Itália e Brasil – Convergência na corrupção : porque se culpa o judiciário?
Jayme Vita Roso*
I
Parecerá, ao leitor não afeito a essa patologia, que temos primado em provocar “crises políticas”. Essa idéia é falsa, porque, na Itália, por exemplo, acorreram as do fim do século 19, do pós-guerra, dos últimos anos da década de 60 e dos primeiros dos anos 90.
Haveria uma lógica para esses eventos se multiplicarem fagocitamente? Passando um raio X acurado nos acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil, nos anos indicados, encontra-se, querendo, à flor deles, uma lógica que assim tentaria sumarizar: a classe política no poder, seja qual for o matiz, tem demonstrado incapacidade para responder às exigências de um país em completo desequilíbrio de condições materiais dos seus habitantes; ao sistema político, tem, ao seu turno faltado, por completa ausência de interesse dos seus atores em encontrar uma solução que dê uma resposta para se tentar criar um país que reflita, em sua imagem e em sua concretude, um saudável equilíbrio entre o poder em exercício e a maioria do país autêntico, com sua miserabilidade e eterna exclusão; o receio de qualquer governo no exercício do poder é sentir-se ameaçado pela crônica ausência da maioria parlamentar, reagindo, para consegui-la, com alianças políticas, cujos atores, por si ou por interpostas pessoas ou por uso de empresas governamentais ou ainda por participação afrontosa e impune de empresários privados, e, por dedução, recorrentes à ilegalidade (caso das privatizações nos anos 90), à corrupção (obras com absurdos sobrepreços, idem), negócios malfeitos (a concessão da base de Alcântara, os genéricos, as negociações bilaterais ou multilaterais, as cláusulas de aumentos dos serviços públicos que levam os pedágios no Brasil a custarem muito mais do que na Itália etc.), as jogadas de pôquer nas distribuições das verbas orçamentárias (FHC e Lula), o controle ficto da violência urbana (homicídios, assaltos, abusos são perpetrados e omitidos das estatísticas oficiais), enfim, tudo isso somado, digerido e metabolizado conduzirá a uma situação que poderá ser irreparável e sem controle.
Voltando à Itália, nos meses de julho e agosto de 2005, com exceção da imprensa do Cavaliere Berlusconi não divulgando, estoura um escândalo, com um elenco de personagens mais conspícuos pela gula desmedida, e nele há a participação direta do presidente do Banco Central (Fazio), que propiciaria a um grupo de oportunistas a compra de um banco com tradição multicentenária (Antoveneta) e envolveria a supina quantia de onze bilhões de euros.
Descoberto o negócio pela Consob (corresponderia à CVM, porém mais atuante e diligente), a questão foi levada à magistratura, que autorizou serem gravadas as conversas dos quinze personagens principais, e a bolha explodiu. Um dos envolvidos (Ricucci) em operações com bancos privados e oficiais conseguiu milhões de euros em mútuos, a juros negativos, para aumentar sua quota no capital do Antoveneta.
Aliás, esse distinto e elegante jovem é mencionado como exercente da profissão “immobiliarista” (neologismo criado para significar personagens que manipulam bilhões de euros com imóveis próprios – mas com titularidade de residentes europeus em off-shores – ou terceiros, idem).
Tudo corria à rédea solta, mas o Presidente do Banco Central (Fazio), por intermédio de sua mulher, reclamava que a imprensa, contrária ao governo, divulgava conversas, violando a privacy (os italianos usam privacy para dizer o que consta da própria Constituição em língua nacional). E Berlusconi disse, ao voltar das férias, que apresentará um projeto ou o fará por decreto (= medida provisória), para responsabilizar os juízes e os procuradores que divulgaram conversações gravadas, obtidas mesmo legalmente.
No passado, na área jurídica, era um deleite para os profissionais qualificados usar os autores e as fontes italianas em suas sustentações. Hoje, com privacy, connection, urgency, accountability, exit strategy, Faziogate etc, no cotidiano, é melhor esquecê-las, porque não há mais originalidade e cultura própria.1
Se o Brasil fizer a reforma política, com esse Congresso, a mesma que FHC sempre evitou, exceto quando permitiu a sua reeleição, como já exaustivamente Marilena Chaui abordou, aí mostrando a sua inutilidade e a sua nocividade, pela raiz e pela produção espúria, será incontornável a confusão.
Aguarda-se que os jovens advogados leiam o que transita no Congresso e, com tenacidade e vigor, oponham-se a mais este golpe que será perpetrado contra o povo por todos os arremedos de partidos.
II
Como migalheiro consciente de minhas responsabilidades na intransigência do regime democrático, já que advogado sou, e, por isto, in litterim, interpreto o Estatuto da OAB, meu guia e meu cardápio, no exercício profissional e, acima de tudo, no meu comportamento cívico, com flexão direta na minha pessoa, venho procurando conclamar os jovens advogados da importância de não serem corretos politicamente. Esse estado mental paralisa o nosso sentimento em relação ao Outro, porque não é movido por amor. E, sem ele, não há questão última hoje.Retraio-me a Arturo Paoli, que, antes de sacerdote intelectualizado, é um homem do seu presente, bem vivendo os seus 93 anos de idade, entre a população excluída nos conflitos de Foz de Iguaçu e escrevendo com uma lucidez que só pode ser divina.2
Manifesto-me em Migalhas para os jovens advogados, com preferência e com particular carinho. Mas, eles vivem a sua época, na sua época, para a sua época. Inseridos nela, torno a Paoli. Embora generalizando, seu pensamento não é vazio, mas riquíssimo de amor, ao dizer, referindo-se aos dias correntes deste bendito 2005: “Por que hoje? Propriamente por aquilo que dissemos antes. A geração da televisão, da técnica mudada pela solicitação do consumismo, com ela será sempre mais incapaz de pensar, de escolher e acolher conceitos. Quanto mais capaz de admirar e recepcionar objetos concretos de freqüente inúteis para satisfazer a insaciável fome do mercado, tanto mais incapaz de fazê-lo com pensamentos e conceitos abstratos. Mas o tempo desnuda cada vez mais o homem das suas prerrogativas e finalmente da sua real condição de filho. Não vive mais na verdade, mas esta situação patológica anti-humana faz um purgatório sempre mais insuportável.” 3
Torno à proposta, que implica em reflexão e convertida em ação da Classe. Somos, verdadeiramente, de coração aberto à democracia, ou nos escudamos no Órgão da Classe para, canhestramente, buscarmos nossos interesses, com egocentrismo, com egoísmo, com prioridade ao Eu? Estamos sendo lenientes e complacentes com os assentamentos éticos dos pilares da democracia, parlamento independente, judiciário solerte e executivo cumpridor da lei?
Tantas interrogações, com certeza, desmotivam, porque não mais se discute sobre se, realmente, queremos ser o que somos e o que faremos das nossas vidas. Se estamos na profissão de advogado, há presunção bona fide de que ela foi escolhida porque nos vocacionamos para seu competente exercício. Por esse fundamento existencial, colhido na livre determinação de pauta para uma vida, ser advogado é uma graça, se acolhida.
Para sê-lo, não basta sê-lo, mas é preciso vivê-lo com amor.Esse amor é ciumento ao extremo do que somos, pois sabemos por que somos. Não se trata de uma inconsciência que sobe à superfície para se mostrar. Ser advogado é metabolizar a profissão, embora muitas vezes se nos afigure madrasta, quando a exercemos.
Toquei no fundo do tema, presumo.
Falo, neste monólogo, a todos, como um auditório mais amplo do que construiu Perelman4. E toco na injustiça praticada na Itália, para punir os juízes, ao mesmo tempo em que se lhes propiciam alguns tratamentos de favor ou de benesse, numa remendada e mal intencionada reforma do Poder Judiciário.
Ela partiu do governo presidido pelo Cavaliere Berlusconi, que está no poder para conceder favores aos seus amigos, sem deixar de alargar mais e mais seu conspícuo patrimônio pessoal.Ele, que mantém o Parlamento no seu controle, apregoou que a reforma do judiciário era necessária para acelerar o andamento dos processos. Na verdade, essa reforma é uma contra-reforma, como duramente foi combatida pelos magistrados que fizeram até quatro movimentos grevistas em todo o país, contra a sua aprovação, ao longo do percurso de três anos no Parlamento.
Começou em 14 de março de 2002, quando o Conselho de Ministros aprovou o projeto de lei de reforma do judiciário, que ingressou no legislativo em 29 do mesmo mês e ano, para ser votado, após várias modificações no Palácio do Montecitório, em Roma, de forma definitiva, com 284 votos favoráveis, 219 contra e 4 abstenções.
A finalidade de acelerar os processos, que era a causa da proposta de Berlusconi, no correr do Parlamento, com as modificações e a emendas aprovadas, tornou-se inócua. Ela pretendeu, ao contrário, dar nova estrutura ao judiciário, através de colocações pontuais, que realmente afetam a estabilidade do magistrado no exercício das suas funções. O Conselho Superior de Magistratura continua a coordenar a vida e a carreira dos juízes, tirando-lhes a indispensável estabilidade emocional de que tanto precisam. Através de manobras satanicamente urdidas, como é comum nesse governo italiano, com a genialidade e com a safadeza que marcam muitos representantes do povo, conseguiram que membros do ministério público e juízes fiquem impedidos de controlar os poderes5. A magistratura, sendo controlada como será, e com os magistrados a fazerem perenes concursos, em torno de 13 em suas carreiras, fará com que deixem eles as funções jurisdicionais para cuidarem de suas vidas. Logo, mais processos parados nos escaninhos.
O que é vergonhoso, desiludindo sobre o futuro da democracia na Itália, pois está consagrado que, em certos casos, haverá controle político por parte do Ministério da Justiça.
Atenção: mesmo quando se cuidar apenas de interpretar uma lei, ele deverá fazê-lo, não o juiz. Ora, onde ocorre a independência do magistrado? E, se o fizer, isto é, caso ele o faça, cumprindo sua função jurisdicional e ela não tiver a aprovação do poder político, entra em ação a censura a quem desagradou o poder político e início de ação disciplinar, por desobediência.
De outro lado, deu poderes extraordinários ao chefe de uma seção do ministério público, que ficou fora da “reforma”. Ele funcionará como um mandarim, antes de Mao: todos os poderes, vetando ab initio as ações difusas, no campo penal, sobretudo. Onde ficarão os interesses fundamentais dos cidadãos, sobretudo nas questões de meio ambiente? A máfia, em conseqüência, terá absolvição direta?
Esta é a débil democracia italiana, retornando aos tempos do Duce. Há esperança deque, caso a esquerda vença as eleições que ocorrerão em breve, a reforma seja cancelada. Mas, antes que isso possa ocorrer, a lei estará vigorando e, conhecendo como funcionam as intrigas da vida peninsular, na área jurídica, poderemos imaginar a strage6. Por isso, outra vez mais, fiquem atentos e atuem os jovens advogados no Brasil, porque os poderes não titubeiam em cortar-lhes as poucas oportunidades que têm para sobreviver na profissão.
A recente “reforma” brasileira do judiciário não fica distante desta que percorremos com ligeireza. Estranheza não causa, pois ambos são resultados da maior concentração do poder político com o executivo, tudo a pretexto do terrorismo em alguns lugares e outras desculpas, em outros.
Estamos voltando aos alvores dos regimes fascistas, cujos resultados foram funestos para a democracia. Com esse retorno, perdem os advogados, sobretudo os mais jovens, pois, se não se amoldarem à nova ordem, ver-se-ão ainda mais tolhidos em seu exercício. Adeus liberdade! Adeus democracia!
Não se acantonem: façam que seus representantes sejam operantes, diretos, sem retórica fútil ou lugares comuns. Chegou a hora dos jovens deixarem de ser acomodados, egoístas e isolados para, com proatividade direta, ao mostrar insatisfação, enverguem a camisa do gladiador da causa comum. Ita speratur!7
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Notas Bibliográficas:
1 Essas expressões inglesas encontrei na leitura de um jornal que ainda escapa de Berlusconi: LA REPUBBLICA. Itália, 4.08.2005
2 Arturo Paoli nasceu em Lucca, Itália, em 1912. Ordenado sacerdote em 1940, em 1954 foi enviado à Argentina para ajudar e ali ingressou na Ordem dos Irmãos Menores da Charles de Foucauld. Emigrou em 1974 para a Venezuela, porque foi condenado à morte na Argentina e, em 1983, para o Brasil, quando, depois do regime militar, passou a viver numa favela conhecida como Morenita, em Foz no Iguaçu, onde trabalha em projetos de promoção humana e social para os pobres.
3 ARTURO, Paoli. Prendete e mangiate. Molfetta, Itália: Edizioni la meridiana, 2005. 50p.
4 PERELMAN, Chaïm. Traité de L’argumentation: La Nouvelle Rhetorique. Bruxelles: Éditions de l'Université de Bruxelles, 1992. 734 p.
5 Na Itália, o concurso para entrar na magistratura é único, mas depois de cinco anos o magistrado deverá optar pelo ministério público ou pelo cargo de juiz. Para mudar de função, deverá submeter-se a um exame oral, freqüentar um curso na Escola de Magistratura e obter aprovação. Mas, sobretudo, deverá mudar o local onde exerce a jurisdição. A escolha, a partir de então, é irrevogável. Antes das provas escrita e oral, o candidato deverá indicar no pedido de inscrição, pena de inadmissibilidade, se prefere a função de juiz ou de ministério público.
6 strage s.f. morticínio, matança, carnificina. PARLAGRECO, Carlo. Dizionario Portoghese Italiano Portoghese. Itália: Antonio Vallardi Editore, 1960, p. 477.
7 Assim espero!
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*Advogado do escritório Jayme Vita Roso Advogados e Consultores Jurídicos
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