A polêmica da quebra de patentes
Nizete Lacerda Araújo*
Patente é um título de propriedade temporária sobre uma invenção ou um aperfeiçoamento, concedido pelo Estado, por meio de órgão específico, aos inventores ou autores, ou a outras pessoas físicas ou jurídicas detentoras de direitos sobre a criação. Estabelece-se uma situação jurídica pela qual a nova tecnologia patenteada confere ao seu proprietário “o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar á venda, vender ou importar com estes propósitos” produto e ou processo objeto da proteção por patente. Essa proteção é respaldada pela legislação internacional que regulamenta a matéria e da qual o Brasil é signatário. Destaca-se a Convenção da União de Paris para a proteção da propriedade industrial, datada de 1883. De igual importância também é o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, um dos Acordos que constituem os instrumentos jurídicos que levou à criação da Organização Mundial do Comércio, em 1994.
A Lei Brasileira de Propriedade Industrial, nº 9.279/96, em consonância com as legislações internacionais ratificadas pelo Brasil, assegura ao proprietário de uma patente o direito de impedir terceiros de explorar a sua patente sem autorização. A utilização da tecnologia patenteada por terceiro interessado, prevista pela legislação, se dá por meio de cessão ou de licença para exploração, instrumento jurídico próprio e de acordo com as condições estabelecidas pelos contratantes.
A lei em vigor na maioria dos países, além da licença voluntária, que se formalizará por contrato entre as partes, prevê a licença compulsória, popularizada como “quebra de patente”. Para que uma patente possa ser licenciada compulsoriamente é necessário atender a requisitos legais.De especial relevância para a discussão estabelecida entre o governo brasileiro e os laboratórios estrangeiros para a produção dos anti-retrovirais é a previsão contida na legislação brasileira de Propriedade Industrial, que a prevê para os “casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, podendo ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular”.
Nesse caso, exige-se a emergência nacional ou interesse público declarados por ato do Poder Executivo Federal e encerrada a situação de emergência ou não mais a justificar o interesse público, a licença compulsória perderá o motivo da sua existência e sempre será concedida sem nenhuma exclusividade de exploração a um interessado em especial.Na licença compulsória, o titular da patente não perde a propriedade, conservando os seus direitos sobre a mesma, inclusive os relacionados à remuneração que deverá ser paga pelo licenciado.
O governo brasileiro iniciou em março deste ano negociações com 3 laboratórios estrangeiros - Abbott (Kaletra), Merck Sharp & Dohme (Efavirenz) e Gilead Science Incorporation (Tenofir) - para redução do preço dos medicamentos anti-retrovirais que respondem por 66% do orçamento destinado a compra dos medicamentos do coquetel anti-Aids. Para o governo, garantir o acesso dos brasileiros a esses medicamentos é garantir a sustentabilidade do seu programa de combate à Aids, considerado um exemplo entre as nações. Dois laboratórios se mostraram receptivos à proposta do governo, surgindo o impasse em relação ao laboratório Abbott (Kaletra), que se recusou a negociar. O governo já declarou o interesse público existente no acesso da população ao coquetel anti-Aids do qual o Kaletra é o medicamento mais importante.
Se o Brasil declarar a licença compulsória em relação ao medicamento patenteado pelo laboratório Abbott, esta medida é legal, amparada pela lei brasileira que regulamenta a patente, pela legislação internacional sobre o assunto e conta com o apoio de vários países e órgãos internacionais como a Organização Mundial da Saúde. É também uma medida ética e inclusiva por assegurar que o acesso a medicamentos, pelas populações com menor poder de renda, se sobreponha ao direito de propriedade sobre uma invenção científica onde prevalece o interesse público. O Brasil não seria o primeiro país a utilizar-se da licença compulsória. A China e os Estados Unidos já utilizaram este mecanismo em situações que julgaram necessárias.
_________________
*Advogada e membro do IAMG - Instituto dos Advogados de Minas Gerais
_________________