O marco inicial de sua carreira na Magistratura Paulista aconteceu no ano de 1967. Marcou sua passagem de excelso Juiz, na 7ª. Vara da Família e Sucessões da comarca da Capital de São Paulo, onde se notabilizou por sentenças brilhantes, humanas, justas, estando o testemunho desta verdade retratado no primoroso livro "Código da Vida" escrito por Saulo Ramos. Como Juiz do 2º. Tribunal de Alçada Civil de São Paulo continuou a sua trajetória e, ali, muito contribuiu, especialmente, para o avanço do Direito Processual Civil1. Por todos os seus méritos, chegou ao cargo de Desembargador do Tribunal de Justiça de São Pauto no ano de 1986, onde continuou a empregar o seu talento de Juiz vocacionado e de sua imensa cultura jurídica e humanística. Seus votos se inscrevem nos anais daquela Corte como lições imorredouras na arte de julgar. Nunca deixou de ser um homem bom, tendo a sabedoria de entender que "na imagem de Deus, a Justiça e a Bondade estão inseparáveis" e a sua educação de berço a todos encanta2.
Somos amigos de coração há mais de trinta anos e tive a honra e a alegria de acompanhar a sua brilhante carreira na Magistratura.
Sempre me empolgou a sua vocação pura para a Magistratura, vocação esta que integra a sua personalidade multiforme e vem acompanhada do seu testemunho de Homem notável e Juiz fantástico a servir de exemplo para todas as gerações de magistrados3. De nada vale o Juiz que exerce o seu cargo, se antes de ser Magistrado não seja um verdadeiro Homem e exemplo para seus jurisdicionados.
O jovem Juiz de 1967, depois de 35 anos na Magistratura paulista, por ele engrandecida com a sua inteligência, cultura humanística e jurídica, encontrava-se maduro e pronto para chegar ao cargo de ministro do nosso Supremo Tribunal Federal, o que veio a acontecer no ano de 2003. Quando de sua nomeação, por mim vivida com imensa alegria e confiança, vibrei pela certeza de que em nosso Tribunal Supremo chegava um dos Juízes mais vocacionados que ali tiveram assento em sua história. Recordei-me, prontamente, dos saudosos ministros Costa Manso, Laudo de Camargo, Pedro Chaves, e de seu antecessor Sydney Sanchez, paulistas como ele, entre outros, que fizeram da Magistratura o porto seguro de suas vocações de Juízes notáveis e inesquecíveis.
Aliás, o saudoso e eminente ministro Rodrigues de Alckmin, que também percorreu com inegável brilho, todos os degraus da carreira na Magistratura paulista, com rara felicidade ensinava: "Sem vocação não há magistrado". "Sem verdadeiro amor à Justiça não há juiz. Não é bastante o conhecimento das regras do direito positivo, que estas são na imagem carnelutiana, simples moedas cunhadas com o ouro da Justiça, tanto mais valiosas quanto mais puro o metal. Se o juiz não tem amor pela função que exerce; se não sente que, ao decidir a causa, está realizando pragmaticamente e em modestíssimas proporções embora, um ato daquela grande Justiça que deve estabelecer o equilíbrio social, poderá ser um correto funcionário público, um técnico, um cientista. Falta-lhe, porém, alguma coisa, para ser juiz. Falta-lhe a vocação do justo" 4. Em sugestiva passagem, diz Piero Calamandrei: "O juiz que se habitua a fazer justiça é como o sacerdote que se habitua a dizer missa" e completa: "Feliz o pároco de província, que até o último dia sente, ao dirigir-se ao altar com vacilante passo senil, aquela perturbação, que, jovem padre sentiu quando da sua primeira missa. Feliz o magistrado, que até ao dia que precede o limite de idade, sente, ao julgar, aquela consternação, que o fez tremer, cinquenta anos atrás, quando juiz de terceira teve de dar a sua primeira sentença" 5.
O ministro Peluso, em sua carreira de Juiz Substituto a ministro da Suprema Corte, sempre teve a "vocação do justo", aliada à simplicidade do Magistrado seguro e sem medo de exercer a jurisdição e dizer o Direito. Em seus votos no Supremo Tribunal Federal, o ministro Cezar Peluso por meio do seu exemplo, de suas virtudes, de sua coragem cívica e profissional, se impôs diante da sociedade e contribuiu para a evolução do Direito e inspirou, em suas decisões, os legisladores para que boas leis fossem promulgadas.
Como escrevi em outro artigo publicado em sua homenagem, a coragem cívica sempre foi atributo de sua missão de Magistrado. Jamais teve medo em decidir, estando certo de que, como observa o notável Eduardo Couture: "El dia en que los jueces tienem miedo, ningún ciudadano puede dormir tranquilo" 6. Ruy Barbosa, de seu turno, na "Oração aos Moços", com absoluta razão, ensinou: “A ninguém importa mais do que à Magistratura fugir do medo, esquivar humilhações, e não conhecer cobardia". De igual forma, nunca se deixou seduzir pelo "politicamente correto", tão em voga na época atual. O notável e saudoso ministro Franciulli Netto lembra que o professor Paulo Ferreira Cunha, conceituado catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, em feliz síntese, diz que o "politicamente correto que pretende elevar-se a pensamento único, é uma nova ideologia totalitária. E mais perigosa e sutil, porque não se afirma e nem se pretende como tal. Não tem sede, nem partido, nem líder. É difusa, e todos sempre de algum modo vergam numa plenamente colonização cultural, impondo silêncio do que passa por inconveniente, criando tiques e reflexos condicionados que nos levarão a todos a dizer o mesmo..."7. Ao "dizer o mesmo”, na consagração do "politicamente correto", estaremos nos encaminhando para a anomia8. Muito menos se deixou levar pelo "clamor público" ou "clamor das ruas", pressão tão perigosa que há dois mil anos absolveu o facínora Barrabás e condenou o inocente Nosso Senhor Jesus Cristo à morte de Cruz e que no ano de 1933 levou Hitler ao Poder, para causar tanto mal e destruição à Humanidade.
O ministro Cezar Peluso, em sua vida de Homem e Juiz, sempre teve presentes as seguintes palavras de Rui Barbosa: "uns plantam a semente da couve para o prato do amanhã, outros a semente do carvalho para o abrigo do futuro. Aqueles cavam para si mesmos. Estes lavram para a felicidade dos seus descendentes, para o benefício do gênero humano".
Poucos são aqueles, como o ministro Cezar Peluso, que conseguem exprimir o anseio expresso por Piero Calamandrei: "o juiz é o direito tornado homem" e "na vida prática, só desse homem posso esperar a proteção prometida pela lei sob uma forma abstrata"9.
Ao exercer a sua autoridade como Juiz sempre teve presente a lição imorredoura do saudoso e notável Desembargador Marcos Nogueira Garcez: "Independência não se confunde com a arrogância dos pretensiosos ou com a ostentação vaidosa dos imaturos. Mas que a exerce com a simplicidade dos fortes e com a profunda convicção de que, em todas as situações que nos apresentarem, haveremos de decidir exclusivamente de acordo com a nossa consciência reta e bem formulada, com olhos postos no mandamento do livro da Sabedoria: "Amai a Justiça vós que sois os Juízes da terra” (Sab, 1,1)".
Ao anunciar em seu discurso de posse na Presidência do Supremo Tribunal Federal, que sempre se portaria em defesa do Poder Judiciário e da Magistratura, nada mais fez do que demonstrar o seu acendrado amor pela Justiça e que foi confundido pelo senhor ministro Joaquim Barbosa, como "corporativismo"... Valha-me Deus! A injustiça, ainda mais proclamada por integrante da Suprema Corte, corrói a alma 10. O meu saudoso e querido amigo ministro Domingos Franciulli Netto costumava dizer: "ser Juiz é o estado d’alma do homem vocacionado", enquanto outro saudoso e querido Amigo Desembargador Alves Braga dizia: "ser magistrado é estado de espírito”. Quem exerce a nobre missão de ser magistrado há de meditar sobre essa candente realidade. Somente os vocacionados estão aptos ao exercício de ser magistrado em todos os momentos de sua vida e conseguem entender em plenitude a advertência feita por Guizot: "Quando a política penetra no recinto dos tribunais, a Justiça se retira por alguma porta." E pode-se acrescentar que a incontinência vocabular, quando agressiva, revela um tumulto íntimo de insegurança que espanca a serenidade necessária ao magistrado e o afasta por inteiro da sindérese, isto é, da capacidade espiritual, inata, imediata para apreender os primeiros princípios da Ética.
Como também escrevi no outro artigo em sua homenagem, o ministro Cezar Peluso na Presidência do Supremo Tribunal Federal, em época tão difícil, quando o órgão administrativo Conselho Nacional de Justiça se arvora em “legislador” e “censor da Magistratura”, rompendo com os limites de atuação a ele outorgados pela Constituição, portou-se sobranceiro em defesa do Poder Judiciário e da Magistratura à semelhança da advertência feita pelo notável e inesquecível ministro Presidente Ribeiro da Costa, quando sombras negras pairavam sobre o Supremo Tribunal Federal, logo após a eclosão do Movimento Militar de 1964: “nosso poder de independência há de manter-se impermeável às injustiças do momento, e acima dos seus objetivos, quaisquer que se apresentem suas possibilidades de desafio às nossas resistências morais” e a Justiça “quaisquer que sejam as circunstâncias políticas, não toma partido não é a favor ou contra, não aplaude nem censura”. Quem defende o Poder Judiciário e a Magistratura independentes, especialmente na Presidência do Supremo Tribunal Federal, defende o Estado Democrático de Direito.
Com todas essas primaciais virtudes do verdadeiro Magistrado, o ministro Cezar Peluso não poderia deixar de ser o que sempre foi. um Homem notável e Juiz fantástico, tendo consciência que o Magistrado ”é uma partícula de substância humana que vive e se move dentro do direito; e se esta partícula de substância humana tem dignidade e elevação espiritual, o direito terá dignidade e elevação espiritual" 12.
Enfim, o ministro Cezar Peluso escreveu uma linda história de Homem e Juiz, sedimentada em vasta formação humanística e de sólida cultura jurídica e uma trajetória brilhante em 44 anos e seis meses de integral amor à Magistratura, galgando todos os degraus da carreira até chegar ao Supremo Tribunal Federal, sendo homem de educação de berço, cordial, gentil, atencioso e simples. Em sua vida pessoal, de seu turno, conseguiu formar uma linda família ao lado de sua querida Lúcia e uma legião de amigos sinceros e leais, além de milhares de admiradores, eis porque o eminente ministro Carlos Velloso disse ser muito difícil encontrar alguém que o substitua no Supremo Tribunal Federal. Em todos os cargos que exerceu, como Juiz e Professor, deixou a marca de sua inteligência privilegiada e o brilho de sua cultura humanística e jurídica.
É uma pena, meu querido Amigo, que a partir do dia 3 de setembro, o Supremo Tribunal Federal ficará privado da sua inestimável e insubstituível presença, capaz de ministrar imorredouras lições do verdadeiro Homem e Juiz e ofertar o seu exemplo a todas as gerações de Magistrados.
Que o nosso Cristo do Amor o proteja e à sua querida família, nessa nova fase de sua linda vida, são os votos deste seu velho Amigo que tanto o admira e quer bem.
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1 Em voto primoroso, posso citar como exemplo, aquele em que, como mestre, faz a distinção entre pressupostos processuais e condições da ação.
2 É impressionante a sua formação jurídica amealhada a partir da década de 1970: (a) – Curso de Doutorado na Faculdade de Direito da USP, concluído em 1974; (b) – Mestrado em Direito Civil na Faculdade de Direito da USP, concluído em 1975; (c) – Mestrado em Direito Civil na Faculdade Paulista de Direito na Universidade Católica de São Paulo, concluído em 1975; (d) – Mestrado em Direito Processual Civil na Faculdade Paulista de Direito na Universidade Católica de São Paulo, concluído em 1975. Além disso, foi professor regente de Direito Processual Civil, na Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, de agosto de 1975 até agosto de 2003; Professor Instrutor de Direito Civil, por designação da Vice-Reitoria, na Faculdade Paulista de Direito da PUC-SP, no período de agosto de 1974 a julho de 1975, além de haver exercido diversas funções de realce dentro e fora da Magistratura.
3 Aprendi e proclamei com a preocupação de vivenciá-la a seguinte verdade: o que vale é a pessoa; cargo é atributo. Mais do que nunca essa verdade se impõe, de modo particular, ao magistrado que está, a todo instante, no cumprimento de sua missão, recordando que o homem é uma pessoa. Aliás, a grande lição do Cristianismo é o exemplo do respeito de Cristo pela integridade da pessoa humana. Só o homem é importante no Evangelho que, em sua mensagem de Salvação, abarca todos os homens, cuja soma é o mundo.
4 Discurso do Desembargador JOSÉ GERALDO RODRIGUES DE ALCKMIN em sua posse no Tribunal de Justiça de São Paulo em setembro de 1964.
5 Ob. cit., pg. 133.
6 Ob. cit., pg. 76.
7 A Prestação Jurisdicional. Ed. Millennium, Campinas, ed. 2004, pgs. 25/26.
8 RALF DAHRENDORF observa que com a modernidade, os perigos para a liberdade são diferentes. Para o ilustre professor de Ciências Sociais da Universidade de Constança, “todas as palavras cativantes do ideário modernista – democratização, individualização, comunitarismo e assim por diante – passaram a descrever uma atitude que ajuda a enfraquecer e, em última análise, a corroer as instituições sociais. Elas tendem para a liberdade sem sentido, uma liberdade de escolha sem escolhas que façam sentido. Elas servem para aumentar os distúrbios, a dúvida e as incertezas de todos”. E acrescenta: “os falsos arautos da liberdade estão cheios de boas intenções, mas preparam o caminho que poderá nos levar, se não para o inferno, ao menos para o mais próximo dele na Terra, que é a anomia” (“A Lei e a Ordem”, Publicação do Instituto Tancredo Neves e Fundação Friedrich Naumann, Bonn, ed. 1987, pg. 146).
9 “Eles, os Juízes visto por Nós, os Advogados”, pg. 40.
10 Neste ano estou completando 50 anos de dedicação integral ao Direito e à Justiça, presenciei várias composições do Supremo Tribunal Federal e nunca tive notícia de qualquer tratamento descortês ou agressivo por parte de seus ministros. Presenciei discussões acaloradas entre seus Juízes onde o respeito e a educação sempre estiveram presentes. Assisti em uma sessão, o gesto encantador do fantástico ministro Victor Nunes Leal, que começava a elaborar as Súmulas de Jurisprudência Predominante do Supremo, citar um precedente e perguntar “é isso mesmo ministro Hahnemann Guimarães?”, que era considerado a melhor memória sobre a jurisprudência do Supremo. Assisti, ainda, discussões acaloradas em que participava o saudoso e eminente ministro Evandro Lins e Silva com os demais integrantes da Corte, vindo o também o saudoso e eminente ministro Prado Kelly a dizer, com a simplicidade dos justos: “na área penal, não posso deixar de acompanhar o voto do ministro Lins e Silva, que nos oferece lições seguras para bem decidir”. Bons tempos aqueles.
11 Apud “O Supremo Tribunal Federal”, Ed. Civilização Brasileira, ed. 1976, pg. 26.
12 EDUARDO COUTURE Introducción al Estudio del Proceso CiviL, Ed. Arayú, Buenos Aires, 2ª. ed., 1953.
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