Migalhas de Peso

Lei cidade limpa ou lei eleitoral: o que prevalece?

Em cidades que a lei municipal restringe o uso de propagandas com o intuito de proteger a estética urbanística, a proximidade das eleições gera a dúvida : se a lei eleitoral permite propagandas, pode lei municipal proibí-las?

31/5/2012

Importantes cidades como São Paulo1 e Ribeirão Preto2 desenvolveram legislações para proteger a estética urbana, contendo restrições ao uso de propagandas, distribuição de panfletos, etc. Tais leis são conhecidas como "Cidade Limpa". Por outro lado, na época de campanhas eleitorais, a utilização de faixas, placas, pinturas em muro, distribuição maciça de panfletos acaba por ser a regra – diga-se de passagem, amparada pela lei Eleitoral. Daí fica a pergunta: se a lei Eleitoral permite propagandas, poderia uma lei municipal proibí-las?

A resposta é positiva: em tese, salvo entendimento em contrário, lei municipal pode restringir propagandas eleitorais. Vejamos os fundamentos.

Primeiramente, de se ressaltar que, lei municipal em tese, não pode contrariar lei federal, principalmente se ambas dispuserem sobre o mesmo tema. Às matérias de competência federal (que não seja de competência privativa) são permitidas a lei municipal suplementar, desde que cabível (art. 30, II, CF - Constituição Federal).

A competência para legislar sobre matéria eleitoral é da União (art. 22, I, CF). Todavia, à lei municipal é assegurada a possibilidade de dispor sobre matéria de interesse local, notadamente na proteção ao meio ambiente, estética urbana, desde que não contrarie expressamente lei Federal ou estadual (art. 30, I e VIII c.c. art. 24, VIII, e art. 182, todas da Constituição Federal).

Sobre a competência municipal para criar restrições de tal envergadura, o Supremo Tribunal Federal já assentou:

"(...) ÔNUS DO PROPRIETÁRIO DE IMÓVEL URBANO. Instrumento próprio à política de desenvolvimento urbano, cuja execução incumbe ao Poder Público municipal, nos termos do disposto no artigo 182 da Constituição do Brasil. Instrumento voltado à correção de distorções que o crescimento urbano desordenado acarreta, à promoção do pleno desenvolvimento das funções da cidade e a dar concreção ao princípio da função social da propriedade (art. 170, III, da CB). 4. Recurso extraordinário conhecido, mas não provido". (RE 387.047/SC, Pleno, Min. Eros Grau, DJ 02.05.08, Ement. Vol. 02317-04, pp. 00799).

Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça de São Paulo já decidiu que a lei de Cidade Limpa na capital paulista é constitucional3.

Assim, uma lei local que seja mais restritiva quanto à forma de divulgação de determinada propaganda pode, eventualmente, ter reflexos eleitorais. Isso não significa que o município goze de competência para legislar sobre assuntos de natureza eleitoral. Até porque, a competência para legislar sobre tema eminentemente eleitoral é exclusiva da União. Afirmar que o município pode restringir eventual propaganda eleitoral pressupõe que dita lei também abarque outras formas de propaganda que não necessariamente eleitorais.

A previsão da lei municipal poder estampar restritividade extra à lei Federal, no que tange à estética e higiene urbana encontra amparo no Código Eleitoral (lei de natureza e competência federal). A saída invocada para incidir a lei municipal era o artigo 243, VIII do Código Eleitoral (CE)4.

Até porque o município é ente que goza de competência para legislar sobre questões urbanísticas e como tal, deve ser compreendida que a competência do art. 30, II e IX da Constituição denotam a este ente da federação a "predominância de interesse" - na feliz acepção de José Afonso da Silva5– para cuidar de suas questões locais. Quem melhor para ordenar qual forma de poluição é aceitável ou não em sua cidade? Ademais, a competência concorrente a que alude o art. 23, VI da CF cuida de dar guarida ao município em proporcionar todos os meios de combater a poluição, em todas as suas formas.

Logo, a limitação municipal encontrava respaldo na Constituição e no Código Eleitoral.

A própria jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) abonava a validade da lei municipal, quando decidiu que "não é permitido propaganda em desafio às posturas municipais (art. 243, VIII, CE) - "6-7.

O mesmo entendimento ocorreu para as Eleições Municipais de 2008, consoante precedente do TSE:

Eleições 2008. Agravo regimental em recurso especial. Propaganda eleitoral irregular. Prevalência da lei orgânica municipal no concernente às limitações impostas à veiculação de publicidade eleitoral.

1. O recurso especial que reconhece a prevalência das normas municipais no atinente a propaganda eleitoral não importa em reexame da lei local estrito senso.(...)

4. O art. 243, inc. VIII, do Código Eleitoral, foi recepcionado pela Constituição da República, especialmente porque homenageia a reserva constitucional do art. 30, o qual assegura aos Municípios legislar sobre assuntos de interesse local.

5. A edição de lei não se pode presumir como de conotação política, com a clara intenção de desequilibrar a igualdade de condições entre os candidatos; pelo contrário, pressupõe ampla discussão pelo legislativo local, representa a vontade da maioria e aplica-se a todos, indistintamente.

6. A inobservância de norma municipal regulamentar de veiculação de propaganda autoriza não só a supressão da publicidade irregular, mas igualmente a imposição de sanção pecuniária, dada a interpretação sistemática dos arts. 243, inc. VIII, do Código Eleitoral e 37 da Lei n. 9.504/97.(...)

8. A legislação posterior, ainda que mais benéfica, não conduz, salvo expressa disposição em contrário, à desconstituição de situação consolidada sob a égide de norma regulamentar vigente à época dos fatos.

9. Agravo regimental ao qual se nega provimento.8

O Tribunal Superior Eleitoral, julgando em 2011 ainda questões pendentes das eleições de 2008, assinalou que no conflito, aplicava-se a postura municipal sobre o art. 37 da Lei das Eleições9.

Ocorre que a reforma na lei das Eleições realizada em 2009 (lei 12.034), deu nova redação ao artigo 41, que passou a figurar da seguinte forma:

Art. 41. A propaganda exercida nos termos da legislação eleitoral não poderá ser objeto de multa nem cerceada sob alegação do exercício do poder de polícia ou de violação de postura municipal, casos em que se deve proceder na forma prevista no art. 40.

A nova redação da Lei das Eleições diz que as permissões da legislação eleitoral quanto à forma e extensão da propaganda se sobrepõem a qualquer postura municipal. Agasalhou a acepção esta redação o E. Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, em 31 de agosto de 2010, em decisão de Relatoria do Eminente Desembargador Mathias Coltro10, sob o argumento de que "não é mais possível admitir que tal dispositivo legal [art. 243, VIII, CE] possa conferir autonomia ao governo local para vedar a realização de propaganda eleitoral em bens particulares".

Naquele mesmo julgado perante a Corte Eleitoral Bandeirante, aventou-se a possibilidade, de se considerar quase um "Código Eleitoral Municipal", caso não prevalecesse a restrição da lei federal.

Em tese, o art. 41 da lei 9.504/97 teria revogado tacitamente o disposto no inciso VIII do art. 243 do CE, nos termos do art. 1º, §1º da lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (decreto 4.657/42).

Nos parece, no entanto, ante todo o exposto conquanto à competência constitucional municipal, na necessidade da coesão dinâmica das normas urbanísticas, que a legislação local detém prevalência para dispor sobre seu espaço e as vedações específicas quanto a poluição visual, urbanística, paisagística, higiene e estética da cidade.

Há de se aplicar interpretação conforme a Constituição no art. 41 da lei das Eleições. Deve-se assegurar a validade do art. 243, VIII do Código Eleitoral, e possibilitar ao município melhor regrar sua estética urbana.

Todavia, existe clara e inequívoca proibição de que posturas municipais afrontem à lei Federal quando especificamente queiram restringir apenas propaganda eleitoral. Se a norma municipal é abrangente e abraça proibir inúmeras formas de poluição – inclusive a eleitoral – conferir-se-ia prevalência desta norma local.

A validade ou não da lei municipal deve-se dar mediante intepretação conforme a Carta e de forma sistêmica, inclusive a considerar que o art. 243, VIII do Código Eleitoral não foi tacitamente revogado.

Assim, as normas proibitivas e mais severas de natureza municipal, como a "Lei Cidade Limpa", afastam, naquela localidade, a aplicação completa da lei das Eleições e eventuais Resoluções que disciplinem o tema propaganda eleitoral11. No mais, aplicam-se as restrições locais.

O caso concreto de incidência de lei municipal em prevalência à federal incumbirá ao juiz eleitoral da respectiva Zona a que o município pertencer, até eventual novo posicionamento do Tribunal Superior Eleitoral, que poderá dizer se a sua histórica intepretação deve ser validada ou, se a alteração da lei das Eleições poderá episodicamente derrogar leis municipais protetivas quanto à estética e paisagem urbana.

__________

1São Paulo-SP, Lei Municipal n.º 14.223, de 26 de setembro de 2006, disponível em https://www3.prefeitura.sp.gov.br/cadlem/secretarias/negocios_juridicos/cadlem/integra.asp?alt=27092006L 142230000.

2Ribeirão Preto –SP, Lei Municipal n. 12.730, de 11 de janeiro de 2012, disponível em https://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/principaln.php?pagina=/leis/pesquisa/pesquisa.php .

3Órgão Especial do E. Tribunal de Justiça de São Paulo (ADI n. 146.794-0/8-00).

4Código Eleitoral:

Art. 243. Não será tolerada propaganda:

VIII - que prejudique a higiene e a estética urbana ou contravenha a posturas municiais ou a outra qualquer restrição de direito.

5Direito Urbanístico Brasileiro, 6 e., Malheiros, São Paulo, 2010.

6TSE, ARESPE nº 24801 - Maurilândia/GO, Acórdão de 14/03/2006, Relator(a) Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, Publicação: DJ - Diário de Justiça, Volume 1, Tomo -, Data 07/04/2006, Página 166.

7O art. 243, VIII do Código Eleitoral foi recepcionado pela CF/88, vide Ac.-TSE, de 19.8.2010, no AgR-REspe n° 35.182.

8TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, AgR-REspe nº 35182 - São Bernardo do Campo/SP, Acórdão de 19/08/2010 , Relator(a) Min. CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Tomo 199, Data 15/10/2010, Página 40

9Ac.-TSE, de 17.2.2011, no AgR-REspe n° 35.134; Ac.-TSE n° 301/2004 e Ac.-TSE, de 14.3.2006, no REspe n° 24.801.

10Recurso na Representação n. 6488-90.2010.6.26.0000.

11Prevalece, excepcionalmente, a norma federal que dispõe sobre a desnecessidade de obtenção de licença municipal para distribuição de propaganda eleitoral, conforme dispõe a LEI DAS ELEIÇÕES (9.504/97:)

Art. 38. Independe da obtenção de licença municipal e de autorização da Justiça Eleitoral a veiculação de propaganda eleitoral pela distribuição de folhetos, volantes e outros impressos, os quais devem ser editados sob a responsabilidade do partido, coligação ou candidato.

__________

* Luiz Eugenio Scarpino Junior é advogado e professor de pós-graduação na Fundação Armando Alvares Penteado - FAAP em Ribeirão Preto

__________

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024

O SCR - Sistema de Informações de Crédito e a negativação: Diferenciações fundamentais e repercussões no âmbito judicial

20/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024