mostrar sua honestidade”.

“A caneta nas mãos de um juiz promove lesões mais graves e mais penosas que a arma de um bandido. O mau juiz arrasa a vida patrimonial e moral de um cidadão. E as Corregedorias não se diligenciavam para apurar as denúncias. Todos nós sabemos disso”.

“Exatamente, por isso que o CNJ pode interferir para “cumprimento dos deveres funcionais dos juízes”, ainda que concorrentemente com os órgãos estaduais; aliás, o Tribunal de Justiça da Bahia não pode por em dúvida essa assertiva, pois já abdicamos de nossa competência e encaminhamos para o CNJ processo administrativo disciplinar”.

Quem nega a afirmação da Corregedora de que o Judiciário está infestado de politicagem miúda, de decisões oferecidas em troca de indicações políticas; a realidade mostra que os favores de uns são compensados com premiações de outros; quem não assina embaixo, na declaração de que para ascender, na carreira de magistrado, é necessária aproximação com os políticos e a promoção depende exclusivamente de critério político.

Foi além a ministra: à imprensa declarou que chegou ao STJ através de padrinho político, mas acentuou que a ela ninguém cobra o “favor”, porque tratariam com “uma rebelde que fala”.

Eliana Calmon reconheceu que os magistrados “têm tendência a ficar prepotentes e vaidosos. Isso faz com que o juiz se ache um super-homem, decidindo a vida alheia”. Diz que “essas togas, essas vestes talares, essa prática de entrar em fila indiana, tudo isso faz com que a gente fique cada vez mais inflado. Precisamos ter cuidado para ter práticas de humildade dentro do Judiciário. É preciso acabar com essa doença que é a “juizite”.

Pouco se ouvia falar em sentenças, acórdãos vendidos! A transparência permite hoje enumerar os casos de magistrados que se submetem a esse crime tão grave.

Os princípios éticos foram banidos de nossa educação ao ponto de o desvio situar na afirmação de que o caminho melhor e cheio de glória é aquele que traz mais em menos tempo.

Será que não é verdadeira a afirmação da ministra de que o problema do Judiciário situa-se nos tribunais? E que os juízes de primeira instância têm a Corregedoria, que bem ou mal funciona, mas quem pune os desembargadores e ministros? Os próprios colegas investigam, apuram e será que irão punir com os votos exigidos de, no mínimo dois terços? A prática mostra que não, pois antes do CNJ não se constatava punição para desembargadores e ministros.

Quem já teve a coragem de afirmar que as associações são responsáveis pela defesa de prerrogativas da magistratura?

A AMB, a AJUFE, a ANAMATRA, a maioria dos Conselheiros do CNJ, alguns tribunais e mesmo ministros lançaram nota de desagravo e solidariedade com os juízes, em função da declaração da ministra de que há “bandidos atrás da toga”.

As associações ingressaram com representação judicial junto à Procuradoria, acusando-a de ter cometido crime por quebra do sigilo de dados de 231 mil juízes, servidores e parentes, sem ordem judicial. O Procurador deu parecer, assegurando que não há crime a ser apurado e o STF determinou arquivamento do pedido.

A ministra declarou que “O Judiciário não é dos juízes, é da nação. É dos jurisdicionados. Todos os segmentos da sociedade têm participação nele. E isso é que é bonito na democracia”.

Na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, acerca da emenda constitucional que amplia e reforça os poderes correcionais do CNJ, disse a ministra:

“Faço isso em prol da magistratura séria e decente e que não pode ser confundida com meia dúzia de vagabundos que estão infiltrados na magistratura”.

A ministra questionou decisão do STJ no sentido de que a “denúncia anônima não pode ser considerada pelo tribunal”. Indagou como não apurar se referida denúncia chega à Polícia Federal que conclui com provas do crime pela veracidade.

Eliana tornou-se ícone entre procuradores, promotores, defensores públicos, policiais, advogados, cidadãos comuns e magistrados, mas reprimida pelos tribunais superiores.

Respeitável jornalista descobriu um grande defeito da ministra:

“Acredita que deve cumprir, realmente, suas obrigações de corregedora, segundo determina a lei. Solicita investigações. Ouve denúncias. Tenta apurar delitos, violações éticas e outras malfeitorias, atribuídas a autoridades judiciárias”.

A ministra nunca deixou de acreditar que antes de solidarizar-se com os magistrados tem a obrigação de cumprir a lei, mesmo que implique em punir seus colegas.

O cargo que ela ocupou durante esses dois anos, tão dignamente, exige firmeza e coragem para “fornecer as ferramentas necessárias para que os magistrados possam trabalhar”, para denunciar, investigar, apurar e punir. A história de que antes da denúncia deveria enumerar os nomes dos juízes corruptos não se sustenta e essa é a mesma de que o brasileiro que denuncia autoridades importantes termina respondendo criminalmente e punido.

Há uma cultura errada de que criticar os defeitos de muitos magistrados significa querer diminuir o sistema como um todo.

É claro que a luta da ministra não solucionará a paquidérmica morosidade da justiça, pois para isso torna-se indispensável o aprimoramento de toda a infraestrutura judicial, com o preenchimento dos cargos de juízes e servidores, seguidos da disponibilização de maiores recursos para a reciclagem, para a implantação dos avanços tecnológicos com a digitalização dos processos, única forma para acabar com o entulho processual que ocupa indevidamente os espaços físicos das secretarias e cartórios judiciais.

As redes sociais explodiram de internautas regozijando e solidarizando com os posicionamentos da ministra; criou-se até uma corrente de solidariedade.

A Corregedora não só acusa, mas defende os bons juízes e acerca do funcionamento das varas previstas na lei Maria da Penha, afirmou:

“O que depende só do juiz ele faz. Mas o que depende de apoio logístico nem sempre é feito”.

Noutra oportunidade disse:

“A corregedora quer apurar (as irregularidades cometidas por magistrados), mas não aceita que isso possa ser escondido, queremos trazer à luz aqueles que não merecem a nossa consideração. Um corregedor não faz isso sozinho. Preciso do meu exército, preciso dos bons juízes”.

Comentando a decisão do STF sobre a publicidade e os poderes mantidos para o CNJ apurar concorrentemente denúncias esclareceu a ministra que devemos “enaltecer os bons magistrados, os bons juízes, que foram os grandes vencedores”.

Eliana Calmon entende que “o sistema que temos foi feito para favorecer as elites políticas e econômicas. Não tenha dúvida disso. Todo o sistema é para essa proteção”.

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* Antonio Pessoa Cardoso é desembargador do TJ/BA e corregedor das comarcas do interior






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