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Marco regulatório da internet brasileira: “Marco Civil”

Autores discorrem sobre o marco civil da internet e o que a legislação atual já prevê.

20/6/2012

O marco regulatório da Internet brasileira, ou como ficou mais conhecido, "Marco Civil da Internet" (Projeto de Lei nº 2.126/11) está sendo – finalmente – objeto de discussão em audiências públicas na Câmara dos Deputados e seminários regionais com a presença de especialistas indicados para debater a legislação projetada.

É importante esclarecer que esse projeto teve início em 29 de outubro de 2009 por meio de iniciativa da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, em parceria com a Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RIO).

No decorrer dos últimos três anos, foi possível observar uma série de discussões setoriais com propostas para inclusões e alterações no texto da referida espécie normativa decorrentes de movimentos políticos das mais variadas naturezas, expondo a natureza democrática da iniciativa.

Em 2001, há 11 (onze anos) – ou seja, mais de uma década, o jornal The New York Times publicou excelente reportagem (traduzida no Brasil na oportunidade por André Medina Carone) lembrando que "em seus primeiros anos, a Internet era vista com euforia, como um dos maiores instrumentos da democracia de toda a história, uma espécie de plenário nacional no qual todos teriam o direito à palavra. Um dos primeiros gurus do ciberespaço, Prof. Dave Clark do MIT (Massachusetts Institute of Technology) afirmou em 1992: "Nós rejeitamos reis, presidentes e eleições. Nós acreditamos em um consenso indeterminado e em um código em transformação". Agora, com as demonstrações de controle governamental e empresarial dadas pela explosão do comércio na Internet é preciso admitir que a situação mudou. Andrew Shapiro, Professor convidado da Faculdade de Direito de Yale e autor de "A Revolução do Controle", afirmou que a euforia inicial a respeito do ciberespaço foi substituída por "uma espécie de 'tecnorealismo', e uma segunda geração de livros sobre a Internet" que adotam um ponto de vista bem mais crítico. Prof. Lawrence Lessig (Harvard Law School) argumenta em seu livro "Código" ("Code"), publicado em 1999, que o enorme volume de informações pessoais que os usuários revelam ao fazer compras online, navegar em web sites, ou solicitar informações oferece oportunidades extraordinárias para que os governos e as empresas controlem suas vidas. O ciberespaço irá se tornar uma ferramenta perfeita de controle."

Continua a reportagem, afirmando que a avaliação de Sunstein é ligeiramente diferente da de Lessig, embora também seja negativa. "A visão dele é mais próxima do '1984' de Orwell, enquanto a minha é mais próxima do 'Admirável Mundo Novo' de Huxley, explica Sunstein. Para Lessig o risco está no controle governamental ou corporativo, para o Prof. Carl Sunstein (Harvard School of Law) ele está em um mundo de oportunidades aparentemente infinitas, no qual os cidadãos são transformados em consumidores e há uma completa erosão da vida política societária. No entanto, ambos concordam que a sociedade deve começar a realizar escolhas mais conscientes a respeito daquilo que ela quer que a Internet venha a ser. O argumento principal de Lessig é que a Internet não possui uma "natureza". O mundo que conhecemos como o "ciberespaço", ele diz, é um ambiente criado pela arquitetura do código computacional que deu origem à World Wide Web. Lessig afirma que por ser a Internet baseada em protocolos computacionais de "fonte aberta" que permitem que qualquer um tenha acesso a eles, ela possui um caráter específico que pode ser - e de fato é - alterado a todo momento. Provedores de Internet (grandes empresas de Internet) podem elaborar programas de computadores (software) que permitam o máximo de privacidade ou que restrinjam ou acompanhem a movimentação de um usuário a um grau extremo. Os engenheiros de software são tal como Percy Shelley disse a respeito dos poetas, os legisladores inconfessos de nosso tempo. Nós devemos, afirma Lessig, confessar esta realidade e procurar remodelá-la. "Nós podemos construir, arquitetar ou codificar o ciberespaço para que ele proteja valores que cremos serem fundamentais, ou podemos construir, arquitetar ou codificar o ciberespaço para permitir que estes valores desapareçam".

Não é novidade para ninguém que o ordenamento jurídico positivo não tem capacidade para prever todos os casos e inovações que possam surgir ao longo dos anos. Por isso é que sempre se recomendou que ante a impossibilidade de prever todos os casos particulares, o legislador deve pairar nas alturas, fixar princípios e preceitos gerais, de amplo alcance, embora precisos e claros. A norma jurídica do direito evoluído caracteriza-se pela generalidade. A conseqüência desta generalidade é a flexibilidade da norma, assim a ordem jurídica poderá se transformar pela interpretação sem a constante interferência do legislador – (Carlos Maximiliano Pereira dos Santos e Paulo Dourado de Gusmão abordaram tal questão com brilhantismo em textos já clássicos do Direito Brasileiro).

Eis a razão do scire leges non hoc est, verba earum tenere, sed vim ac potestatemsaber as leis não é conhecer-lhes as palavras, porém a sua força e poder, isto é, o sentido e o alcance respectivos. A interpretação como se sabe, visa determinar o sentido e o alcance das expressões do direito. É sem dúvida uma das mais importantes ferramentas disponíveis na ciência jurídica. Deveria ser atualmente mais prestigiada. Como dizia Wach, Thoel e outros importantes juristas citados por Carlos Maximiliano: "pode a lei ser mais sábia do que o legislador; porquanto abrange hipóteses que este não previu". Lembra ainda Maximiliano, que ao invés de abandonarmos um vocábulo clássico e preciso, é preferível esclarecer-lhe a significação, variável com a marcha evolutiva do Direito.

"[…] Termos técnicos suportam as acepções decorrentes do progresso da ciência a que se acham ligados. [...] De fato, não é possível que algumas séries de normas, embora bem elaboradas, sintéticas, espelhem todas as faces da realidade. Por mais hábeis que sejam os elaboradores de um Código, logo depois de promulgado surgem dificuldades e dúvidas sobre a aplicação de dispositivos bem redigidos. Uma centena de homens cultos e experimentados seria incapaz de abranger em sua visão lúcida a infinita variedade dos conflitos de interesses entre os homens. Não perdura o acordo estabelecido, entre o texto expresso e as realidades objetivas. Fixou-se o Direito Positivo; porém a vida continua, envolve, desdobra-se em atividades diversas, manifesta-se sob aspectos múltiplos: morais, sociais, econômicos. Transformam-se as situações, interesses e negócios. Surgem fenômenos imprevistos, espalham-se novas idéias, a técnica revela coisas cuja existência ninguém poderia presumir quando o texto foi elaborado. Nem por isso se deve censurar o legislador, nem reformar a sua obra. A ação do tempo é irresistível, não respeita a imobilidade aparente dos Códigos. Aplica-se a letra intata a figuras jurídicas diversas, resolve modernos conflitos de interesses, que o legislador não poderia prever. Se de outra forma se agisse e se ativesse ao pensamento rígido, limitado, primordial, a uma vontade morta e, talvez, sem objeto hoje, porquanto visara a um caso concreto que se não repete na atualidade; então o Direito positivo seria uma remora, obstáculo ao progresso, monólito inútil, firme, duro, imóvel, a atravancar o caminho da civilização, ao invés de o cercar apenas de garantias."

Nesse sentido, a interpretação e a aplicação do direito devem levar em consideração a realidade sócio-cultural atual para lograr aceitabilidade ou razoabilidade. Não há que existir receio ou temor diante de novas leis para regular matérias relacionadas com as novas áreas do direito, quando se verificar tecnicamente a sua indispensabilidade.

O Marco Civil da Internet surgiu justamente como um contraponto à tendência de se estabelecerem restrições, condenações ou proibições relativas ao uso da Internet. O propósito é determinar de forma clara direitos e responsabilidades relativas à utilização dos meios digitais, garantindo direitos e não uma norma que restrinja liberdades.

Porém, jamais podemos deixar de esquecer – como destacamos anteriormente – que referidas garantias de liberdade não podem esbarrar em nenhum ordenamento jurídico ou colidir com direitos fundamentais de terceiros e é exatamente nesse contexto que iniciamos o estudo para confrontarmos o que já é previsto em nossa legislação acerca da Internet e das novas tecnologias, o que ainda somos carentes ou precisamos de uma melhor adequação.

De fato, consideramos que para a grande maioria de todos os atos praticados por meio das novas tecnologias e/ou Internet já temos uma legislação específica ou aplicável, seja em âmbito tributário, trabalhista, penal, cível, etc.

Na esfera tributária podemos citar, por exemplo, a Nota Fiscal Eletrônica, o Sistema Público de Escrituração Digital (SPED) e a lei 11.196/05, que dispõe sobre as isenções para inovações tecnológicas.

No Direito do Trabalho, principalmente depois da EC 45/04, podemos citar os casos envolvendo a prática de ilícitos por meio de e-mails corporativos, como ofensas e desvios de informações confidenciais, nos quais a jurisprudência já pacificou a possibilidade de monitoramento, concluindo pela licitude das provas formadas através das referidas mensagens eletrônicas, respeitando – no entanto – o direito a autodeterminação informativa do trabalhador.

No campo criminal, são inúmeros os exemplos, como a prática de crimes contra honra pela Internet (calúnia, injúria e difamação), ameaça, estelionato, quebra de sigilo funcional, peculato eletrônico, concorrência desleal, violação de segredo profissional, interceptação de comunicações telemáticas e informáticas, quebra de sigilo bancário, pornografia infantil, tráfico de entorpecentes, racismo, tudo ocorrendo através dos meios eletrônicos.

A propósito, Sepúlveda Pertence em julgamento realizado em 22.09.1998 (HC-76689-PB) – destacava em seu voto: "(...) Não se trata no caso, pois, de colmatar lacuna da lei incriminadora por analogia, uma vez que se compreenda na decisão típica da conduta criminada; o meio técnico empregado para realizá-la pode até ser de invenção posterior à edição da lei penal – a invenção da pólvora não reclamou redefinição do homicídio para tornar explícito que nela se compreendia a morte dada a outrem mediante arma de fogo. Se a solução da controvérsia de fato sobre a autoria da inserção incriminada pende de informações técnicas de telemática que ainda pairam acima do conhecimento do homem comum, impõe-se a realização de prova pericial."

E ainda, é importante lembrar, trechos de outro voto de sua autoria, reproduzido nos Embargos de Divergência do Recurso Especial nº 240.400, cujo relator foi o Min. José Arnaldo da Fonseca (STJ – Superior Tribunal de Justiça): "(...) Last but not least, Sr. Presidente, não posso deixar de explicitar minha convicção de que – ante o quadro de notória impotência do Judiciário para atender à demanda multiplicada de jurisdição e, de outro, a também notória impotência do Direito Penal para atender aos que pretendem transformá-lo em mirífica, mas ilusória, solução de todos os males da vida em sociedade, tendo, cada vez mais, aplaudir a reserva à sanção e ao processo penal do papel de ultima ratio, e, sempre que possível, a sua substituição por medidas civis ou administrativas, menos estigmatizantes e de aplicabilidade mais efetiva. Mais que tradução de uma simples tendência de política criminal, o princípio da intervenção mínima (Cf. v.g., Nilo Batista: Introdução Crítica ao Dir. Penal Brasileiro, Ed. Revan, 1990, p. 84; Luiz Luisi: Os Princípios Constitucionais Penais, Fabus, 1991, p. 25) se me afigura derivado do Substantive process of law, consagrado no art. 5°, LIV, da Constituição e que traz consigo, segundo já tem assinalado o Tribunal, o princípio da proporcionalidade: certo que a pena como corretamente observou Roxin (Claus Roxin, Iniciación al derecho penal de hoy, trad., Sevilha, 1981, p. 23, apud Nilo Batista, ob. cit., p. 84) – "é a intervenção mais radical na liberdade do indivíduo que o ordenamento jurídico permite ao Estado", segue-se – como é do subprincípio da necessidade, que o apelo à criminalização só se legitima na medida em que seja a sanção penal "a medida restritiva indispensável à conservação do próprio ou de outro direito fundamental a que não possa ser substituído por outra igualmente eficaz, mas menos gravosa" (Susana de Toledo Barreos. O Princípio da Proporcionalidade. BrasJurídica 2000 p..212.). Cumpre em nome da intervenção mínima – contra a doença, sempre tendente às recidivas, que Carrara chamou de "monomania ou nomorréia" penal (Francisco Carrara: Opasculi di Diritto Criminale, IV1521 ss, apud Luisi, p. 28) – no texto, indaga o grande clássico: "não seria aplicável a essa mania de ditar leis o velho provérbio que dá como homem de pouca inteligência aquele que se protege da picada dos mosquitos enquanto a mula o escoiceia?") – a esquecida primeira parte do art. 8° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: "La Loi ne doit pas établir que des peines strictement et évidemment nécessaires..."(La Loi ne doit établir que des peines strictement et évidemment nécessaires, et nul ne peut être puni qu’en vertu d’une Loi établie et promulguée antérieurement au délit, et légalement appliquée. Déclaration universelle des droits de l’Homme)".

No mesmo sentido, Julio Fabbrini Mirabete: "(...) O crime não se distingue das infrações extrapenais de forma qualitativa, mas apenas quantitativamente. Como a intervenção do Direito Penal é requisitada por uma necessidade mais elevada de proteção à coletividade, o delito deve consubstanciar em um injusto mais grave e revelar uma culpabilidade mais elevada; deve ser uma infração que merece a sanção penal. O desvalor do resultado, o desvalor da ação e a reprovabilidade da atitude interna do autor é que convertem o fato em um "exemplo insuportável", que seria um mau precedente se o Estado não o reprimisse mediante a sanção penal. Isso significa que a pena deve ser reservada para os casos em que constitua o único meio de proteção suficiente da ordem social frente aos ataques relevantes. Apenas as condutas deletérias da espinha dorsal axiológica do sistema global histórico-cultural da sociedade devem ser tipificadas e reprimidas. Não se devem incriminar os fatos em que a conduta não implique risco concreto ou lesão a nenhum dos bens jurídicos reconhecidos pela ordem normativa constitucional. O ordenamento positivo, pois, deve ter como excepcional a previsão de sanções penais e não se apresentar como um instrumento de satisfação de situações contingentes e particulares, muitas vezes servindo apenas a interesses políticos do momento para aplacar o clamor público exacerbado pela propaganda. Além disso, a sanção penal estabelecida para cada delito deve ser aquela "necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime" (na expressão acolhida pelo art. 59 do CP), evitando-se o excesso punitivo, sobretudo com a utilização abusiva da pena privativa de liberdade. Essas idéias, consubstanciadas no chamado princípio da intervenção mínima, servem para inspirar o legislador."

No Direito Civil, através da aplicação do CDC e de alguns dispositivos genéricos do Código Civil, os julgados dos Tribunais brasileiros estão bastante avançados nos seguintes aspectos, por exemplo, a responsabilidade subjetiva dos provedores de serviços de Internet, que devem adotar medidas para remover conteúdo indevido inserido por terceiros caso sejam previamente cientificados, sob pena de responsabilidade1. Referido posicionamento foi recentemente corroborado em parecer do Ministério Público Federal em ação que recebeu repercussão geral no Supremo Tribunal Federal, onde o objeto da discussão jurídica é a responsabilidade dos intermediários2. No que diz respeito a identificação de infratores cibernéticos, devem as empresas estar aptas à fornecer registros que possam identificar os usuários que utilizam seus serviços para finalidade ilícita. Caso não guardem referidas informações podem ser responsabilizadas civilmente por omissão (Art. 186 do Código Civil combinado com a Recomendação do Comitê Gestor da Internet nesse sentido). A redação atual do PL 2.126/11 determina que os registros sejam guardados por um período de 1 (um) ano, tendo em vista os motivos que ensejaram tais coletas.

No Brasil, são inúmeras as decisões judiciais acerca das implicações jurídicas das novas tecnologias envolvendo a informática e a telemática, demonstrando, de fato, que a nossa legislação, em qualquer área, contempla boa parte de tudo o que precisamos, sendo necessário, no entanto, alguns ajustes urgentes.

Em relação às provas, como exemplo: (i) Obrigatoriedade de cumprimento das recomendações do Comitê Gestor Internet Brasil (https://www.cgi.br/publicacoes/documentacao/desenvolvimento.htm) e do The Internet Engineering Task Force (IETF), conforme RFC3871 - Operational Security Requirements for Large Internet (https://www.faqs.org/rfcs/rfc3871.html), sobre preservação dos registros eletrônicos (números de IP, datas e horários GMT). Estes registros devem ser fornecidos somente em caso de ordem judicial, seja na esfera cível ou criminal; (ii) Obrigatoriedade de preservação de conteúdo pelos provedores, pelo prazo mínimo de 30 (trinta) dias, nos casos de notificação extrajudicial de parte interessada, sendo prorrogáveis por mais 30 (trinta) dias, também, com expressa solicitação; (iii) Obrigatoriedade de seguir os manuais técnicos de segurança para quem prover acesso sem fio à Internet, com inserção de senhas e, se possível, criptografia. Caso contrário, de identificar o usuário (nome, data de nascimento, nº no CPF, nº do RG, endereço e telefone) pelo prazo de 03 (três) anos, posição esta defendida por Renato Opice Blum e Rony Vainzof3. Os dados devem ser fornecidos somente em caso de ordem judicial, seja na esfera cível ou criminal; (iv) Possibilitar a interceptação de dados telemáticos e informáticos também para crimes punidos com pena de detenção se estes forem praticados através dos meios eletrônicos (alterar a Lei 9.296/96), obviamente sempre com ordem judicial;

Importante destacar posicionamento do relator da Comissão Especial que analisa o Marco Civil, Dep. Alessandro Molon (PT-RJ): "(...) Assim como o cidadão tem documento de identidade e responsabilidade civil com suas propriedades, as conexões junto à rede, via protocolo de Internet, podem ser guardadas por um período curto, para que, caso haja indício de ato ilícito, a guarda desses registros possa subsidiar investigações que auxiliem na localização e apuração de responsabilidade dos infratores. (...) Todas as vezes que se fala em marco regulatório civil para a Internet, várias vozes levantam-se pedindo que a rede não sofra intervenções e continue um território livre. Realmente, a liberdade é uma marca da Internet. Mas liberdade, em uma sociedade democrática, só se garante com regras que permitam a todos o exercício de seus direitos mais básicos. (...) A participação da sociedade é necessária e desejável, já que são discutidos, além de políticas para a universalização do acesso à Internet, direitos. Garantir direitos significa, em primeira instância, proteger o usuário de tentativas de rastrear seus passos na rede e criminalizar práticas virtuais corriqueiras. O Marco Civil deve preservar a navegação anônima do internauta na rede e, ao mesmo tempo, criar instrumentos para que a lei brasileira seja respeitada também no mundo virtual. Não se pode, em nome da liberdade na Internet, manter criminosos impunes sob o argumento de que eles navegam em um mundo livre. Para proteger a todos, é preciso discutir a criação de instrumentos que permitam à polícia, ou à Justiça, investigar crimes cometidos no ambiente virtual."

O método pelo qual atualmente os ilícitos de Internet são solucionados depende da coleta e do armazenamento dos registros eletrônicos dos usuários, seja na conexão à Internet, seja no acesso às aplicações. Isto é, enquanto os métodos de investigação não evoluírem, o registro desses dados é necessário, sob pena de impunidade de grande parte dos crimes, independente do potencial ofensivo destes. Em resumo, a coleta de registros eletrônicos é necessária tanto a manutenção da plataforma de negócios que faz a Internet prosperar, quanto para solução de ilícitos, levando em consideração o atual estágio da metodologia de investigações. Portanto, resta uma conclusão: o que deve ser regulado é a forma de coleta, tratamento, armazenamento e fornecimento dos registros eletrônicos de usuários de Internet, de forma que a privacidade destes não seja violada, e de modo que ilícitos não sejam deixados impunes.

Desde o início das suas discussões, o armazenamento de registros eletrônicos sempre foi uma questão nerval do Marco Civil da Internet. Por fim, a redação do Projeto de Lei 2126/2011 ventilou três situações: (i) a obrigatoriedade de armazenamento de registros de acesso à Internet (o registro do usuário quando este se conecta à grande rede) pelo período de um ano (art. 11); (ii) a vedação por parte dos provedores de acesso à Internet de coleta e armazenamento de registros de acesso à aplicações de Internet (o provedor de Internet não pode registrar os serviços e aplicações que seus usuários acessam na Internet - art. 12) e (iii) a faculdade de armazenamento dos registros de aplicações de Internet (art. 13). Excetuando o último cenário, a redação do projeto merece aplausos.

A faculdade de armazenamento dos registros de aplicações de Internet significa que caberá a empresa provedora dessa aplicação decidir se coletará e armazenará registros e dados dos seus usuários quando estes utilizarem seus serviços. Apesar da necessidade de coleta destes dados ser um totem da plataforma de negócios dos modelos de serviços de Internet, dar a estas a opção de não coleta pode ter resultados nefastos, mormente na formação do arsenal probatório ainda indispensável para a solução de ilícitos praticados através dos meios eletrônicos. Nas palavras de Rony Vainzof, seria "transformar a Internet em faroeste"4.

A função teleológica por trás da faculdade de não coleta e armazenamento seria a manutenção da privacidade e da intimidade dos usuários de Internet. Quanto menos dados forem coletados destes, menores serão as chances que dados sejam cruzados e tratados de forma indevida, de forma a extrair análises ou informações que podem por ventura prejudicá-los, mesmo que este nada deva (falácia do argumento "quem não deve, não teme”, Daniel Solove, "I've Got Nothing to Hide" and Other Misunderstandings of Privacy"). Apesar dos merecidos aplausos no argumento utilizado, por vezes "o remédio indicado é maior do que a doença". Se eventual empresa adotar plataforma de negócios que não dependa dos dados e registros produzidos por seus usuários, a solução de ilícitos que por ventura aconteçam através de sua plataforma restará imensamente prejudicada. Novamente, a metodologia atual de investigação de crimes cibernéticos depende da existência de registros eletrônicos que possam identificar a origem da conexão à Internet utilizada para praticá-los. Sim, nem sempre a mera identificação da origem é suficiente para a solução de um ilícito, mas a partir desse momento entram em cena os métodos tradicionais de investigação.

Portanto, acreditamos que uma solução balanceada descansaria não em simplesmente permitir a ausência de coleta, mas sim em restringir o que deve ser fornecido caso inexistente ordem judicial que determine uma coleta e um fornecimento mais abrangente devido às características do procedimento investigatório em trâmite. Em outras palavras, um mínimo de registro é ainda necessário. A faculdade em guardar deve residir em registros além do mínimo. E o mínimo subsiste nos registros de "acesso" à aplicação, não incluindo eventuais registros de "navegação" do usuário quando este já estiver "dentro" da aplicação, uma vez que tais dados podem revelar os hábitos de uso do serviço.

Ao determinar a necessidade de guarda dos registros de acesso à aplicação será necessário fazer uma diferenciação entre os registros de mero “acesso” daqueles que possam revelar os hábitos de uso do usuário quando este já estiver conectado à aplicação. A atual redação do projeto de lei, o art. 5º, inciso VIII, que conceitua os registros de aplicações, não faz essa diferenciação, e acaba por incluir ambos os tipos de registros no mesmo lugar, o que pode dar margens a interpretações equivocadas. Ao limitar a obrigatoriedade do que deve ser armazenado, a intimidade e a privacidade dos usuários será resguardada, pois eventuais dados que seriam agregados na tentativa de identificação dos seus hábitos ou não foram coletados, ou somente serão coletados e fornecidos após decisão judicial nesse sentido, nos moldes do que prevê a Diretiva Europeia 2002/58/EC, que discorre a retenção de dados em meios eletrônicos:

Article 6 – Traffic data

1. Traffic data relating to subscribers and users processed and stored by the provider of a public communications network or publicly available electronic communications service must be erased or made anonymous when it is no longer needed for the purpose of the transmission of a communication without prejudice to paragraphs 2, 3 and 5 of this Article and Article 15(1).

(...)

3. For the purpose of marketing electronic communications services or for the provision of value added services, the provider of a publicly available electronic communications service may process the data referred to in paragraph 1 to the extent and for the duration necessary for such services or marketing, if the subscriber or user to whom the data relate has given his/her consent. Users or subscribers shall be given the possibility to withdraw their consent for the processing of traffic data at any time.

(...)

5. Processing of traffic data, in accordance with paragraphs 1, 2, 3 and 4, must be restricted to persons acting under the authority of providers of the public communications networks and publicly available electronic communications services handling billing or traffic management, customer enquiries, fraud detection, marketing electronic communications services or providing a value added service, and must be restricted to what is necessary for the purposes of such activities."

Nesse sentido, fazendo uso do lema que é possível ser visto na insígnia do tradicional IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo): "Clarius qvam grativs officivm (profissão mais ilustre que agradável)" nossa conclusão é para que sejam balanceadas: (i) a necessidade de manutenção do atual modelo de negócios na Internet; (ii) a intimidade e a privacidade dos usuários; e (iii) o material necessário para compor o arsenal probatório de apuração de ilícito na Internet – logo, são indispensáveis registros:

a) De acesso à aplicações de Internet, antes de decisão judicial, para a única e exclusiva finalidade de identificação (investigação) da origem de conexão à Internet utilizada para a prática de ilícito;

b) De navegação nas aplicações de Internet, para fins de monitoramento de navegação (conteúdo), somente após decisão judicial.

Com isso, seguem sugestões de redação ao PL 2.126/11:

Art. 5º Para os efeitos desta lei, considera-se:

(...)

IX - registros de navegação nas aplicações de Internet, o conjunto de informações referentes aos hábitos de uso de uma determinada aplicação de Internet.

Art. 13. Na provisão de aplicações de Internet, cabe à entidade responsável pela aplicação o dever de manter os registros de acesso a aplicação, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de um ano5, facultado guardar registros de navegação6, respeitado o disposto no art. 7º.

§1º A opção por não guardar os registros de navegação nas aplicações de Internet não implica responsabilidade sobre danos decorrentes do uso desses serviços por terceiros.

§2º Ordem judicial poderá obrigar, por tempo certo, a guarda de registros de navegação a aplicações de Internet, desde que se trate de registros relativos a fatos específicos em período determinado, ficando o fornecimento das informações submetido ao disposto na Seção IV deste Capítulo.

§3º Observado o disposto no §2º, a autoridade policial ou administrativa poderá requerer cautelarmente a guarda dos registros de navegação nas aplicações de Internet, observados o procedimento e os prazos previstos nos §§ 3º e 4º do art. 11.

Importante aqui expor novamente, também, o entendimento de Renato Opice Blum e Rony Vainzof, que advogam no sentido que a coleta de registros de acesso a aplicações e de navegabilidade deve ocorrer independente de ordem judicial delimitando a abrangência da guarda e do fornecimento. Defendem referida tese por entenderem que tal procedimento é o mais adequado e ágil para solucionar ilícitos perpetrados através da Internet7.

Necessário discorrer sobre outro ponto nerval. A retirada de conteúdo na Internet e a responsabilidade do intermediário talvez seja a questão mais discutida no âmbito da regulamentação da grande rede. Posição quase que uníssona na doutrina e jurisprudência nacional e internacional é a ausência de responsabilidade do intermediário antes que este tenha ciência e consciência da existência de conteúdo ilícito hospedado na sua plataforma ou veiculado através dela. No âmbito nacional esse posicionamento tem sido reiterado pelo Superior Tribunal de Justiça e acabou de receber repercussão geral no Supremo Tribunal, que irá discutir a questão. Neste sentido também se comportou o PL nº 2.126/11, ao claramente preceituar a ausência de responsabilidade do intermediário decorrente de conteúdo produzido por terceiro. Em casos como estes, apenas seriam os servidores de aplicações de Internet responsabilizados em eventual descumprimento de ordem judicial, salvo disposição de lei em contrário. Apesar de alguma redundância da redação, pois claro que alguma responsabilidade seria atribuída ao agente que descumprir mandamento judicial, algumas ponderações devem ser feitas. Para tanto, segue o que dispõe o projeto:

Art. 15. Salvo disposição legal em contrário, o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.

Importante destacar que apesar de em nenhum momento no projeto de lei se afirma que um conteúdo somente será retirado com ordem judicial, muitas vezes a interpretação dada a proposição acima é esta, de que será necessária uma ordem judicial para que o conteúdo seja removido. Não, o conteúdo poderá, também, ser retirado sem a prolação de ordem judicial, como nos casos em que este vai de encontro aos termos de uso de um serviço ou na existência de lei específica que regule a retirada de conteúdo determinado. Um serviço de aplicação tem a discricionariedade para escolher quais conteúdos aceitará em sua plataforma. E estas regras são aceitas pelos usuários ao iniciarem o uso dos serviços. Desta forma, se o serviço determinar que não aceitará conteúdos sobre “bolos de chocolate”, sempre que tiver ciência que fotos de “bolos de chocolate” foram veiculadas através de sua plataforma, poderá retirá-las, sem submeter tal crivo ao judiciário. Em outros casos, a lei especificamente determinará se o conteúdo deve ou não ser mantido. Nos demais, caberá ao judiciário decidir.

Na Internet, salvo melhor juízo, podemos classificar em quatro tipos os conteúdos que podem ser alvos de pedidos de retirada. Quais sejam: (i) pornografia infantil; (ii) propaganda eleitoral e partidárias (iii) propriedade intelectual; e (iv) supostamente ofensivo (crítica, reportagens, difamação, injúria, calúnia). Para os dois primeiros, já existem provisões legislativas específicas que determinam qual tratamento deve ser dado a um conteúdo alvo de pedido de retirada. O Estatuto da Criança e do Adolescente é claro ao expor que a retirada de conteúdo infantil pornográfico deve ser imediatamente realizada após notificação:

Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:

I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo;

II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo.

§ 2o As condutas tipificadas nos incisos I e II do § 1o deste artigo são puníveis quando o responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente notificado, deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito de que trata o caput deste artigo.

De forma distinta trabalhou a Lei Eleitoral (Lei 9.504/97), justamente pela natureza democrática de eventual conteúdo supostamente nocivo e pela possibilidade de jogos de interesses por trás de pedido de retirada. A lei optou, e neste ponto foi clara, por somente permitir a retirada de conteúdo publicitário eleitoral após ordem judicial nesse sentido, não sendo uma simples notificação do ofendido suficiente para tanto:

Art. 57-F. Aplicam-se ao provedor de conteúdo e de serviços multimídia que hospeda a divulgação da propaganda eleitoral de candidato, de partido ou de coligação as penalidades previstas nesta Lei, se, no prazo determinado pela Justiça Eleitoral, contado a partir da notificação de decisão sobre a existência de propaganda irregular, não tomar providências para a cessação dessa divulgação.

Parágrafo único. O provedor de conteúdo ou de serviços multimídia só será considerado responsável pela divulgação da propaganda se a publicação do material for comprovadamente de seu prévio conhecimento.

Também foi aplicado o regime da responsabilidade subsidiária dos intermediários.

No caso de conteúdo protegido por leis de propriedade intelectual, principalmente os conteúdos sob a égide da lei de direitos autorais, inexiste provisões específicas sobre como deve ser o tratamento em eventual pedido de retirada. Apesar da lei 9.610/98 conter provisões que podem determinar a suspensão da utilização ou veiculação de conteúdo protegido, como o art. 29 e art. 33, ainda existe margem para interpretações diversas, como a possibilitada pela doutrina do "uso justo" (fair use). Todavia, em paralelo ao PL nº 2.126/11 muitas são as discussões visando a alteração das leis de direitos autorais. Provavelmente estas terão provisões específicas neste sentido, o que nos leva a postergar um pouco discussões aprofundadas sobre esta matéria em específico.

Com relação ao último tipo de conteúdo que pode eventualmente ser alvo de pedido de retirada, ou seja, o supostamente ofensivo (que incluiria críticas, reportagens, difamação, injúria, calúnia), o seu tratamento é muito delicado. Por se tratarem de conteúdos em que a natureza ofensiva se dá especificamente no âmbito da subjetividade, na grande maioria dos casos, dúvidas podem pairar sobre a licitude e a ilicitude destes, inclusive no que diz respeito ao direito constitucional de crítica e a liberdade de manifestação do pensamento. Portanto, no caso de dúvida sobre a ilicitude do conteúdo, deve o caso ser levado ao judiciário para que este decida o tratamento adequado. Caso inexista dúvida sobre a ilicitude, apesar da natureza subjetiva deste, desnecessária a prolação de ordem judicial para que o conteúdo seja removido.

Portanto, o que realmente discorre o art. 15 do PL nº 2.126/11 é sobre a natureza do intermediário, qual seja, a de responsabilidade subjetiva. E deixa claro que em caso de dúvidas sobre a retirada de um conteúdo, caso não haja lei em contrário, caberá somente ao judiciário decidir que providências devem ser tomadas.

Novamente, nesta discussão, importante destacar a posição de Renato Opice Blum e Rony Vainzof, que pugnam desnecessária a inclusão do referido art. 15, pois se houver ordem judicial e esta não for cumprida, restará caracterizado o crime de desobediência. Ainda, a manutenção do artigo poderia levar a interpretação no sentido que somente após ordem judicial um conteúdo poderia ser retirado8..

Após o exposto, podemos afirmar que só após as inúmeras discussões públicas, como há muito proclamara Barão de Ramalho, teremos a exata observância das leis e do respeito inviolável ao Direito que depende, em grande parte, a felicidade dos povos.

__________

1 Vide STJ RESP 1.193.764/SP, RESP 1.186.616/MG e RESP 1.306.066/MG

2 STF - ARE 660861. Disponível em: https://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=1432376&tipoApp=.pdf

3 OPICE BLUM, Renato; VAINZOF, Rony. O Marco Civil da Internet e a Legislação. Disponível em: <_https3a_ www.alertatotal.net="" 2010="" 05="" o-marco-civil-da-internet-e-legislacao.html="">.

4 https://twitter.com/RonyVainzof/status/212645113095135232

5 Ou 3 (três) anos conforme recomendação do Comitê Gestor da Internet.

6 Registra-se o entendimento de Paulo Sá Elias e Renato Leite Monteiro (já manifestados em outros escritos) em relação a esse ponto específico: “(...) Para a segurança jurídica dos usuários e harmonia com o direito a autodeterminação informativa, o ideal seria a remoção desta “faculdade” mesmo com todas as advertências de respeito ao art. 7º. Deveria a nova legislação deixar claro que os registros de navegação só poderiam ser armazenados (monitorados) após decisão judicial e considerados como elementos probatórios da decisão judicial em diante, nunca retroativamente – ou seja antes de uma decisão judicial que autorize o monitoramento da navegação (a guarda desses registros) – tal prática jamais poderia ser permitida.”

7 OPICE BLUM, Renato; VAINZOF, Rony. Op. cit.

8 OPICE BLUM, Renato; VAINZOF, Rony. Op. cit.

__________

* Renato Opice Blum é advogado e economista. CEO de Opice Blum Advogados Associados, professor da Fundação Getúlio Vargas e Presidente do Conselho de Comércio Eletrônico da Federação de Comércio de São Paulo.

** Paulo Sá Elias é advogado. Sócio de Opice Blum Advogados – Filial de Ribeirão Preto (SP). Professor Universitário. Mestre em Direito pela UNESP.

*** Renato Leite Monteiro é advogado de Opice Blum Advogados Associados. Professor Universitário. Mestre em Direito pela UFC.

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