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O cônjuge no novo Código Civil

Durante dezenas de anos vigeu no Brasil, como regime legal de bens, o regime de comunhão universal, no qual o cônjuge sobrevivo não concorre na herança, por já ser "meeiro". O novo Código Civil, elevou o cônjuge à categoria de herdeiro necessário.

15/4/2003

O cônjuge no novo Código Civil

Prof. Miguel Reale

"Em um código os artigos se interpretam uns pelos outros", eis a primeira regra de Hermenêutica Jurídica estabelecida pelo jurisconsulto Jean Portalis, um dos principais elaboradores do Código de Napoleão.

Desse ensinamento básico me lembrei ao surgirem dúvidas quanto ao verdadeiro sentido do inciso I do artigo 1.829 do novo Código Civil, segundo o qual a sucessão legítima cabe, em primeira linha, aos "descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal de bens ou no da separação obrigatória de bens (artigo 1640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares".

Há quem entenda que, desse modo, o cônjuge seria herdeiro necessário também na hipótese de ter casado no regime de separação de bens (artigo 1.687), o que não me parece aceitável.

Essa dúvida resulta do fato de ter o artigo 1.829, supra transcrito, excluído o cônjuge somente no caso de "separação obrigatória". A interpretação desse dispositivo isoladamente pode levar a uma conclusão errônea, devendo, porém, o intérprete situá-lo no contexto sistemático das regras pertinentes à questão que está sendo examinada.

Antes, todavia, de dar as razões pelas quais entendo que o cônjuge não adquire o direito à herança pela morte do outro, se casados no regime de separação de bens, julgo necessário lembrar por que motivo o novo Código Civil inovou na matéria, elevando o cônjuge à categoria de herdeiro necessário.

É que, durante dezenas de anos vigeu no Brasil, como regime legal de bens, o regime de comunhão universal, no qual o cônjuge sobrevivo não concorre na herança, por já ser "meeiro".

Com o advento da Lei 6.515, de 21 de dezembro de 1977 (Lei do Divórcio), o regime legal da comunhão de bens no casamento passou a ser o da comunhão parcial.

Ampliado o quadro, tornou-se evidente que o cônjuge, sobretudo quando desprovido de recursos, corria o risco de nada herdar no tocante aos bens particulares do falecido, cabendo a herança por inteiro aos descendentes ou aos ascendentes. Daí a idéia de tornar o cônjuge herdeiro no concernente aos bens particulares do autor da herança.

Recordada a razão pela qual o cônjuge se tornou herdeiro, não é demais salientar a importância que o elemento histórico tem no processo interpretativo. Tendo, pois, presente a finalidade que o legislador tinha em vista alcançar, estamos em condições de analisar melhor o sentido do mencionado inciso, mantida que seja a sua redação atual.

Nessa ordem de idéias, duas são as hipóteses de separação obrigatória: uma delas é a prevista no parágrafo único do artigo 1.641, abrangendo vários casos; a outra resulta da estipulação feita pelos nubentes, antes do casamento, optando pela separação de bens.

A obrigatoriedade da separação de bens é uma conseqüência necessária do pacto concluído pelos nubentes, não sendo a expressão "separação obrigatória" aplicável somente nos casos relacionados no parágrafo único do artigo 1.641.

Essa minha conclusão ainda mais se impõe ao verificarmos que - se o cônjuge casado no regime de separação de bens fosse considerado herdeiro necessário do autor da herança - estaríamos ferindo substancialmente o disposto no artigo 1.687, sem o qual desapareceria todo o regime de separação de bens, em razão de conflito inadmissível entre esse artigo e o de n.º 1.828, I, fato que jamais poderá ocorrer numa codificação à qual é inerente o princípio da unidade sistemática.

Entre uma interpretação que esvazia o artigo 1.687 no momento crucial da morte de um dos cônjuges e uma outra que interpreta de maneira complementar os dois citados artigos, não se pode deixar de dar preferência à segunda solução, a qual, ademais, atende à interpretação sistemática, essencial à exegese jurídica.

Se, no entanto, apesar da argumentação por mim aqui desenvolvida, ainda persistir a dúvida sobre o inciso I do artigo 1.828, o remédio será emendá-lo, eliminando o adjetivo "obrigatória". Com essa supressão o cônjuge sobrevivente não teria a qualidade de herdeiro, "se casado com o falecido no regime de comunhão universal, ou no de separação de bens". Aproveitar-se-ia, outrossim, a oportunidade para eliminar a errônea remissão ao parágrafo único do artigo 1.640.

Apreciado esse ponto essencial, cabe assinalar que outra inovação do novo Código Civil a favor do cônjuge sobrevivo é a prevista no artigo 1.832, de acordo com a qual ele concorre com os descendentes, tendo direito a "quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer".

Além disso, pelo artigo 1.857, "concorrendo com ascendentes em primeiro grau, ao cônjuge tocará 1/3 (um terço) da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente, ou se maior for aquele grau".

Por outro lado, em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge sobrevivente, aperfeiçoando-se assim o disposto no artigo 1.611 do Código de 1916.

Ademais, a nova Lei Civil manteve a disposição do Código revogado quanto a caber ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, sem prejuízo de sua participação na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.

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