Muita gente confunde a Literatura de Cordel com o Repente. Talvez isto decorra do fato de ambas serem expressões artísticas muito difundidas no Nordeste do Brasil, ou talvez seja por causa da semelhança das estruturas poéticas por elas utilizadas, como sextilhas, septilhas e décimas. Mas, às vezes penso que a confusão decorre de as diferenças e semelhanças entre Cordel e Repente estarem misturadas umas às outras, não sendo absurdo dizer que um e outro diferenciam-se naquilo que se assemelham e vice-versa. Explico.
O Cordel é uma expressão literária em versos. Tradicionalmente é impresso em folhetos, mas vem sendo bastante difundido em livros, inclusive ilustrados, e pela Internet. Já o Repente é essencialmente oral, apresentando-se nas cantorias, com os cantadores ou violeiros exibindo, além do talento para criar versos, domínio da viola e dotes vocais. Também vem sendo difundido na Internet, em vídeos e em áudio.
Isto não impede, porém, que um cantador ponha melodia nos versos de um Cordel e, em uma noite de cantoria, os apresente ao seu público, fazendo o que se chama de "cantar decorado". Mesmo não sendo cantador nem violeiro, senti o gostinho dessa experiência quando estive no programa "Ao Som da Viola", comandado por Geraldo Amâncio, na TV Diário (10.07.2011), e fechei a entrevista cantando meus versos de "As Prisões Brasileiras", que começam assim:
No jornal vi a notícia
Que não chega a ser surpresa:
"Muita gente que está presa
Não dá sossego à polícia".
Com engenho e com malícia
E com muita ousadia
Os bandidos, quem diria,
Dão golpe por telefone.
Acho que nem Al Capone
Esperava isso um dia.
Traficantes poderosos
Também dão continuidade
À sua atividade
Seus negócios criminosos.
Auxiliares ciosos
Vão cumprindo as missões
Que recebem dos chefões
Que estão dentro dos presídios
Sequestros e homicídios
São suas ocupações.
Por outro lado, também há cordéis que rememoram cantorias, gravando no papel versos que supostamente teriam sido entoados por cantadores em momentos de grande inspiração, como se vê em "A peleja de Cego Aderaldo e Zé Pretinho do Tucum", de Firmino Teixeira do Amaral.
Ou seja, o Cordel é escrito, mas costuma ser apresentado na forma oral. O Repente é oral, mas pode aparecer escrito. Eis como as diferenças entre Cordel e Repente são também seus pontos de contato.
Nessa linha de raciocínio, outra diferença-semelhança importante aparece quando se olha para o método de elaboração de um e do outro. No Repente, como o próprio nome revela, os versos são criados no momento de sua apresentação. Em festivais de cantadores, estes somente tomam conhecimento do tema a ser tratado - chamado de "mote" - quando já estão no palco, perante o público. O cordelista, ao contrário, constrói a sua obra reservadamente, escolhendo as palavras, verificando a métrica e a rima, alterando o que for necessário, até que o texto esteja completo e revisado, pronto para ser mostrado aos leitores. Daí ser chamado também de "poeta de gabinete". A par disso, quem conhece o assunto sabe que os cordelistas, embora não façam seus versos de improviso – de repente – costumam ser rápidos em suas criações.
Também sobre essa questão - da velocidade na hora de fazer os versos - guardo em minha memória de poeta-juiz experiências interessantes. Uma delas aconteceu na época em que comandei a Justiça Federal em Mossoró-RN, onde trabalhei de 2005 a 2009.
Eu havia terminado as audiências daquele dia e estava em meu gabinete, quase no final da tarde, quando meu amigo e colega juiz Federal, Nagibe de Melo Jorge Neto, telefonou-me dizendo que estava escrevendo um livro sobre a técnica na elaboração de sentenças.
- Eu gostaria de incluir entre os exemplos uma sentença em versos da sua lavra, mas a única que conheço é uma que você fez em matéria penal, e o livro é sobre sentenças cíveis – disse-me ele.
- De fato, amigo, não tenho nenhuma sentença em versos em matéria cível. Mas posso fazer uma, se você puder esperar... – respondi.
- O livro está quase pronto, mas, quando fizer a sentença, me envie. Se ainda houver tempo, eu incluo...
Pois bem. Até receber o telefonema do Nagibe, eu nem estava pensando em escrever versos naquele dia. Mas o cordelista – assim como o repentista – recebe um pedido desses como um desafio. Diz-se que a maior vergonha para um repentista é não conseguir fazer versos sobre um mote que lhe seja proposto. Acho que o cordelista não chega a tanto, mas basta um estímulo assim para despertar o seu instinto de versejar.
Desliguei o telefone, acessei o sistema do Juizado Especial Federal, abri o primeiro processo que estava pronto para julgamento, e lá estava uma das muitas ações ajuizadas por mulheres que pretendem se aposentar como trabalhadoras rurais. No caso, o INSS alegara que a autora não havia apresentado nenhum documento que servisse para provar minimamente a sua condição de agricultora. Percebi, porém, que a certidão de casamento estava nos autos, e nela constava que o marido era agricultor. Por esse tempo, o STJ já havia decidido que uma certidão assim serviria como início de prova documental da condição de agricultora da esposa.
Duas horas depois, a sentença que Nagibe havia me pedido estava pronta. Ficou mais ou menos assim:
Dona M. F. L.,
Ajuizou esta ação,
Pleiteando aposentar-se,
E, em sua argumentação,
Vem alegando a autora
Que foi sempre agricultora,
Vivendo em zona rural.
Sendo essa a sua lida
Deve ser reconhecida
Segurada especial.
O INSS
Não chegou a contestar
O pedido em juízo,
Mas eu posso constatar
Que, no administrativo,
Está escrito o motivo
Daquele indeferimento.
O motivo da ocorrência
Foi a falta de carência
Quando do requerimento.
Sendo assim, o que existe
De ponto controvertido
É apenas um aspecto
Para ser esclarecido:
É resolver se a autora
Era mesmo agricultora
Desde sua tenra idade,
Ou se não é nada disso,
E fazia seu serviço
Só em casa ou na cidade.
As testemunhas disseram
Com muita convicção
Que a autora sempre teve
Na roça a ocupação.
Ocorre que o benefício
Requer também um início
De prova documental.
Por isso, neste momento
Procuro algum documento
No processo virtual.
De tudo que examinei
Destaquei a certidão
De casamento da autora,
Onde consta a profissão.
Sem defeito nem rasura,
Consta que agricultura
É a profissão do marido,
Que à autora se estende
A Justiça assim entende,
Decide nesse sentido.
Sabendo que a certidão
Data de noventa e seis,
E desde setenta e oito
O casamento se fez,
Eu me dou por convencido
Que foi mesmo atendido
O período de carência
E ao pedido formulado,
Na inicial estampado,
Dou completa procedência.
Que se implante o benefício
Que paguem os atrasados
Que da presente sentença
Sejam todos intimados.
Mas, antes da intimação,
Faço a determinação
De que a Contadoria
Faça a liquidação
De toda a condenação
Tal como a lei já previa.
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* Marcos Mairton é escritor, compositor e juiz Federal em Quixadá/CE.
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